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CINEMA
Atriz de "A Idade da Terra" recorda a polêmica causada pelo filme
A guerra solitária de Glauber
ANA MARIA MAGALHÃES
especial para a Folha
Glauber Rocha, que neste ano
estaria comemorando os seus 60
anos, foi uma das pessoas que eu
conheci que mais amaram o Brasil. Ele expressou tal sentimento
de forma barroca, movimentando-se entre a nostalgia do paraíso
perdido e a antevisão do seu ressurgimento, buscando incessantemente realizar a projeção do
imaginário de índios e colonizadores, o Eldorado, numa síntese
de "ancestralidade e esperança",
como diria Sergio Buarque de
Holanda em seu "Visão do Paraíso".
Na trilogia da terra ("Deus e o
Diabo na Terra do Sol", "Terra
em Transe" e "A Idade da Terra"),
Glauber contrapôs o encantamento do sertão, que esconde sob
seu solo um destino oceânico, ao
conflito entre os homens que o
habitam, expôs os tormentos de
um poeta de sua geração, que vive
a utopia revolucionária e salvadora do destino de seu povo, e projetou um futuro que parte da concepção edênica amazônica e da
queda para a terra redimensionada em dois mundos, o rico e o pobre, nos quais o Cristo é manifesto em diferentes povos, já despidos de conceitos ideológicos e nacionais. Reivindica para o lado de
cá o Cristo vivo, fora da cruz.
"A Idade da Terra", seu último
filme, transformou-se em fonte
de conflitos e opiniões, que envolviam muito mais o aspecto pessoal e político, a personalidade do
autor e sua atuação, do que a estética, o filme em si. Naquele ano de
1980, a "Mostra de Cinema de Veneza" restabelecia a premiação,
extinta desde 68, e a Europa se
voltava para a América do Norte,
em busca de uma solução para a
crise, detonada pelo crescimento
da TV, a queda na frequência das
salas de cinema e a crescente dependência da produção dos canais de TV estatais. Realizou-se
um encontro entre setores de produção, distribuição e exibição
americanos e italianos, visando
ao estreitamento das relações entre as duas cinematografias.
Definitivamente o clima não era
propício. A Itália, ansiosa pela
própria sobrevivência e, segundo
Glauber, liberada pela orfandade
da tradição artística de Rosselini,
Visconti e Pasolini, assumia uma
visão da arte cinematográfica circunscrita ao ramo industrial, excluindo o cinema de criação, sem
levar em conta que um se alimenta do outro. "A Idade da Terra" foi
vítima dessa contradição.
A crítica italiana caiu de pau.
Uma dizia que ele voltou do exílio
como um filho pródigo do governo militar, traindo a esquerda e
seus velhos companheiros de estrada. Outra, que durante a projeção a sala foi se esvaziando e, ao final, restava apenas o diretor no cinema. A terceira criticava o filme
em tom paternalista e ambíguo,
de acordo com Glauber, e atacava
a sua posição contrária ao aborto.
Não entenderam o filme e tampouco estavam interessados naquele cinema.
O espaço comum reservado às
produções independentes e às de
cultura "exótica" era mínimo e,
na urgência em ampliar essas
fronteiras, Glauber reagiu violentamente às agressões, o que agravou ainda mais a situação. O jornal editado pelo festival comunicou, por meio de uma nota, que
não publicaria mais nada relativo
ao seu filme até que ele se retratasse, devido às suas declarações
"inadmissíveis e injuriosas".
Antonioni, que discordava do
discurso, mas identificava em cada plano do filme um acontecimento, saiu em defesa pública.
Alberto Moravia vibrava durante
a sessão. Margareth von Trotta,
no júri, apoiava Glauber discretamente, e o "Le Monde" publicou
uma crítica pertinente e favorável.
Naquela altura do campeonato, o
procedimento desses intelectuais
representou um alívio na humilhação e mágoa que corroíam
Glauber e alteravam seus planos
eventuais de se estabelecer na Itália.
O cinema de autor, que, nos
anos 60, subverteu os conceitos
de produção, proporcionando a
liberdade dos orçamentos modestos aos jovens autores, e que se
constituiu na Nouvelle Vague, no
cinema independente americano,
no Cinema Novo e na segunda geração do neo-realismo italiano,
maquiou as contradições estéticas e ideológicas que vicejavam
no interior desses grupos. Foram-se os grupos, ficaram as pessoas e
o cinema. Desenhava-se o perfil
de uma nova ordem internacional
da produção cinematográfica,
prenúncio do tombamento das
fronteiras geográficas mundiais, o
que gerou um reposicionamento
da maioria dos cineastas ligados à
tendência anterior.
Trataram de pendurar nas cinematecas o traje esporte do cinema
autoral e envergaram o "black-tie" das grandes produções. Independentemente de significar, em
alguns casos, a evolução natural
das cinematografias individuais,
colocou em campos opostos antigos companheiros de geração e de
idéias. Na arena dividida por diretores de diferentes estaturas,
alianças anteriormente inconcebíveis foram efetuadas na caça aos
financiamentos internacionais
que garantiriam a sua sobrevivência profissional. As aproximações
regidas pelo universo da criação e
do afeto amarelaram. Ressentimentos à parte, essa nova realidade desencadeou a molecularidade
de substância afetiva no campo de
batalha. Os que não apoiaram
Glauber, por princípio, não gostaram do filme mesmo antes de vê-lo e ignoraram a dimensão do
gesto.
Dissipada a poeira do passado e
sentindo-se traído por tudo e todos, Glauber partiu para uma
guerra solitária. Ele já sabia que ia
morrer e, como um animal ferido,
comandou uma passeata, protestando contra o festival, que manifestava racismo cultural em relação ao Terceiro Mundo ao programar nossos filmes como de segunda classe, e caracterizou essa
atitude como uma agressão. Dezenas de pessoas aglutinaram-se
em torno dele e o seguiram, nesse
adeus ritualístico para lá de barroco, em que até um "clochard"
ecológico fez seu discurso. Ali
Glauber se despedia da "vida cultural brasileira e do supermercado das ilusões perdidas". A recepção do filme no Brasil não foi diferente.
Autor de uma obra que é um
dos tesouros do patrimônio cultural do país e que expõe cruamente momentos históricos e
precisos do pensamento, sua expressão artística tem sido ao mesmo tempo nosso inferno e paraíso. Não se trata de ansiar, esperar
por um novo Glauber, ou pretender sê-lo, até porque seria tão sebastianista quanto o próprio. Mas
de tirá-lo finalmente da cruz, como o seu Cristo ressuscitado, e
prestar-lhe as devidas homenagens, não as de praxe, mas aquela
efetiva e à sua altura: a divulgação
de sua obra, à qual as novas gerações devem e podem ter acesso. O
enriquecimento do debate mais
profundo e verdadeiro não será
para esta ou talvez a próxima geração; porém, se pensarmos numa luz sobre um futuro mais distante, uma das fontes será a sua
criação, seus filmes e livros, multiplicada como os peixes.
Sua obra nos deixa uma certeza,
independentemente das condições econômicas, conveniências
políticas ou orientação estética vigente: grandes filmes, como os
mistérios, sempre hão de pintar
por aí.
Ana Maria Magalhães é atriz e participou
do filme "A Idade da Terra", de Glauber Rocha.
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