São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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CINEMA
Atriz de "A Idade da Terra" recorda a polêmica causada pelo filme
A guerra solitária de Glauber

ANA MARIA MAGALHÃES
especial para a Folha

Glauber Rocha, que neste ano estaria comemorando os seus 60 anos, foi uma das pessoas que eu conheci que mais amaram o Brasil. Ele expressou tal sentimento de forma barroca, movimentando-se entre a nostalgia do paraíso perdido e a antevisão do seu ressurgimento, buscando incessantemente realizar a projeção do imaginário de índios e colonizadores, o Eldorado, numa síntese de "ancestralidade e esperança", como diria Sergio Buarque de Holanda em seu "Visão do Paraíso".
Na trilogia da terra ("Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Terra em Transe" e "A Idade da Terra"), Glauber contrapôs o encantamento do sertão, que esconde sob seu solo um destino oceânico, ao conflito entre os homens que o habitam, expôs os tormentos de um poeta de sua geração, que vive a utopia revolucionária e salvadora do destino de seu povo, e projetou um futuro que parte da concepção edênica amazônica e da queda para a terra redimensionada em dois mundos, o rico e o pobre, nos quais o Cristo é manifesto em diferentes povos, já despidos de conceitos ideológicos e nacionais. Reivindica para o lado de cá o Cristo vivo, fora da cruz.
"A Idade da Terra", seu último filme, transformou-se em fonte de conflitos e opiniões, que envolviam muito mais o aspecto pessoal e político, a personalidade do autor e sua atuação, do que a estética, o filme em si. Naquele ano de 1980, a "Mostra de Cinema de Veneza" restabelecia a premiação, extinta desde 68, e a Europa se voltava para a América do Norte, em busca de uma solução para a crise, detonada pelo crescimento da TV, a queda na frequência das salas de cinema e a crescente dependência da produção dos canais de TV estatais. Realizou-se um encontro entre setores de produção, distribuição e exibição americanos e italianos, visando ao estreitamento das relações entre as duas cinematografias.
Definitivamente o clima não era propício. A Itália, ansiosa pela própria sobrevivência e, segundo Glauber, liberada pela orfandade da tradição artística de Rosselini, Visconti e Pasolini, assumia uma visão da arte cinematográfica circunscrita ao ramo industrial, excluindo o cinema de criação, sem levar em conta que um se alimenta do outro. "A Idade da Terra" foi vítima dessa contradição.
A crítica italiana caiu de pau. Uma dizia que ele voltou do exílio como um filho pródigo do governo militar, traindo a esquerda e seus velhos companheiros de estrada. Outra, que durante a projeção a sala foi se esvaziando e, ao final, restava apenas o diretor no cinema. A terceira criticava o filme em tom paternalista e ambíguo, de acordo com Glauber, e atacava a sua posição contrária ao aborto. Não entenderam o filme e tampouco estavam interessados naquele cinema.
O espaço comum reservado às produções independentes e às de cultura "exótica" era mínimo e, na urgência em ampliar essas fronteiras, Glauber reagiu violentamente às agressões, o que agravou ainda mais a situação. O jornal editado pelo festival comunicou, por meio de uma nota, que não publicaria mais nada relativo ao seu filme até que ele se retratasse, devido às suas declarações "inadmissíveis e injuriosas".
Antonioni, que discordava do discurso, mas identificava em cada plano do filme um acontecimento, saiu em defesa pública. Alberto Moravia vibrava durante a sessão. Margareth von Trotta, no júri, apoiava Glauber discretamente, e o "Le Monde" publicou uma crítica pertinente e favorável. Naquela altura do campeonato, o procedimento desses intelectuais representou um alívio na humilhação e mágoa que corroíam Glauber e alteravam seus planos eventuais de se estabelecer na Itália.
O cinema de autor, que, nos anos 60, subverteu os conceitos de produção, proporcionando a liberdade dos orçamentos modestos aos jovens autores, e que se constituiu na Nouvelle Vague, no cinema independente americano, no Cinema Novo e na segunda geração do neo-realismo italiano, maquiou as contradições estéticas e ideológicas que vicejavam no interior desses grupos. Foram-se os grupos, ficaram as pessoas e o cinema. Desenhava-se o perfil de uma nova ordem internacional da produção cinematográfica, prenúncio do tombamento das fronteiras geográficas mundiais, o que gerou um reposicionamento da maioria dos cineastas ligados à tendência anterior.
Trataram de pendurar nas cinematecas o traje esporte do cinema autoral e envergaram o "black-tie" das grandes produções. Independentemente de significar, em alguns casos, a evolução natural das cinematografias individuais, colocou em campos opostos antigos companheiros de geração e de idéias. Na arena dividida por diretores de diferentes estaturas, alianças anteriormente inconcebíveis foram efetuadas na caça aos financiamentos internacionais que garantiriam a sua sobrevivência profissional. As aproximações regidas pelo universo da criação e do afeto amarelaram. Ressentimentos à parte, essa nova realidade desencadeou a molecularidade de substância afetiva no campo de batalha. Os que não apoiaram Glauber, por princípio, não gostaram do filme mesmo antes de vê-lo e ignoraram a dimensão do gesto.
Dissipada a poeira do passado e sentindo-se traído por tudo e todos, Glauber partiu para uma guerra solitária. Ele já sabia que ia morrer e, como um animal ferido, comandou uma passeata, protestando contra o festival, que manifestava racismo cultural em relação ao Terceiro Mundo ao programar nossos filmes como de segunda classe, e caracterizou essa atitude como uma agressão. Dezenas de pessoas aglutinaram-se em torno dele e o seguiram, nesse adeus ritualístico para lá de barroco, em que até um "clochard" ecológico fez seu discurso. Ali Glauber se despedia da "vida cultural brasileira e do supermercado das ilusões perdidas". A recepção do filme no Brasil não foi diferente.
Autor de uma obra que é um dos tesouros do patrimônio cultural do país e que expõe cruamente momentos históricos e precisos do pensamento, sua expressão artística tem sido ao mesmo tempo nosso inferno e paraíso. Não se trata de ansiar, esperar por um novo Glauber, ou pretender sê-lo, até porque seria tão sebastianista quanto o próprio. Mas de tirá-lo finalmente da cruz, como o seu Cristo ressuscitado, e prestar-lhe as devidas homenagens, não as de praxe, mas aquela efetiva e à sua altura: a divulgação de sua obra, à qual as novas gerações devem e podem ter acesso. O enriquecimento do debate mais profundo e verdadeiro não será para esta ou talvez a próxima geração; porém, se pensarmos numa luz sobre um futuro mais distante, uma das fontes será a sua criação, seus filmes e livros, multiplicada como os peixes.
Sua obra nos deixa uma certeza, independentemente das condições econômicas, conveniências políticas ou orientação estética vigente: grandes filmes, como os mistérios, sempre hão de pintar por aí.


Ana Maria Magalhães é atriz e participou do filme "A Idade da Terra", de Glauber Rocha.

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