São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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Um dos principais teóricos da literatura da atualidade discute a relação entre humor, filosofia e morte

Mortos de rir

Reprodução
Oscarito e Grande Otelo em "A Dupla do Barulho" (1953), filme de Carlos Manga


por Gérard Genette

A multidão histérica está prestes a apedrejar a mulher adúltera. Jesus intervém: "Que aquele que nunca pecou lhe atire a primeira pedra". Todos se detêm, salvo uma outra mulher, já não muito jovem, mas bastante digna, que avança com um enorme paralelepípedo e esmigalha selvagemente a cabeça da pecadora. E Jesus: "Mamãe, puta merda!".
Encontramos aqui ao menos na mesma medida, e a meu ver mais profundamente, que na famosa "Passion Considerée comme Course de Côte" (Paixão Considerada como Corrida em Aclive), de Alfred Jarry, o recurso sempre eficaz, digamos logo, à paródia sacrílega (lembremos que Freud inclui a blasfêmia entre as variedades do "Witz" tendencioso): a história começa com um episódio autêntico do Evangelho de João e desemboca numa cena altamente apócrifa. Noto de passagem que certas versões identificam espontaneamente a mulher adúltera desse episódio com Maria Madalena, amálgama compreensível, mas não obstante errôneo: uma prostituta, de resto, não é adúltera -e me parece que, segundo os costumes do tempo e a lei mosaica, a primeira é menos culpável que a segunda.
Falta pouco para que essa "história engraçada" ilustre, a exemplo de tantas outras, o esquema bem conhecido da precaução fatal, esquema comum, como se sabe, à tragédia (Édipo) e à comédia (Arnolfo, Bartolo): Jesus acreditava ter descoberto o meio dissuasivo indefensável, já que ninguém aqui embaixo (ele incluído?) é irrepreensível. Ele esquecia simplesmente o caso de Maria, concebida ela mesma sem pecado e que se tornou (sua) mãe por operação do Espírito Santo. Sua precaução se volta, pois, contra aquela que ele tentava proteger e a quem ele condena por um erro (de julgamento, digamos) que pode, segundo o humor, ser objeto de aflição ou escárnio. Mas bem se vê que a história, como se diz, não termina aí e que sua virtude cômica se deve antes à apóstrofe final, que preenche com a fulminante concisão necessária, segundo Jean Paul e Freud, ao cômico como ao dito espirituoso três funções de uma só vez.
Ela fornece a chave da reviravolta imprevista ao revelar a identidade da implacável apedrejadora; ela o faz pelo viés de um duplo rebaixamento de registro duplamente dessacralizante -e que além disso sugere alguma mágoa passada de Jesus a respeito de sua santa mãe; e de golpe ela retira do último o peso do erro: Maria cumpriu à risca, talvez até demais, o imprudente desafio de seu filho, mas nem por isso ela é julgada menos culpável, por ele e por nós, de um zelo pouco caridoso (e, se ela não tivesse feito mais que atirar a primeira pedra, as seguintes evidentemente não teriam tardado, com idêntico resultado). É a Mãe terrível, e manifestamente enciumada.
Imagino, por alto, em que ocasião Édipo poderia morigerar Jocasta nos mesmos termos, mas isso é abusar do paralelo: depois de tudo (antes de tudo), é Jocasta quem está, com Laio, na origem do equívoco trágico, o que não se pode dizer de Maria, sob pena de torná-la geneticamente responsável pelas besteiras de seu filho, coisa em que no mínimo ela não está sozinha, a meu ver. Seja como for, a relação temática, ou seja, estrutural, entre a história de Jesus e a de Édipo está repleta de inversões que devem fornecer um pouco (sem mais) de tablatura à análise: malgrado sua filiação misteriosa -Jesus, que eu saiba, não dorme com sua mãe nem mata seu pai-, seria, em resumo, o inverso, quero dizer, é antes seu pai quem o mata.
Bossuet [escritor francês, 1627-1704" pretende em alguma parte que Jesus nunca riu. É preencher estranhamente os vazios do relato evangélico: segundo o mesmo princípio, pode-se dizer que ele (Jesus) nunca espirrou etc. Em todo caso, e nesse ponto Matthieu é categórico, não lhe repugnava o trocadilho: "Tu és Pedro, e sobre essa pedra etc.". Note-se que isso dá origem a duas variações (atirar, assentar) sobre o tema da primeira pedra da intifada sexista e da Igreja Universal.

Separação demorada Um casal bem idoso se apresenta diante do juiz, para fins de divórcio. Um pouco surpreso, o juiz indaga suas idades: 88 e 86 anos. "E desde quando vocês desejam se separar? Desde uns bons 50 anos, responde o marido. E por que se decidiram tão tarde? A gente esperou que os filhos estivessem mortos", responde a mulher.
Tal piada, que, apesar das aparências, não devemos a Samuel Beckett, é de móbil evidente: de ordinário, espera-se, por exemplo, que "os filhos" estejam eles próprios casados a rigor, que estejam eles próprios divorciados. A surpresa cômica se deve à substituição da própria morte deles, que não deveria ter precedido a dos pais, mas que estes, contudo, esperaram, o que testemunha não somente uma bela saúde, mas ainda uma bela paciência: aparentemente os dois velhos nem sequer buscaram apressar o vencimento.

No limite do suportável "Eu também", diz um jovem alemão, "meu pai morreu em Auschwitz". "Ah é?", responde um jovem judeu surpreso. "Foi, ele caiu de um mirante."
Essa, mesmo eventualmente contada por um humorista judeu, está no limite do suportável. Mas, se quisermos relevar o excesso de mau gosto, nela encontramos a ilustração plausível de um fato inegável: os carrascos também morrem, e esse foi aparentemente punido por um dos instrumentos de seu crime. Não resta dúvida de que, em termos mais gerais, alguns oficiais da SS devem ter "morrido em Auschwitz", a maioria deles em suas camas. O humor, verdadeiramente negro, deve-se aqui ao emprego dessa expressão no sentido próprio (amplo) que faz grande injustiça a todos quantos morreram não somente em Auschwitz, mas por Auschwitz.
Sabemos entre que escolhos de proibições, bem legítimos, teve de navegar o diretor Roberto Benigni para abordar o perigoso tema de sua comédia "A Vida é Bela" (1997). O que se aceita a custo numa história "engraçada" contada entre si seria ainda mais difícil de aceitar num filme de duração média e destinado a um vasto público. Brincar, como faz a primeira parte do filme, com as "simples" perseguições anteriores à Solução Final e sob um regime -o fascismo italiano- que não atingira esse grau de terror e que desde a origem ainda respirava mais o ridículo que o odioso não apresentava dificuldades e podia encontrar sua eficácia numa espécie de consenso afetivo, na confluência dessa tradição já folclórica e do humor de gueto -ou de "shtetl".

Ofender a verdade No entanto, sendo a história o que ela foi, não se podia parar por aí. Ora, a sequência do filme, situada precisamente em Auschwitz, só pode conservar esse tom de "riso entre lágrimas" sob a condição de edulcorar essa realidade de maneira a ofender em cheio não a sensibilidade, mas a verdade histórica e, de quebra, a sensibilidade.
Mas essa alteração, no cinema, é de todo modo inevitável, mesmo em registro sério, já que a realidade de um campo de concentração é propriamente irreconstituível: coisa que fica clara, por exemplo, em "A Escolha de Sofia" (1982), de Alan J. Pakula, ou em "A Lista de Schindler" (1993), de Steven Spielberg . Incapaz de ousar rir -e fazer rir- disso, Benigni precisou tentar, a suas expensas, fazer rir de outra coisa, supostamente ocorrida lá, e da qual cada um deveria saber que não poderia ocorrer assim.
O jogo com o verdadeiro e o verossímil tem regras sutis, nas quais o próprio Aristóteles, a propósito de outra coisa, meteu às vezes os pés pelas mãos. A armadilha, dessa vez, revela-se inextricável: quando não podemos fazer rir de certas coisas, mais vale não fingir, pois não vendo mais do que rimos ou choramos, não rimos nem choramos mais. A cena, a meu ver no entanto bem-sucedida, na qual Benigni deturpa para uso do filho as instruções do chefe da SS é característica dessa dificuldade: o jogo de deturpação é em si mesmo cômico e emocionante a uma só vez (o êxito está nessa liga delicada, evidentemente graças à expressão da criança, de uma pungente inocência), mas mais vale não reter muito o teor real do discurso do oficial da SS: a verdade seria de tal natureza que mataria o jogo -e a ficção em seguida.
Num ensaio também clássico, "Da Essência do Riso e do Cômico em Geral nas Artes Plásticas", Baudelaire menciona "a clássica historieta do filósofo que morreu de rir vendo um asno que comia figos". Relendo esse ensaio um pouco distante de minhas bases livrescas e numa edição desprovida de notas, permaneço algum tempo numa profunda incerteza quanto à identidade desse filósofo. É bem sabido que Demócrito ria enquanto Heráclito chorava, mas não que essa hilaridade contrastante o tenha conduzido ao túmulo. Sócrates morreu, se assim quisermos, fazendo graça com, ou antes na presença de, seus discípulos, que penavam para segui-lo nesse campo, mas morrer rindo não é morrer de rir, e não há sombra de asno nem de figos nesse caso altamente exemplar. E muito menos na banheira de Sêneca nem na alcova aquecida de Descartes, que aliás nem morreu nela, que eu saiba.

Jovialmente filosófica A morte mais jovialmente filosófica, embora algo polêmica, talvez tenha sido a do filósofo Locke, que, dizem, se apressou em passar desta para melhor a fim de escapar do fastidioso diálogo com "os senhores na Alemanha", ou seja, com Leibniz, ele próprio tendo tomado mais tarde o que bem se pode chamar a tangente para escapar de um diálogo não menos penoso com alguns senhores na Inglaterra, notadamente Isaac Newton e os seus, às voltas com a investigação de paternidade do cálculo infinitesimal.
Mas sejamos mais precisos: imobilizado por um ataque de gota e instalado para ainda assim trabalhar numa poltrona articulada, eis que o encontramos numa manhã de novembro de 1716, com o "Argenis" de John Barclay a seus pés; a história não diz se essa obra, arquétipo setecentista do romance histórico da qual ignoro até o peso, causou-lhe, ao lhe cair das mãos, muito mal aos pés para precipitar seu fim.
Quanto aos últimos dias do filósofo Immanuel Kant, eles foram muito bem imortalizados por Thomas de Quincey para que nele introduzamos algum epílogo apócrifo; basta lembrar que sua última palavra, segundo esse evangelho, foi justamente "sufficit!".
Morrer em latim, em Königsberg e num 12 de fevereiro de 1804 bem revela um último suspiro de filosofia mas também uma certa "vis comica" profissional ("idiotismo de ofício", dizia o "Sobrinho de Rameau"), como o "je vais ou je vas..." do gramático e tantas outras "ultima verba" de humoristas titulados e zelosos de suas invectivas. O próprio De Quincey sugere em meias palavras que Kant especulava, para abreviar seus sofrimentos, sobre a relativa brevidade desses meses, o que era o mesmo que visar março, ou seja, no presente caso, o mesmo que contar com suas forças. Muitas vezes é mais tarde do que pensamos.
Em minha juventude, pretendia-se que Kant não rira mais que três vezes em sua vida, três ocasiões de que o parágrafo 54 da "Crítica da Faculdade do Juízo" dariam testemunho. Dessas três, uma diz respeito à morte: "O herdeiro de um parente rico quer organizar-lhe funerais solenes, mas lamenta não conseguir levar a cabo a tarefa, pois, diz ele: "Quanto mais eu dou dinheiro a quem contratei para chorar o desaparecido, mais eles parecem felizes'; rebentamos de rir porque nossa expectativa é bruscamente abolida". Esta, como se sabe, é a definição kantiana do cômico: "O riso é um afeto que resulta do súbito aniquilamento da tensão de uma expectativa". Mas essa definição, ao que tudo indica, aplica-se tão bem, e talvez melhor ainda, à própria morte, que decerto não tem igual ("sufficit") para aniquilar subitamente (a tensão de) todas as nossas expectativas. De sorte que o caro Immanuel poderia ser quem mais bem estabeleceu a relação filosófica, que aqui nos ocupa, entre o riso e a morte.
Evidentemente, melhor que não ter rido senão três vezes é não ter rido senão uma vez (tal como Kant não se desviou senão uma vez, sabemos qual, de sua caminhada cotidiana, o que revela mais senso histórico do que se lhe costuma emprestar), a primeira e última: caso, segundo Erasmo, de um certo Crasso (avô do general), que morreu como mandava o figurino, nem que só fosse para se certificar da singularidade do fato.
Mas estou me afastando da filosofia e me antecipando indevidamente. Voltemos a meu Baudelaire velho de guerra: trata-se, diria Coluche, da história de um filósofo que morreu de rir vendo um asno que comia figos. Se um cão observa um bispo, um filósofo bem pode observar um asno -e um asno comendo figos. Mas qual filósofo, afinal, e, acessoriamente, talvez, qual asno e quais figos? À falta de notas, eu não tinha a menor idéia e me preparava para uma laboriosa pesquisa quando o acaso, ou quase, que a tudo favorece, pôs sob meus olhos esta (conclusão de) frase do escritor alemão Jean Paul: "(...) o grego Filêmon, autor cômico ainda por cima, e ainda por cima centenário, a quem um asno pastando um figo tanto o fez rir que ele morreu". Um filósofo que observa um asno comer figos bem pode ser autor cômico ainda por cima e ainda por cima centenário: até aqui nada de anormal, se negligenciarmos provisoriamente a nuança entre "comer figos" e o bastante equívoco "pastar um figo", que podemos creditar à diferença entre o alemão de Jean Paul e o francês de Baudelaire.
Mas, enfim, esse tal de Filêmon não tem nada de desconhecido, é um autor "ainda por cima" cômico, contemporâneo e rival de Menandro e fundador talvez da nova comédia ática -e, portanto, de tudo o que chamamos hoje a comédia tal qual, de Plauto a Molière e de Molière a Woody Allen. Esse grego devia saber do que se pode e mesmo do que se deve rir. Para isso não precisa ser filósofo ou, antes, eis o que está além, como diz Hamlet, de toda a vossa filosofia. "O sábio só ri tremendo", diz Baudelaire citando Bossuet. O sábio, talvez digamos melhor, só ri morrendo que ele morra de rir ou que ria de sua morte.
Vá lá quanto a Filêmon, que, ainda por cima, morreu centenário, o que é bem doce. Mas subsiste uma ligeira discordância entre a menção de Jean Paul e a de Baudelaire. Uma edição mais erudita desse último, consultada logo que possível, acabaria por esclarecer um pouco as coisas. Eis a nota apensa pelo editor: "A anedota é narrada por Valério Máximo (I, 10), por Luciano ("Macróbios'), por Erasmo ("Adágios", I, 10, 71), mas foi por Rabelais que Baudelaire tomou conhecimento dela. No capítulo 20 de "Gargântua", ouvimos Ponocrates e Eudêmon explodirem de riso a ponto de quase baterem as botas, "nem mais nem menos que Crasso, vendo um asno toleirão que comia os figos que haviam preparado para o jantar, morreu de tanto rir'" ("Oeuvres Complètes", "Bibliothèque de la Pléiade", v. 2, pág. 1.348). Confesso não estar assim tão certo da filiação, que não autorizaria especialmente Baudelaire a qualificar esse Crasso de "filósofo", salvo se tratasse de filósofo, e a tal me inclino, quem quer que possa morrer "de tanto rir".
Mas vale a pena remontar a essa suposta fonte, o dito capítulo 20 de "Gargântua". Seu texto é um pouco mais complexo que a citação que dela faz Claude Pichois; ei-la aqui: "Nem mais nem menos que Crasso, vendo um asno toleirão que comia cardos, e como Filêmon, vendo um asno que comia figos que haviam preparado para o jantar, morreu de tanto rir".A variante é notável, dos cardos aos figos: é lícito supor racionalização um tanto temerária que Crasso ri (até morrer) de ver um asno (toleirão) comer cardos porque pensa estupidamente que o cardo é coisa penosa de mastigar, e que Filêmon ri (até morrer) de ver um (outro) asno (nada toleirão) comer (ou será "pastar"?) figos que haviam preparado para o jantar, porque antecipa maliciosamente a decepção dos convivas diante da mesa vazia.
Não sei bem se uma ou outra dessas anedotas ilustra a definição kantiana do cômico ("aniquilamento da tensão de uma expectativa") ou a bergsoniana ("mecânica aplicada sobre as coisas vivas"), mas é aparentemente aqui que convergem duas tradições: a relativa a Crasso, de que Erasmo relata no lugar indicado que ele não ri senão uma vez na vida e morre à força de rir ao ver um asno comendo cardos, e aquela, atestada por Valério Máximo e Luciano e relativa a Filêmon, que ri pela última vez de um asno comendo figos. As duas invariantes do mito, diriam os etnólogos, são o asno que come o que um homem não gostaria de comer ou, ao contrário, o que os homens não deveriam tê-lo deixado comer, e o homem (Crasso, Filêmon, o "filósofo" anônimo de Baudelaire que designa talvez um desses dois) que ri até morrer desse espetáculo.
Mas minha edição de Rabelais me convida a uma nova redução, remetendo-me ao capítulo dez do mesmo "Gargântua", no qual Rabelais nos fornece uma lista, mais copiosa e que eu nos poupo, de casos de morte por "perichairie", termo aparentemente afrancesado do grego "perichareia" (ou talvez antes "perichaireia", de "chairô", "alegrar-se" o hápax está em Platão) e que se traduz corretamente por "júbilo excessivo". Essa lista, observa uma nota, procede de uma compilação do assinalado Ravisius Textor, "Officina", "que era familiar a Rabelais e na qual figura um capítulo: "Mortui Gaudio et Risu" (Daqueles que Morreram de Rir). Aqui talvez seja assimilar um pouco depressa o riso ("risus") e o júbilo ("gaudium"), mas vejo que o próprio Rabelais invoca na mesma frase, seguindo Avicena, os efeitos "do açafrão, que tanto alegra o coração quanto lhe subtrai a vida, caso ingerido em dose excessiva, por resolução e dilatação supérflua". Riso ou júbilo, nos dois casos, é aparentemente por dose excessiva que deles morremos.
Resta que alguém, pelo menos, terá um dia compilado um catálogo, logo ultrapassado, daqueles que antes dele (quero dizer: antes de seu tempo) morreram de rir. Sabemos muito bem que se trata de um modo de tomar ao pé da letra uma figura (em "figure" [figura", diria Hugo, há "figue" [figo"). "Morto de rir" é hoje (ao menos era ontem à noite, a língua corre rápido) uma expressão bastante corrente entre os "jovens" (ou menos jovens, a vida também corre rápido) para saudar, muito sobriamente, embora por hipérbole, uma situação medianamente cômica. Ela não existe sem concorrência: "Chorei de rir, explodi de rir, rolei de rir" etc., também hipérboles, ou talvez metáforas, que costumamos sublinhar com um advérbio, num toque fortemente antifrástico: "Literalmente rolei de rir". Literalmente funciona, com efeito, (ainda) hoje, como um infalível realce de figura; suponho que seja o efeito perverso de um louvável desejo de reforço: "Rolei de rir" estando batido, tal como toda figura, e acabando por significar muito literalmente "achei aquilo bem engraçado", é necessário, como dizemos também, "dar (pelo menos) uma polida" para re-figurar a metáfora extenuada, apresentando-a explicitamente como "literal", o que é, afinal de contas, a pretensão implícita, embora nada séria, de toda figura, que só figura em virtude de seu sentido literal.
Morrer (verdadeiramente) de rir é, assim, repito, um modo de tomar (em ato) uma figura ao pé da letra. Sempre no mesmo "Gargântua" (capítulo 11), Rabelais enumera numa boa página um bocadinho longa as diversas figuras literalizadas em ato pelo herói, que por exemplo afia as suas garras, volta à vaca-fria, põe a carroça na frente dos bois, faz primeiro o arroz-com-feijão, procura pêlo em ovo e, mesmo, mais perigosamente, desprega as bandeiras para rir.
Todas essas performances, desde Filêmon, eram diversamente suspeitas de ficcionalidade lendária. Eis aqui uma que não é, de vez que assistimos, ao vivo e em plena Paris, à cena, menos trágica, mas talvez mais dolorosa para a vítima: vítima, entenda-se, de sua relação com o riso -e sem dúvida ainda mais de sua relação com a linguagem. Trata-se de Madame Verdurin ("Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust), em pessoa, "a quem, tanto ela tinha por hábito tomar à risca as expressões figuradas das emoções que experimentava, o doutor Cottard (um jovem novato nessa época) precisou um dia recolocar-lhe a mandíbula que ela deslocara de tanto rir".
Uma coisa -terá ficado claro- é literalizar uma figura em palavra, outra é tomá-la ao pé da letra, mas em ato, coisa quase sempre arriscada, pois não se pode impunemente levar a língua à risca nem engoli-la verdadeiramente. "Morrer de rir" não é mais que um modo de falar. Morrer de rir é um modo de viver, e ninguém ainda retornou a tempo para dizer se é o mais seguro e/ ou o mais filosófico.
Essas "clássicas historietas" me parecem impor, cada qual a seu modo, a não menos clássica e dolorosa pergunta: "Pode-se rir de tudo?". À qual uma boa resposta bem poderia ser uma outra pergunta, esta sim verdadeiramente filosófica: "Do que mais, afinal, você quer que a gente ria?".

Gérard Genette (1930) é teórico da literatura francês e professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. É autor de, entre outros, "Figuras" (Perspectiva). Este texto foi publicado na "Revue d'Esthétique".

Tradução de José Marcos Macedo.


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