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+ psicanálise
Obra lançada na França transforma a raiva em princípio metodológico para atacar o freudismo;
psicanalista brasileira defende que seu saber "libere" o discurso político em vez de obliterá-lo
ÓDIO AO DIVÃ
JEAN BIRNBAUM
Há cerca de dez anos era publicada a tradução francesa de um famoso volume
intitulado, simplesmente,
"Le Livre Noir" (O Livro Negro).
Exumado meio século após sua
proibição pelo poder stalinista, esse
livro também era um relato de sobreviventes: os escritores Ilya Ehrenburg e Vassili Grossman reuniram
ali os depoimentos de judeus letões,
ucranianos, lituanos e russos, pouco
depois do refluxo dos matadores nazistas. Página após página, surgiam
o saque assassino e a fúria exterminadora. Desde então, na consciência
comum, a expressão "livro negro"
esteve ligada a um significado preciso: o crime em massa.
Ao decidir dar esse mesmo significante à prática freudiana, os autores
de "Livre Noir de la Psychanalyse"
(Livro Negro da Psicanálise) realizam hoje um gesto inédito. Como se
a equação "psicanálise = terror" fosse evidente, eles nem sequer sentiram necessidade de dar um esboço
de justificativa para esse título tão
carregado de símbolos.
Para superar essa lacuna, não basta invocar o clima da época. Oportunismo mercadológico? É verdade
que o mundo editorial é cada vez
menos poupado pelos métodos de
um marketing enganador, que considera que um título sangrento pode
salvar qualquer obra do fracasso,
por mais desalinhavada que seja.
Guerra dos "psis"? De fato, ao longo
dos últimos anos a concorrência entre os diversos médicos da alma se
transformou numa verdadeira guerra de trincheiras, e os adeptos das diferentes "terapias cognitivo-comportamentais", que formam os
grandes batalhões (várias dezenas
de autores) do atual ataque coletivo,
têm certa razão de querer desligar-se
dos partidários do freudismo, os
quais nem sempre são gentis, tampouco.
Além dos fatores conjunturais, é
conveniente no entanto não desconhecer esse dado básico: a equipe
que presidiu à elaboração desse "Livro Negro" considera os psicanalistas indivíduos perigosos; charlatões
do inconsciente, mais exatamente
adeptos de uma "pseudociência" tão
inútil quanto nociva, e que hoje estariam desacreditados em toda parte,
exceto na França e na Argentina.
Por outro lado, nesses dois nichos
residuais eles teriam conseguido
acumular prestígio e dinheiro para
impor sua hegemonia ao conjunto
da sociedade, por meio de um "terrorismo intelectual [que] não tem
nada a invejar ao dos aiatolás!", segundo os termos do psiquiatra Patrick Légeron.
Para melhor desmascarar a impostura, os autores decidiram assim
recuar a sua fonte: à Viena do fim do
século, a mesma onde atacava um
"escroque" chamado Sigmund
Freud. Resumindo alguns trabalhos
da historiografia crítica americana,
eles apresentam suas aquisições como se fossem "revelações" sistematicamente ocultadas em Paris.
Além disso, radicalizam as lições
até a caricatura, fazendo do fundador da psicanálise um "mentiroso"
paranóico, cínico e frustrado. Principalmente ganancioso: "Um charlatão ávido por encher os próprios
bolsos", afirma o historiador francês
Peter Swales, que generaliza essa característica a todos "os propagandistas da doutrina freudiana" até os
dias de hoje.
Sangue
E há coisas mais graves. Segundo
os autores desse "Livro Negro", os
farsantes freudianos teriam as mãos
sujas de sangue. Depois de salientar
"as bases neurobiológicas da toxicomania", o psiquiatra suíço Jean-Jacques Déglon se crê intitulado a acusar os psicanalistas, sem a menor
prova, de ter provocado "uma catástrofe sanitária, muito pior que a do
sangue contaminado", e por esse
meio "contribuído para a morte de
milhares de indivíduos", ao bloquear o desenvolvimento de tratamentos médicos de substituição (do
tipo metadona ou Subutex). E, de
modo geral, para todos os que sofrem de uma patologia psíquica, a
teoria freudiana seria no melhor dos
casos inútil, no pior, "tóxica".
Diante desse "obscurantismo" tenaz, seria urgente fazer explodir a
verdade, dando a palavra às "vítimas". Assim, Paul A., que prefere
testemunhar sob a cobertura do
anonimato, lamenta que sua namorada o deixou depois de iniciar uma
análise; prova de que esse tipo de
tratamento "separa as pessoas, desconecta os elos familiares e sociais"...
Para os autores do "Livro Negro",
o sucesso da prática freudiana pode
ser atribuído a algumas razões sumárias. Para começar, a preguiça: é
uma "atividade fácil", que exige essencialmente saber "emitir regularmente alguns "hum" para garantir ao
cliente que ele está sendo escutado".
Depois, a mistificação: é uma bonita
história que promete aos ingênuos
um amplo mergulho nas "profundezas" da alma. Enfim, a cobiça: "Os
psicanalistas universitários médicos
e sobretudo psicólogos não têm o
menor interesse em que novas pesquisas modifiquem as convicções
implantadas, pois eles tiram grande
parte de sua renda (em "cash", é claro) da psicanálise...", nota o psiquiatra Jean Cottraux, para descrever
uma França há muito "envolta em
psicanálise", como o foi outrora em
religião.
Os franceses seriam mais preguiçosos, mais mistificadores, mais venais que o resto da humanidade? Esse pot-pourri de antifreudismo contemporâneo não leva a pesquisa tão
longe. Abandonando rapidamente o
debate de idéias e o confronto teórico, prefere proceder a um ataque
sem sutilezas a uma psicanálise acusada de todos os males.
É que aqui, no coração do projeto,
está a abominação. Assim, Jacques
Van Rillaer, um dos principais mestres de obra do "Livro Negro da Psicanálise", que refaz aqui seu itinerário de analista belga "desconvertido", não está longe de elevar a execração a princípio metodológico:
"Alguns ódios são legítimos, particularmente quando são provocados
pelo espetáculo recorrente da má-fé,
da arrogância e da manipulação das
pessoas que sofrem. Idéias enunciadas por alguém que sente ódio não
deixam de ter, pela presença desse
sentimento, valor epistemológico".
Este texto foi publicado originalmente no
diário francês "Le Monde". Tradução de Luiz
Roberto Mendes Gonçalves.
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