São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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+ psicanálise

Obra lançada na França transforma a raiva em princípio metodológico para atacar o freudismo; psicanalista brasileira defende que seu saber "libere" o discurso político em vez de obliterá-lo

ÓDIO AO DIVÃ

JEAN BIRNBAUM

Há cerca de dez anos era publicada a tradução francesa de um famoso volume intitulado, simplesmente, "Le Livre Noir" (O Livro Negro). Exumado meio século após sua proibição pelo poder stalinista, esse livro também era um relato de sobreviventes: os escritores Ilya Ehrenburg e Vassili Grossman reuniram ali os depoimentos de judeus letões, ucranianos, lituanos e russos, pouco depois do refluxo dos matadores nazistas. Página após página, surgiam o saque assassino e a fúria exterminadora. Desde então, na consciência comum, a expressão "livro negro" esteve ligada a um significado preciso: o crime em massa.
Ao decidir dar esse mesmo significante à prática freudiana, os autores de "Livre Noir de la Psychanalyse" (Livro Negro da Psicanálise) realizam hoje um gesto inédito. Como se a equação "psicanálise = terror" fosse evidente, eles nem sequer sentiram necessidade de dar um esboço de justificativa para esse título tão carregado de símbolos.
Para superar essa lacuna, não basta invocar o clima da época. Oportunismo mercadológico? É verdade que o mundo editorial é cada vez menos poupado pelos métodos de um marketing enganador, que considera que um título sangrento pode salvar qualquer obra do fracasso, por mais desalinhavada que seja. Guerra dos "psis"? De fato, ao longo dos últimos anos a concorrência entre os diversos médicos da alma se transformou numa verdadeira guerra de trincheiras, e os adeptos das diferentes "terapias cognitivo-comportamentais", que formam os grandes batalhões (várias dezenas de autores) do atual ataque coletivo, têm certa razão de querer desligar-se dos partidários do freudismo, os quais nem sempre são gentis, tampouco.
Além dos fatores conjunturais, é conveniente no entanto não desconhecer esse dado básico: a equipe que presidiu à elaboração desse "Livro Negro" considera os psicanalistas indivíduos perigosos; charlatões do inconsciente, mais exatamente adeptos de uma "pseudociência" tão inútil quanto nociva, e que hoje estariam desacreditados em toda parte, exceto na França e na Argentina.
Por outro lado, nesses dois nichos residuais eles teriam conseguido acumular prestígio e dinheiro para impor sua hegemonia ao conjunto da sociedade, por meio de um "terrorismo intelectual [que] não tem nada a invejar ao dos aiatolás!", segundo os termos do psiquiatra Patrick Légeron.
Para melhor desmascarar a impostura, os autores decidiram assim recuar a sua fonte: à Viena do fim do século, a mesma onde atacava um "escroque" chamado Sigmund Freud. Resumindo alguns trabalhos da historiografia crítica americana, eles apresentam suas aquisições como se fossem "revelações" sistematicamente ocultadas em Paris.
Além disso, radicalizam as lições até a caricatura, fazendo do fundador da psicanálise um "mentiroso" paranóico, cínico e frustrado. Principalmente ganancioso: "Um charlatão ávido por encher os próprios bolsos", afirma o historiador francês Peter Swales, que generaliza essa característica a todos "os propagandistas da doutrina freudiana" até os dias de hoje.

Sangue
E há coisas mais graves. Segundo os autores desse "Livro Negro", os farsantes freudianos teriam as mãos sujas de sangue. Depois de salientar "as bases neurobiológicas da toxicomania", o psiquiatra suíço Jean-Jacques Déglon se crê intitulado a acusar os psicanalistas, sem a menor prova, de ter provocado "uma catástrofe sanitária, muito pior que a do sangue contaminado", e por esse meio "contribuído para a morte de milhares de indivíduos", ao bloquear o desenvolvimento de tratamentos médicos de substituição (do tipo metadona ou Subutex). E, de modo geral, para todos os que sofrem de uma patologia psíquica, a teoria freudiana seria no melhor dos casos inútil, no pior, "tóxica".
Diante desse "obscurantismo" tenaz, seria urgente fazer explodir a verdade, dando a palavra às "vítimas". Assim, Paul A., que prefere testemunhar sob a cobertura do anonimato, lamenta que sua namorada o deixou depois de iniciar uma análise; prova de que esse tipo de tratamento "separa as pessoas, desconecta os elos familiares e sociais"...
Para os autores do "Livro Negro", o sucesso da prática freudiana pode ser atribuído a algumas razões sumárias. Para começar, a preguiça: é uma "atividade fácil", que exige essencialmente saber "emitir regularmente alguns "hum" para garantir ao cliente que ele está sendo escutado". Depois, a mistificação: é uma bonita história que promete aos ingênuos um amplo mergulho nas "profundezas" da alma. Enfim, a cobiça: "Os psicanalistas universitários médicos e sobretudo psicólogos não têm o menor interesse em que novas pesquisas modifiquem as convicções implantadas, pois eles tiram grande parte de sua renda (em "cash", é claro) da psicanálise...", nota o psiquiatra Jean Cottraux, para descrever uma França há muito "envolta em psicanálise", como o foi outrora em religião.
Os franceses seriam mais preguiçosos, mais mistificadores, mais venais que o resto da humanidade? Esse pot-pourri de antifreudismo contemporâneo não leva a pesquisa tão longe. Abandonando rapidamente o debate de idéias e o confronto teórico, prefere proceder a um ataque sem sutilezas a uma psicanálise acusada de todos os males.
É que aqui, no coração do projeto, está a abominação. Assim, Jacques Van Rillaer, um dos principais mestres de obra do "Livro Negro da Psicanálise", que refaz aqui seu itinerário de analista belga "desconvertido", não está longe de elevar a execração a princípio metodológico: "Alguns ódios são legítimos, particularmente quando são provocados pelo espetáculo recorrente da má-fé, da arrogância e da manipulação das pessoas que sofrem. Idéias enunciadas por alguém que sente ódio não deixam de ter, pela presença desse sentimento, valor epistemológico".


Este texto foi publicado originalmente no diário francês "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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