São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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Ponto de fuga

Tarantino touch


Cineasta consegue uma proeza com "Bastardos Inglórios": inventa uma perfeita comédia de humor negro com um tema sensível


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há sempre surpresas nas histórias contadas pelos filmes de Tarantino, mas pouco suspense. Não fascinam pela expectativa emocionada. Seu dom de imantar os cenários, roupas, objetos, faz com que se fixem no espírito do espectador.
Um sapato feminino de salto alto: é o bastante. Mas um sapato de um modelo particular, verdadeiro protagonista na cena de uma Cinderela às avessas. Pouco importa o que ocorra com os personagens; o que fica, para ninguém esquecer, são as aventuras do sapato.
Graças ao seu talento de contar por imagens pregnantes, consegue uma proeza com "Bastardos Inglórios" ("Inglourious Basterds"). Inventa uma perfeita comédia de humor negro, bem incorreta politicamente, com um tema sensível (perseguição aos judeus na França ocupada).
Lembra, nesse sentido mais geral, "Ser ou Não Ser" [1942], de Lubitsch, e a cena da estreia no cinema, em "Bastardos Inglórios", envia ao atentado a Hitler em "Ser ou Não Ser".
Mas Lubitsch criou uma farsa leve, sem violências. Ora, Tarantino se delicia com a exposição brutal de feridas e mortes sangrentas. É uma das vertentes mais fortes de seu cinema. Elas vêm, com grande frequência, carregadas de ironia e humor macabro. Divertem porque, como nos desenhos animados, não são levadas a sério.

Âmago
O cinema está dentro de "Bastardos Inglórios". Não como homenagem ou citação. Nem como imitação, ou inspiração despertada pelos mestres do passado, modo presente no vínculo que Brian de Palma mantém com Hitchcock.
Tarantino é apaixonado pelo cinema, pela história do cinema, como tantos diretores. "Bastardos Inglórios" expõe a natureza específica desse amor: é um filme que vampiriza outros filmes e que assimila o universo cinematográfico, dos atores ao ato de filmar, da sala de cinema à cabine de projeção, dos cartazes e letreiros luminosos ao glamour das estrelas.
Centenas de referências aos cinemas americano, francês, alemão, italiano renascem em "Bastardos Inglórios" como carne, sangue, substância de um novo filme. Nada têm do apêndice ou enfeite erudito. Cúmplices da fantasia cinematográfica, mostram também que cinema é engano. A ficção é oferecida como ficção e tomada como ficção pelo público, que se diverte e emociona. Isso permite o final contrariando a História (a grande, com H): cinema não fala de realidades no sentido mais raso e comum; fala de realidades outras, líricas e inexistentes.
"Bastardos Inglórios" é um filme único. Como um mágico revelando seus segredos e levando, ainda assim, à crença nos milagres que simula.

Vetor
"Bastardos Inglórios" não trata do nazismo. Seus nazistas são caricaturais; Christoph Waltz, ator soberano, compõe um personagem clownesco. Hitler é um vilão bufo.
O discurso vingador que aparece na tela que pega fogo nada tem do tom didático final de "O Grande Ditador" [de Charles Chaplin]. É uma esplêndida apoteose feita com o prazer de filmar para o prazer de assistir.
Uma festa endiabrada. Um momento apenas, o dos judeus escondidos no porão, atinge uma gravidade maior.

Django
"Basterds" é escrito assim, com "e", para aparentar e distinguir o filme de um outro, dirigido por Enzo G. Castellari em 1978, cujo título em italiano é "Quel Maledetto Treno Blindato" (no Brasil "O Expresso Blindado da SS Nazista"), e que, nos EUA, chamou-se "Inglorious Bastards".
Tarantino chamou Castellari para uma ponta em "Bastardos Inglórios". O mestre do cinema popular e barato na Itália já está dirigindo um "Caribbean Basterds"...


jorgecoli@uol.com.br


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