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A obra esperta
JORGE COLI
especial para a Folha
Quando as obras de arte se encontram no passado, a
relação com elas parece simples. Já foram selecionadas,
estão lá, receberam análises e críticas através dos tempos. Quando surgem no agora, menos enquadradas,
torna-se mais difícil emitir juízos, descobrir uma posição satisfatória para enfrentá-las. É a síndrome daquele
espectador de festival que, durante a projeção do filme,
fica pensando: o que é que eu vou dizer depois? Subordinar a fruição a critérios que se encontram fora dela,
dependendo de parâmetros sociais, da imagem que o
"fruidor" quer projetar de si mesmo, é obstáculo que seria melhor evitar. Ocorre também que a própria obra
manipule o ambicioso incauto, oferecendo o que ele
precisa para afirmar-se como imagina ser.
Essas observações gerais foram provocadas por um
romance que talvez não valha tanto. Ele pode, porém,
ser tomado como exemplo, ou sintoma. Trata-se de
"Peixe Dourado", do francês Jean-Marie Le Clézio, cuja
tradução recente foi publicada pela Companhia das Letras. Le Clézio é autor com público garantido na França
e com vários livros editados no Brasil. Emprega uma escrita esmerada, elegante, que se quer, em cada frase,
poética e profunda. Seus personagens, vítimas vulneráveis, suas situações, exóticas, são concebidos para encontrar um eco nos bons sentimentos do leitor, que termina o livro encantado ao confirmar-se sensível e elevado. Forma-se, sem esforço, um pacto entre o escritor e
seu público, conquistado de antemão, numa troca que
se alimenta das piores generosidades.
Consumo - No parque Ibirapuera, em SP, a mostra
"Parade" reúne um grande número de obras francesas
do século 20. São sempre interessantes, quando não excepcionais. O espectador, porém, é obrigado a fazer um
grande esforço para concentrar-se diante delas. As escolhas foram heterogêneas e sem rigor, não se desenham coerências, e o resultado é o de impressões muito
confusas. Acresce-se a iluminação deficiente e a apresentação, que esvazia os poderes das obras. O percurso
obrigatório induz a um passeio distraído e desconexo.
Nessa exposição, a arte parece ser engolida pelo cenário,
sem dúvida teatral e luxuoso.
Lenços - "Agonia de uma Vida", "Sublime Obsessão",
"Palavras ao Vento" são títulos de alguns melodramas
de Douglas Sirk (1900-1987). "Réquiem para um Sonho" não destoaria entre eles. O recente filme de Darren
Aronofsky poderia, num jogo de associações, ser percebido como a continuação de "Tudo O Que o Céu Permite", realizado por Sirk em 1956. Jane Wyman teria se casado com Rock Hudson, enviuvado, empobrecido e ido
morar em Coney Island, no Brooklin. A televisão, segundo a profecia do filme de Sirk, resta como sua única
companheira e, mais, leva-a à loucura. Seu filho adolescente envereda pelo caminho das drogas as mais violentas e descamba tragicamente.
Aronofsky talvez não tenha pensado nessa afinidade
com Sirk, mas é certo que seu filme, apesar do ritmo célere que pulsa na cadência de clipes publicitários, lembra, muito, o espírito do melodrama. Ellen Burstyn, no
papel da mãe, atinge o patético mais desesperado, capaz
de comover qualquer espectador, por insensível que seja. Como nas velhas fitas sentimentais, "Réquiem para
um Sonho" se baseia no jogo entre a felicidade imaginada e o destino que a contraria.
Desperdício - Favorito de Buñuel em inúmeros filmes, desde 1956; favorito de Godard, desde "O Desprezo" (1963); dirigido por Chabrol, Bellochio e Ferreri;
Michel Piccoli atuou ainda em "Topázio" (1969), de
Hitchcock. É um formidável ator. Pode ser visto no recente "Tudo Bem, até Logo", de Claude Mouriéras. Nele, a atuação de Piccoli é toda feita de nuanças e fragilidades. À sua volta gravita, ainda, um excelente elenco
feminino, encabeçado por Miou-Miou. É pena, no entanto, que a direção medíocre atole o filme, e nem esses
ótimos intérpretes conseguem salvá-lo da indiferença e
do tédio.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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