São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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POESIA

Rubens Rodrigues Torres Filho traduz poema satírico inédito
A irreligião de Schelling

RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO
especial para a Folha

Os verbos "übertragen", "übersetzen", que em alemão significam "traduzir", têm ainda os sentidos adicionais de "transpor", "transportar" ou "transplantar". Assim o idioma alemão culto, como se sabe, foi fixado no século 16 por Lutero, que traduziu a Bíblia levando em conta os modos populares de falar. Transplantou-a...
Documento essencial dos primeiros tempos do idealismo e do romantismo, ainda que microscopicamente menos relevante que as Escrituras, o poema pseudônimo de Schelling, "Profissão de Fé Epicurista de Heinz Widerporst" (leia na pág. 5-7), escrito no final do século 18, nunca havia sido transplantado para a nossa língua portuguesa. Vamos traçar, concisamente, sua história.
Mal saído do Instituto de Tübingen, onde dividia o dormitório com os colegas e amigos, um pouco mais velhos, Hölderlin e Hegel, o inquieto e precoce Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling se tornou professor em Iena, com suas novas idéias sobre a "filosofia natural", que rapidamente conquistaram a simpatia de Goethe.
Logo se aproximou do círculo de Iena, constituído pelos irmãos Schlegel e suas antenadíssimas mulheres, Dorothea e Caroline, além de, entre outros, Tieck, Novalis e Schleiermacher, inventores históricos do romantismo, criadores da revista "Athenäum". E, apesar das diferenças de temperamento e de formação, conviveu bastante com o pequeno e efervescente grupo: "sinfilosofaram" à maneira romântica (Ludoviko, personagem da "Conversa sobre a Poesia", de F. Schlegel, seria um retrato seu), compartilharam visitas críticas a museus, trocaram manuscritos e intuições. Já famoso, embora, por suas retumbantes primeiras publicações, Schelling estava com apenas 24 anos.
Foi assim que, à primeira leitura dos "Discursos sobre a Religião", de Schleiermacher (esse "fazedor de véus", como era jocosamente lido seu sobrenome), o filósofo reagiu com "um novo acesso de seu antigo entusiasmo pela irreligião" (palavras de F. Schlegel) e compôs, encorajado pelo mesmo Schlegel, esse desabafo metrificado e rimado, que tinha também como alvo o autor do ensaio ainda inédito "A Cristandade ou Europa", isto é, Novalis.
Reagiu pela carnavalização, com o extenso poema cômico-filosófico (320 versos), sátira moralizante no estilo "ridendo castigat", escrito no outono (setembro a novembro) de 1799, para sair na "Athenäum" -o que, apesar do desejo de Schlegel, não aconteceu, desaconselhado pelo conselheiro áulico de Weimar, isto é, Goethe. De resto, a deliberada irreverência do tom já estava anunciada na própria escolha do pseudônimo que adotou, criado a partir do adjetivo "widerborstig" (contaminação de "widerspenstig" com "kratzbürstig"), que significa: refratário, recalcitrante, contumaz, tinhoso (rabugento). O texto acabou por ficar inédito até a edição Plitt (1869), com exceção do trecho publicado em 1800, sem indicação de autor, com o título "Algo Ainda sobre a Relação da Filosofia Natural com o Idealismo", (versos 185 a 250), na revista de Schelling, "Zeitschrift für Spekulative Physik" (versos 185 a 250).
O "epicurismo" do título se refere menos à doutrina histórica de Epicuro quanto à inspiração do poema de Lucrécio, isto é, à implicação direta entre a postura ética e a cosmovisão e um certo tom didático-satírico. Como modelo formal, o "Widerporst" segue, segundo Schlegel, o "Hans Sachs" de Goethe. Versos regulares, ocasionalmente de pé-quebrado, e rimas paralelas, deliberadamente rústicas e óbvias, quando não francamente cômicas.
A tradução, nos moldes do romantismo nacional, está em decassílabos (heróicos, predominantemente, mas também sáficos), com quebras para o dodecassílabo (de preferência o alexandrino), metro que preponderará no trecho, mais solene e complexo (a partir do verso 185), em que o autor expõe seu próprio modo de ver o mundo. Rimas toantes ocasionais são permitidas e toleradas.
Existe uma tradução francesa, apresentada em "L'Absolu Littéraire", de Ph. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy (Seuil, 1978; págs. 251-259); mas, apesar de se declarar sem pretensões literárias, contém vários contra-sensos, ocasionados por erros de leitura. Mais corretos estão os trechos traduzidos pelo padre X. Tilliette, em "Schelling - Une Philosophie en Devenir" (Vrin, 1970; vol. 1, págs. 182-184). O reverendo padre, extraordinário conhecedor de Schelling, define a "Profissão" como um "poema singular e assaz medíocre", "impulsiva profissão de paganismo", "confissão herética; menos blasfêmica, no fundo, que impregnada de pesada ironia".
Nas preleções sobre a "Filosofia da Arte", pronunciadas pela primeira vez no semestre de inverno de 1802-1803, o filósofo, ao tratar das "artes da palavra", dedicou alguns parágrafos ao estudo da sátira. Eis uma seleção dos trechos mais importantes:
"A esfera da poesia épica relativamente objetiva (onde a apresentação o é) é descrita pela elegia e o idílio, que por sua vez se relacionam entre si, a primeira como o subjetivo, este como o objetivo; a esfera da poesia relativamente mais subjetiva (onde a apresentação o é) é descrita pelo poema didático e a sátira, dos quais o primeiro é o subjetivo, esta o objetivo" (SW, V, 658);
"O do poema didático é o subjetivo, porque consiste no saber, o da sátira, o objetivo, porque se refere ao agir, que é mais objetivo que o saber. O princípio da apresentação é, em ambos, subjetivo. Ali consiste no espírito; aqui, mais no ânimo e no sentimento ético" (SW, V, 659);
"Poderiam alegar, contra esse gênero em universal, portanto também contra a sátira, que ele tem necessariamente um fim, o poema didático, ensinar, a sátira, castigar, e que, porque toda bela arte não tem finalidade para fora, ambos não podem ser pensados como formas dela. Só que, com esse princípio, em si importante, não está dito que a arte não possa tomar como forma um fim existente independentemente dela ou um carecimento real, como aliás o faz a arquitetura; só é requerido que ela em si mesma saiba tornar-se novamente independente desse fim, e que os fins externos sejam para ela meramente forma" (662-663);
"Na esfera subjetiva dos gêneros subordinados ao poema épico, é a sátira a forma mais objetiva, pois seu objeto é o real, o objetivo, e, predominantemente ao menos, a ação" (667);
"De resto, a sátira tem dois gêneros, o sério e o cômico. Ambos requerem a dignidade de um caráter ético, tal como se exprime na nobre cólera de Juvenal e de Pérsio, e a superioridade de um espírito penetrante, que sabe ver as relações e acontecimentos em referência com o universal, pois justamente no contraste do universal e do particular reside o efeito predominante da sátira" (668).
Não seria a "Profissão de Fé", escrita três anos antes, de certo modo e guardadas as proporções, uma ilustração prática dessas idéias?


Rubens Rodrigues Torres Filho é historiador da filosofia, poeta e tradutor, autor de "O Espírito e a Letra" (Ática) e "Novolume" (Iluminuras), entre outros.


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