São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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AUTORES

A desfragmentação do mundo

PETER BURKE
especial para a Folha

Hoje, a lembrança de homens e mulheres famosos -pelo menos na mídia- gira sempre em torno de efemérides: 50 ou 100 anos do nascimento ou da morte, da publicação de livros, da nomeação para altos cargos ou alguma coisa no gênero. Harold Innis (1894-1952), professor de economia política na Universidade de Toronto (Canadá), poderá receber esse tipo de tributo em 2002, pelo menos em seu país. Mas prefiro não esperar tanto para explicar por que acho essa idéia fascinante.
Innis foi basicamente um historiador da economia, mas de um tipo bastante raro. Começou com um estudo relativamente ortodoxo, publicado em 1923, sobre a ferrovia Canadian Pacific e as consequências econômicas de sua construção. Seu estudo sobre "O Comércio de Peles no Canadá" (1930) abordou o tema das comunicações, sobretudo o problema da organização do transporte de peles em distâncias cada vez maiores, mas o argumento central, incomum para um historiador econômico da época, era que "a história do comércio de peles é a história do contato entre duas civilizações", a dos índios que caçavam os castores e a dos europeus que os compravam.
Innis ganhou reputação antes da Segunda Guerra Mundial com a chamada "teoria da matéria-prima" do desenvolvimento econômico canadense, em que salientou a predominância do comércio de peles, de peixe e de madeira, sucessivamente, matérias-primas que eram exportadas para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos e sustentaram o desenvolvimento da indústria canadense. Cada matéria-prima deixou sua marca na sociedade e na cultura do Canadá, e a mudança para cada novo produto gerou períodos de crise.
A comparação com a predominância do açúcar e do café na história econômica do Brasil e as análises de economistas do desenvolvimento são bastante óbvias, estivesse Innis consciente disso ou não.
Graças a sua visão inovadora das matérias-primas canadenses, Innis foi convidado a dar uma série de palestras sobre história econômica imperial em Oxford, em 1948. Se seus anfitriões e ouvintes esperavam que Innis discorresse sobre bacalhau, madeira ou ferrovias, devem ter ficado surpresos, se não chocados, quando ele começou a falar. As palestras, publicadas em 1950 sob o título "Império e Comunicação", iam muito além do Império Britânico e da história da economia. O que ofereciam era uma história comparativa dos meios de comunicação.
Innis entendia por "meios de comunicação" os materiais usados na comunicação, comparando substâncias relativamente pesadas, como pergaminho, argila e pedra, com outras relativamente leves, como papiro e papel. Ele ofereceu sobre o assunto duas idéias novas e instigantes. Em primeiro lugar, sugeriu que o uso de materiais mais pesados e duráveis levou ao que Innis chamou de "inclinação cultural" pelo tempo e também pela organização religiosa. Os tabletes de argila usados na Assíria, por exemplo, eram difíceis de transportar, mas se adequavam à preservação de registros e arquivos permanentes. Por outro lado, meios mais leves como o papel e o papiro, que são relativamente efêmeros, mas podem ser transportados com rapidez a grandes distâncias, produziam uma inclinação pelo espaço e pela organização política.
Outro conceito central nas palestras era a idéia de que cada meio de comunicação tendia a criar um monopólio do conhecimento. Innis considerava esses monopólios extremamente perigosos. Felizmente eram suscetíveis à concorrência de outros meios, de modo que "o espírito humano avança" de vez em quando. O monopólio intelectual dos monges medievais, por exemplo, que se baseava no pergaminho, foi solapado pelo papel e a imprensa, assim como o "poder de monopólio sobre a escrita" exercido pelos sacerdotes egípcios na era dos hieróglifos foi subvertido pelos gregos e seu alfabeto.
Nessa discussão percebe-se que o interesse do economista pela concorrência -no caso, entre os meios de comunicação- era reforçado pela crítica protestante ao sacerdócio (Innis pretendia ser um ministro batista antes de se decidir pela carreira acadêmica). O poder conservador dos monopólios do conhecimento, segundo Innis, afastava as revoluções tecnológicas nos meios de comunicação para regiões marginais como o Canadá, onde a disponibilidade de madeira deu à indústria de papel uma vantagem sobre seus rivais. O papel mais barato reduziu o preço dos jornais nos dois lados do Atlântico e aumentou sua circulação. Em consequência, "notícias se tornaram produto e foram vendidas em concorrência, como qualquer produto".
Na era da supremacia egípcia, a Grécia também era uma região marginal -o Canadá do mundo antigo-, e o alfabeto foi uma nova tecnologia. No caso da Grécia antiga, Innis também ressaltou o poder da palavra falada. "A voz de uma pessoa comum é mais marcante do que a opinião publicada de uma capacidade superior", ele escreveu. Foi essa tradição oral, não menos que a escrita alfabética, que inibiu o desenvolvimento na Grécia de um monopólio sacerdotal no estilo egípcio.
Por menos convencional que seja a escolha do tema para uma palestra sobre a "história econômica imperial", ninguém que conhecesse a obra de Innis se surpreenderia com "Império e Comunicação". Desde seus primeiros trabalhos sobre as ferrovias ele se interessou pela comunicação. Estimulado pela experiência canadense de um país fisicamente distante da Grã-Bretanha, mas política e economicamente tão próximo, Innis via a história como a interação de forças centrípetas e centrífugas. Fosse no estudo de ferrovias, peles ou papel, Innis sempre enfatizou o lugar da indústria numa "civilização" mais ampla.
Innis era um empírico no sentido de um historiador que construiu suas monografias a partir de documentos, pedaço a pedaço, e as recheou de informações. Mas ele também se interessava por comparações e usava teorias de maneira despretensiosa e eficaz. Para ser mais exato, ele usava teorias de tipos muito variados: não apenas as de Marx e as do socialista inglês Graham Wallas, mas também as dos conservadores italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto. Ele aprendera a sociologia de Thorstein Veblen e Pitirim Soroklin, a antropologia de Margaret Mead e Alfred Kroeber e a filosofia de Spengler e Toynbee, refletindo sua ênfase na "civilização".
Ao discutir a importância da oratória na civilização grega, Innis baseou-se nas idéias de um colega de Toronto, Eric Havelock, cujo estudo "Prefácio a Platão", de 1963, salienta a cultura oral da época. Outro colega de Toronto, Marshall McLuhan, que seguiu as pegadas de Innis e Havelock, tornou-se uma espécie de guru nos anos 60 ao enfatizar os efeitos dos meios de comunicação, principalmente o rádio e a televisão, independentemente da pessoa que os utiliza e dos objetivos para os quais sejam usados. Resumindo sua interpretação, ele escreveu que "o meio é a mensagem". Mais recentemente, a chamada "escola de Toronto" de estudos da comunicação incluiu o historiador medievalista Brian Stock e o sociopsicólogo David Olsen.
Essa tradição de estudos da comunicação é um eloquente testemunho da importância das questões levantadas por Innis. Certa vez ele se queixou de que as enciclopédias modernas "destrincham o conhecimento e o classificam em escaninhos alfabéticos", reforçando e promovendo a atual fragmentação do conhecimento.
Pessoalmente, Innis soube resistir a essa fragmentação. Especializou-se, como cabe aos acadêmicos, mas teve o dom de ver ligações entre sua área de especialidade, fosse o comércio de peles ou a indústria de papel, e as demais atividades humanas. É por esse dom, hoje ainda mais necessário do que quando ele escreveu, 50 anos atrás, que Harold Innis merece ser lembrado.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Gonçalves.


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