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POESIA
Rubens Rodrigues Torres Filho traduz poema satírico inédito
A irreligião de Schelling
RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO
especial para a Folha
Os verbos "übertragen", "übersetzen", que em alemão significam "traduzir", têm ainda os sentidos adicionais de "transpor",
"transportar" ou "transplantar".
Assim o idioma alemão culto, como se sabe, foi fixado no século 16
por Lutero, que traduziu a Bíblia
levando em conta os modos populares de falar. Transplantou-a...
Documento essencial dos primeiros tempos do idealismo e do
romantismo, ainda que microscopicamente menos relevante
que as Escrituras, o poema pseudônimo de Schelling, "Profissão
de Fé Epicurista de Heinz Widerporst" (leia na pág. 5-7), escrito no
final do século 18, nunca havia sido transplantado para a nossa língua portuguesa. Vamos traçar,
concisamente, sua história.
Mal saído do Instituto de Tübingen, onde dividia o dormitório
com os colegas e amigos, um pouco mais velhos, Hölderlin e Hegel,
o inquieto e precoce Friedrich
Wilhelm Joseph von Schelling se
tornou professor em Iena, com
suas novas idéias sobre a "filosofia natural", que rapidamente
conquistaram a simpatia de Goethe.
Logo se aproximou do círculo
de Iena, constituído pelos irmãos
Schlegel e suas antenadíssimas
mulheres, Dorothea e Caroline,
além de, entre outros, Tieck, Novalis e Schleiermacher, inventores
históricos do romantismo, criadores da revista "Athenäum". E,
apesar das diferenças de temperamento e de formação, conviveu
bastante com o pequeno e efervescente grupo: "sinfilosofaram"
à maneira romântica (Ludoviko,
personagem da "Conversa sobre
a Poesia", de F. Schlegel, seria um
retrato seu), compartilharam visitas críticas a museus, trocaram
manuscritos e intuições. Já famoso, embora, por suas retumbantes
primeiras publicações, Schelling
estava com apenas 24 anos.
Foi assim que, à primeira leitura
dos "Discursos sobre a Religião",
de Schleiermacher (esse "fazedor
de véus", como era jocosamente
lido seu sobrenome), o filósofo
reagiu com "um novo acesso de
seu antigo entusiasmo pela irreligião" (palavras de F. Schlegel) e
compôs, encorajado pelo mesmo
Schlegel, esse desabafo metrificado e rimado, que tinha também
como alvo o autor do ensaio ainda
inédito "A Cristandade ou Europa", isto é, Novalis.
Reagiu pela carnavalização,
com o extenso poema cômico-filosófico (320 versos), sátira moralizante no estilo "ridendo castigat", escrito no outono (setembro
a novembro) de 1799, para sair na
"Athenäum" -o que, apesar do
desejo de Schlegel, não aconteceu,
desaconselhado pelo conselheiro
áulico de Weimar, isto é, Goethe.
De resto, a deliberada irreverência
do tom já estava anunciada na
própria escolha do pseudônimo
que adotou, criado a partir do adjetivo "widerborstig" (contaminação de "widerspenstig" com
"kratzbürstig"), que significa: refratário, recalcitrante, contumaz,
tinhoso (rabugento). O texto acabou por ficar inédito até a edição
Plitt (1869), com exceção do trecho publicado em 1800, sem indicação de autor, com o título "Algo
Ainda sobre a Relação da Filosofia
Natural com o Idealismo", (versos 185 a 250), na revista de Schelling, "Zeitschrift für Spekulative
Physik" (versos 185 a 250).
O "epicurismo" do título se refere menos à doutrina histórica de
Epicuro quanto à inspiração do
poema de Lucrécio, isto é, à implicação direta entre a postura ética e
a cosmovisão e um certo tom didático-satírico. Como modelo
formal, o "Widerporst" segue, segundo Schlegel, o "Hans Sachs"
de Goethe. Versos regulares, ocasionalmente de pé-quebrado, e rimas paralelas, deliberadamente
rústicas e óbvias, quando não
francamente cômicas.
A tradução, nos moldes do romantismo nacional, está em decassílabos (heróicos, predominantemente, mas também sáficos), com quebras para o dodecassílabo (de preferência o alexandrino), metro que preponderará no trecho, mais solene e complexo (a partir do verso 185), em
que o autor expõe seu próprio
modo de ver o mundo. Rimas
toantes ocasionais são permitidas
e toleradas.
Existe uma tradução francesa,
apresentada em "L'Absolu Littéraire", de Ph. Lacoue-Labarthe e
J.-L. Nancy (Seuil, 1978; págs. 251-259); mas, apesar de se declarar
sem pretensões literárias, contém
vários contra-sensos, ocasionados por erros de leitura. Mais corretos estão os trechos traduzidos
pelo padre X. Tilliette, em "Schelling - Une Philosophie en Devenir" (Vrin, 1970; vol. 1, págs. 182-184). O reverendo padre, extraordinário conhecedor de Schelling,
define a "Profissão" como um
"poema singular e assaz medíocre", "impulsiva profissão de paganismo", "confissão herética;
menos blasfêmica, no fundo, que
impregnada de pesada ironia".
Nas preleções sobre a "Filosofia
da Arte", pronunciadas pela primeira vez no semestre de inverno
de 1802-1803, o filósofo, ao tratar
das "artes da palavra", dedicou alguns parágrafos ao estudo da sátira. Eis uma seleção dos trechos
mais importantes:
"A esfera da poesia épica relativamente objetiva (onde a apresentação o é) é descrita pela elegia
e o idílio, que por sua vez se relacionam entre si, a primeira como
o subjetivo, este como o objetivo;
a esfera da poesia relativamente
mais subjetiva (onde a apresentação o é) é descrita pelo poema didático e a sátira, dos quais o primeiro é o subjetivo, esta o objetivo" (SW, V, 658);
"O do poema didático é o subjetivo, porque consiste no saber, o
da sátira, o objetivo, porque se refere ao agir, que é mais objetivo
que o saber. O princípio da apresentação é, em ambos, subjetivo.
Ali consiste no espírito; aqui, mais
no ânimo e no sentimento ético"
(SW, V, 659);
"Poderiam alegar, contra esse
gênero em universal, portanto
também contra a sátira, que ele
tem necessariamente um fim, o
poema didático, ensinar, a sátira,
castigar, e que, porque toda bela
arte não tem finalidade para fora,
ambos não podem ser pensados
como formas dela. Só que, com
esse princípio, em si importante,
não está dito que a arte não possa
tomar como forma um fim existente independentemente dela ou
um carecimento real, como aliás o
faz a arquitetura; só é requerido
que ela em si mesma saiba tornar-se novamente independente desse fim, e que os fins externos sejam para ela meramente forma"
(662-663);
"Na esfera subjetiva dos gêneros
subordinados ao poema épico, é a
sátira a forma mais objetiva, pois
seu objeto é o real, o objetivo, e,
predominantemente ao menos, a
ação" (667);
"De resto, a sátira tem dois gêneros, o sério e o cômico. Ambos
requerem a dignidade de um caráter ético, tal como se exprime na
nobre cólera de Juvenal e de Pérsio, e a superioridade de um espírito penetrante, que sabe ver as relações e acontecimentos em referência com o universal, pois justamente no contraste do universal e
do particular reside o efeito predominante da sátira" (668).
Não seria a "Profissão de Fé",
escrita três anos antes, de certo
modo e guardadas as proporções,
uma ilustração prática dessas
idéias?
Rubens Rodrigues Torres Filho é historiador da filosofia, poeta e tradutor, autor de "O
Espírito e a Letra" (Ática) e "Novolume" (Iluminuras), entre outros.
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