São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(a)utores

Identidades complexas

Parece não haver outra alternativa para judeus e palestinos a não ser a convivência pacífica no Oriente Médio


A criação do Estado de Israel mudou sensivelmente o quadro da identidade judaica


BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Vivemos num mundo em que o tema das identidades abrange um vastíssimo leque. Há identidades nacionais, étnicas, raciais, de gênero, de pertencimento a uma comunidade religiosa, a um grupo gay, a uma torcida de futebol e por aí vai. Fico no plano das identidades em sentido amplo, exemplificando com o caso do Brasil.
A consciência de ser brasileiro não brota espontaneamente, mas se origina de uma construção ideológica cujo ponto de partida foi a formação do Estado nacional. Somos brasileiros porque fazemos parte de uma nação independente, que vai do Oiapoque ao Chuí, como se dizia nos velhos manuais de geografia; porque falamos uma mesma língua, apenas com sotaques regionais; porque nos reconhecemos em símbolos como o hino e a bandeira; porque somos uma imensa torcida nos jogos da Copa do Mundo -o momento em que "a pátria veste chuteiras", na expressão feliz e muito conhecida de Nelson Rodrigues.
Mas há identidades coletivas mais complexas, como é o caso dos judeus. Para começar, como se explica a sobrevivência desse povo durante mais de dois mil anos, tendo em vista as circunstâncias de sua história?
Afinal de contas, o território judaico foi perdido com a ocupação da Judeia pelos romanos, em 63 a.C., e só reapareceu sob a forma de um Estado nacional em 1948, com a fundação do Estado de Israel.

Língua unificada
Também, o povo judeu não tem características raciais comuns, bastando comparar as populações ashkenazis da Europa Central e os sefarditas do Oriente Médio e do norte da África.
Mais ainda, inexistiu entre os judeus uma língua comum, exceto o hebraico -a língua das celebrações religiosas, suplantada na vida cotidiana pelo iídiche, uma mistura predominante do alemão e de línguas da Europa Central, e pelo ladino, "a língua florida" dos judeus expulsos da Espanha pelos reis católicos, em fins do século 15, misto de espanhol arcaico com acentos locais.
Aliás, a importância da língua unificada, na constituição do Estado nacional, se revela no fato de que os fundadores de Israel tiveram dúvidas acerca de qual seria a língua nacional, até que o hebraico da tradição sagrada superou a opção pelo iídiche, hoje em franco declínio. Diante desse quadro, que elementos contribuíram para a preservação de uma identidade judaica? Quase não seria preciso dizer que a religião -e aí o hebraico teve papel muito importante- foi um fator de grande relevo.
Convém lembrar que não se tratava, como não se trata, de uma religião de textos uniformemente interpretados por um centro hierárquico superior. Assim, o estudo do "Talmud" -principal obra de referência do judaísmo rabínico- deu origem a tradições diferentes entre os ashkenazis e os sefarditas. As interpretações religiosas estimularam também alguns aspectos da identificação judaica: a crença no Deus único, a negação do Cristo como o esperado Messias, a noção de povo eleito, hoje injustificável.
Por sua vez, as perseguições tiveram consequências contraditórias. As hostes do povo judeu foram desfalcadas pelas conversões de conveniência ou pelas conversões forçadas, como foi o caso dos cristãos-novos da península Ibérica. Porém, ao mesmo tempo, deram origem ao desenvolvimento de sensibilidades e ações ambivalentes. Temor, pânico, sentimento de ser o "outro" amaldiçoado, responsável pela morte de Cristo, mas também reforço da identidade, determinação em mantê-la. Nos tempos atuais, a criação do Estado de Israel mudou sensivelmente o quadro da identidade judaica -ou melhor, das identidades judaicas- ao dar origem a pelo menos duas personalidades coletivas distintas: o judeu de Israel e o judeu da diáspora.
Se o judeu de Israel é cidadão de um país, embora essa cidadania passe pelo prisma não só do Estado como do rabinato ortodoxo, o da diáspora é cidadão de outro país, com potencialidade de ser também cidadão de Israel.

Ceticismo cauteloso
Um livro recente traz uma importante reflexão sobre o tema do judaísmo. Intitula-se "Judaísmo para Todos" (ed. argentina Siglo XXI), escrito pelo sociólogo Bernardo Sorj, nascido no Uruguai, e há muitos anos enraizado no Brasil.
Sorj enfrenta corajosamente questões como a do antissemitismo e a da negação do Holocausto, incorporadas por algumas figuras repugnantes da cena mundial; enfatiza a importância de preservar a memória do massacre, sem embargo da crítica à sua instrumentação política; defende a necessidade de uma renovação humanista e secular do judaísmo.
Lembro ainda, e destaco, sua tese de que a fragmentação do judaísmo, entre várias correntes, nos dias que correm, é um sinal de pujança criativa, e não de certezas confortadoras. Esses tópicos têm incidência nas tentativas de romper o quadro de estagnação das iniciativas de paz entre israelenses e palestinos, ao incentivarem o reconhecimento do "outro", palestino ou judeu.
É um passo vital, empreendido na prática, por pequenas organizações. Ele se situa na base de questões como a do reconhecimento de um verdadeiro Estado palestino, com a desocupação dos territórios ocupados, e a do combate ao terrorismo, assim como a do enfrentamento daqueles que negam a existência de Israel.
Anos e anos de efêmeras aproximações e impasses duradouros justificam um cauteloso ceticismo. Mas, se o caminho não for esse, a alternativa será a de hoje: a confrontação e a violência recíprocas. É o que desejam os fanáticos de ambos os lados, mas não quem busca a convivência de dois povos, com dignidade e sem humilhações.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). borisfausto@uol.com.br


Texto Anterior: Biblioteca básica: Almas Mortas
Próximo Texto: + lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.