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AUTORES
A desfragmentação do mundo
PETER BURKE
especial para a Folha
Hoje, a lembrança de homens e
mulheres famosos -pelo menos
na mídia- gira sempre em torno
de efemérides: 50 ou 100 anos do
nascimento ou da morte, da publicação de livros, da nomeação
para altos cargos ou alguma coisa
no gênero. Harold Innis (1894-1952), professor de economia política na Universidade de Toronto
(Canadá), poderá receber esse tipo de tributo em 2002, pelo menos em seu país. Mas prefiro não
esperar tanto para explicar por
que acho essa idéia fascinante.
Innis foi basicamente um historiador da economia, mas de um
tipo bastante raro. Começou com
um estudo relativamente ortodoxo, publicado em 1923, sobre a
ferrovia Canadian Pacific e as
consequências econômicas de sua
construção. Seu estudo sobre "O
Comércio de Peles no Canadá"
(1930) abordou o tema das comunicações, sobretudo o problema
da organização do transporte de
peles em distâncias cada vez
maiores, mas o argumento central, incomum para um historiador econômico da época, era que
"a história do comércio de peles é
a história do contato entre duas
civilizações", a dos índios que caçavam os castores e a dos europeus que os compravam.
Innis ganhou reputação antes
da Segunda Guerra Mundial com
a chamada "teoria da matéria-prima" do desenvolvimento econômico canadense, em que salientou a predominância do comércio
de peles, de peixe e de madeira,
sucessivamente, matérias-primas
que eram exportadas para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos e
sustentaram o desenvolvimento
da indústria canadense. Cada matéria-prima deixou sua marca na
sociedade e na cultura do Canadá,
e a mudança para cada novo produto gerou períodos de crise.
A comparação com a predominância do açúcar e do café na história econômica do Brasil e as
análises de economistas do desenvolvimento são bastante óbvias, estivesse Innis consciente
disso ou não.
Graças a sua visão inovadora
das matérias-primas canadenses,
Innis foi convidado a dar uma série de palestras sobre história econômica imperial em Oxford, em
1948. Se seus anfitriões e ouvintes
esperavam que Innis discorresse
sobre bacalhau, madeira ou ferrovias, devem ter ficado surpresos,
se não chocados, quando ele começou a falar. As palestras, publicadas em 1950 sob o título "Império e Comunicação", iam muito
além do Império Britânico e da
história da economia. O que ofereciam era uma história comparativa dos meios de comunicação.
Innis entendia por "meios de
comunicação" os materiais usados na comunicação, comparando substâncias relativamente pesadas, como pergaminho, argila e
pedra, com outras relativamente
leves, como papiro e papel. Ele
ofereceu sobre o assunto duas
idéias novas e instigantes. Em primeiro lugar, sugeriu que o uso de
materiais mais pesados e duráveis
levou ao que Innis chamou de
"inclinação cultural" pelo tempo
e também pela organização religiosa. Os tabletes de argila usados
na Assíria, por exemplo, eram difíceis de transportar, mas se adequavam à preservação de registros e arquivos permanentes. Por
outro lado, meios mais leves como o papel e o papiro, que são relativamente efêmeros, mas podem ser transportados com rapidez a grandes distâncias, produziam uma inclinação pelo espaço
e pela organização política.
Outro conceito central nas palestras era a idéia de que cada
meio de comunicação tendia a
criar um monopólio do conhecimento. Innis considerava esses
monopólios extremamente perigosos. Felizmente eram suscetíveis à concorrência de outros
meios, de modo que "o espírito
humano avança" de vez em quando. O monopólio intelectual dos
monges medievais, por exemplo,
que se baseava no pergaminho,
foi solapado pelo papel e a imprensa, assim como o "poder de
monopólio sobre a escrita" exercido pelos sacerdotes egípcios na
era dos hieróglifos foi subvertido
pelos gregos e seu alfabeto.
Nessa discussão percebe-se que
o interesse do economista pela
concorrência -no caso, entre os
meios de comunicação- era reforçado pela crítica protestante ao
sacerdócio (Innis pretendia ser
um ministro batista antes de se
decidir pela carreira acadêmica).
O poder conservador dos monopólios do conhecimento, segundo
Innis, afastava as revoluções tecnológicas nos meios de comunicação para regiões marginais como o Canadá, onde a disponibilidade de madeira deu à indústria
de papel uma vantagem sobre
seus rivais. O papel mais barato
reduziu o preço dos jornais nos
dois lados do Atlântico e aumentou sua circulação. Em consequência, "notícias se tornaram
produto e foram vendidas em
concorrência, como qualquer
produto".
Na era da supremacia egípcia, a
Grécia também era uma região
marginal -o Canadá do mundo
antigo-, e o alfabeto foi uma nova tecnologia. No caso da Grécia
antiga, Innis também ressaltou o
poder da palavra falada. "A voz de
uma pessoa comum é mais marcante do que a opinião publicada
de uma capacidade superior", ele
escreveu. Foi essa tradição oral,
não menos que a escrita alfabética, que inibiu o desenvolvimento
na Grécia de um monopólio sacerdotal no estilo egípcio.
Por menos convencional que
seja a escolha do tema para uma
palestra sobre a "história econômica imperial", ninguém que conhecesse a obra de Innis se surpreenderia com "Império e Comunicação". Desde seus primeiros trabalhos sobre as ferrovias
ele se interessou pela comunicação. Estimulado pela experiência
canadense de um país fisicamente
distante da Grã-Bretanha, mas
política e economicamente tão
próximo, Innis via a história como a interação de forças centrípetas e centrífugas. Fosse no estudo
de ferrovias, peles ou papel, Innis
sempre enfatizou o lugar da indústria numa "civilização" mais
ampla.
Innis era um empírico no sentido de um historiador que construiu suas monografias a partir de
documentos, pedaço a pedaço, e
as recheou de informações. Mas
ele também se interessava por
comparações e usava teorias de
maneira despretensiosa e eficaz.
Para ser mais exato, ele usava teorias de tipos muito variados: não
apenas as de Marx e as do socialista inglês Graham Wallas, mas
também as dos conservadores italianos Gaetano Mosca e Vilfredo
Pareto. Ele aprendera a sociologia
de Thorstein Veblen e Pitirim Soroklin, a antropologia de Margaret Mead e Alfred Kroeber e a filosofia de Spengler e Toynbee, refletindo sua ênfase na "civilização".
Ao discutir a importância da
oratória na civilização grega, Innis baseou-se nas idéias de um colega de Toronto, Eric Havelock,
cujo estudo "Prefácio a Platão",
de 1963, salienta a cultura oral da
época. Outro colega de Toronto,
Marshall McLuhan, que seguiu as
pegadas de Innis e Havelock, tornou-se uma espécie de guru nos
anos 60 ao enfatizar os efeitos dos
meios de comunicação, principalmente o rádio e a televisão, independentemente da pessoa que os
utiliza e dos objetivos para os
quais sejam usados. Resumindo
sua interpretação, ele escreveu
que "o meio é a mensagem". Mais
recentemente, a chamada "escola
de Toronto" de estudos da comunicação incluiu o historiador medievalista Brian Stock e o sociopsicólogo David Olsen.
Essa tradição de estudos da comunicação é um eloquente testemunho da importância das questões levantadas por Innis. Certa
vez ele se queixou de que as enciclopédias modernas "destrincham o conhecimento e o classificam em escaninhos alfabéticos",
reforçando e promovendo a atual
fragmentação do conhecimento.
Pessoalmente, Innis soube resistir a essa fragmentação. Especializou-se, como cabe aos acadêmicos, mas teve o dom de ver ligações entre sua área de especialidade, fosse o comércio de peles ou a
indústria de papel, e as demais atividades humanas. É por esse
dom, hoje ainda mais necessário
do que quando ele escreveu, 50
anos atrás, que Harold Innis merece ser lembrado.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Gonçalves.
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