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Ponto de fuga
Tarantino touch
Cineasta consegue uma proeza com "Bastardos Inglórios": inventa uma perfeita comédia de humor negro com um tema sensível
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há sempre surpresas nas
histórias contadas pelos filmes de Tarantino,
mas pouco suspense. Não fascinam pela expectativa emocionada. Seu dom de imantar os
cenários, roupas, objetos, faz
com que se fixem no espírito do
espectador.
Um sapato feminino de salto
alto: é o bastante. Mas um sapato de um modelo particular,
verdadeiro protagonista na cena de uma Cinderela às avessas. Pouco importa o que ocorra com os personagens; o que
fica, para ninguém esquecer,
são as aventuras do sapato.
Graças ao seu talento de contar por imagens pregnantes,
consegue uma proeza com
"Bastardos Inglórios" ("Inglourious Basterds"). Inventa
uma perfeita comédia de humor negro, bem incorreta politicamente, com um tema sensível (perseguição aos judeus na
França ocupada).
Lembra, nesse sentido mais
geral, "Ser ou Não Ser" [1942],
de Lubitsch, e a cena da estreia
no cinema, em "Bastardos Inglórios", envia ao atentado a
Hitler em "Ser ou Não Ser".
Mas Lubitsch criou uma farsa leve, sem violências. Ora, Tarantino se delicia com a exposição brutal de feridas e mortes
sangrentas. É uma das vertentes mais fortes de seu cinema.
Elas vêm, com grande frequência, carregadas de ironia e humor macabro. Divertem porque, como nos desenhos animados, não são levadas a sério.
Âmago
O cinema está dentro de
"Bastardos Inglórios". Não como homenagem ou citação.
Nem como imitação, ou inspiração despertada pelos mestres
do passado, modo presente no
vínculo que Brian de Palma
mantém com Hitchcock.
Tarantino é apaixonado pelo
cinema, pela história do cinema, como tantos diretores.
"Bastardos Inglórios" expõe
a natureza específica desse
amor: é um filme que vampiriza
outros filmes e que assimila o
universo cinematográfico, dos
atores ao ato de filmar, da sala
de cinema à cabine de projeção,
dos cartazes e letreiros luminosos ao glamour das estrelas.
Centenas de referências aos
cinemas americano, francês,
alemão, italiano renascem em
"Bastardos Inglórios" como
carne, sangue, substância de
um novo filme. Nada têm do
apêndice ou enfeite erudito.
Cúmplices da fantasia cinematográfica, mostram também
que cinema é engano. A ficção é
oferecida como ficção e tomada
como ficção pelo público, que
se diverte e emociona. Isso permite o final contrariando a História (a grande, com H): cinema
não fala de realidades no sentido mais raso e comum; fala de
realidades outras, líricas e inexistentes.
"Bastardos Inglórios" é um
filme único. Como um mágico
revelando seus segredos e levando, ainda assim, à crença
nos milagres que simula.
Vetor
"Bastardos Inglórios" não
trata do nazismo. Seus nazistas
são caricaturais; Christoph
Waltz, ator soberano, compõe
um personagem clownesco. Hitler é um vilão bufo.
O discurso vingador que aparece na tela que pega fogo nada
tem do tom didático final de "O
Grande Ditador" [de Charles
Chaplin]. É uma esplêndida
apoteose feita com o prazer de
filmar para o prazer de assistir.
Uma festa endiabrada. Um
momento apenas, o dos judeus
escondidos no porão, atinge
uma gravidade maior.
Django
"Basterds" é escrito assim,
com "e", para aparentar e distinguir o filme de um outro, dirigido por Enzo G. Castellari
em 1978, cujo título em italiano
é "Quel Maledetto Treno Blindato" (no Brasil "O Expresso
Blindado da SS Nazista"), e que,
nos EUA, chamou-se "Inglorious Bastards".
Tarantino chamou Castellari
para uma ponta em "Bastardos
Inglórios". O mestre do cinema
popular e barato na Itália já está dirigindo um "Caribbean
Basterds"...
jorgecoli@uol.com.br
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