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História do avesso
Filmes de cineastas como Miklós Jancsó e Clint Eastwood, com pontos
de vista múltiplos, são exemplos a seguir para retratar
os conflitos atuais
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Ver os dois lados de
uma disputa é uma
arte que só podemos desejar que
fosse mais praticada e cultivada do que parece ser
hoje, para evitar os custos humanos dos conflitos violentos.
As escolas poderiam ajudar
nesse sentido, ensinando os futuros cidadãos a evitar a suposição de que outras pessoas,
grupos ou nações são inferiores
ou menos racionais ou mais
egoístas que nós mesmos ou
nossa comunidade.
Os romancistas há muito deram uma contribuição para esse tipo de entendimento, educando a emoção e a razão dos
leitores ao incentivá-los a se
identificarem, pelo menos
temporariamente, com pessoas e problemas diferentes
dos seus.
No entanto, se há um meio
apropriado para nos conscientizarmos da variedade de atitudes e preconceitos humanos,
certamente é o cinema, em que
o termo "ponto de vista" tem
um significado literal assim como um metafórico, e é possível
para a câmera mover-se à vontade entre visões opostas dos
mesmos fatos.
Não estou certo se os diretores de cinema têm usado esse
modo de educar o público com
a freqüência devida, mas não é
muito difícil lembrar alguns
exemplos que se destacam.
Um filme húngaro
Nesse sentido, um dos meus
filmes favoritos faz 40 anos
neste ano. É um filme húngaro,
encomendado pelos russos na
época do comunismo para comemorar o 50º aniversário da
Revolução Bolchevique -é um
pensamento purificador que
essa revolução tenha ocorrido
há 90 anos.
Dirigido por Miklós Jancsó
na época em que ele começava
a ser conhecido internacionalmente, é ambientado em 1918,
em plena guerra civil russa, travada de 1917 a 1922 entre os defensores dos bolcheviques e
uma aliança de forças antibolcheviques liderada pelo general
Anton Denikin, o almirante
Aleksandr Kolchak e outros.
Conhecido em húngaro como "Csillagosok, Katonák" (Estrelas, Soldados) e em inglês como "The Red and the White"
(Os Vermelhos e os Brancos), o
filme, que data de 1967, se passa
em uma aldeia russa capturada
primeiro pelos soldados vermelhos e depois pelos brancos.
Os dois grupos são apresentados de maneiras diferentes
-a brutalidade dos brancos é
mais formal e disciplinada que
a dos vermelhos-, mas é quase
inevitável, e sem dúvida foi planejado pelo diretor que o espectador não compare os pontos de vista dos vermelhos e dos
brancos, mas o dos soldados,
sejam de que lado forem, e o
dos infelizes civis, que não querem mal a ninguém, mas são os
que realmente sofrem.
Quase 40 anos depois, dois
filmes de 2006, ambos dirigidos por Clint Eastwood, "A
Conquista da Honra" e "Cartas
de Iwo Jima" [DVD Warner],
abordam de outra maneira o
problema dos pontos de vista
opostos.
De certa forma esses filmes
formam uma dupla improvável, assimétrica. Eles tratam do
mesmo acontecimento -a captura pelos americanos da ilha
japonesa de Iwo Jima-, mas de
ângulos muito diferentes.
"A Conquista" não é tanto
um filme de guerra -"Eu não
me preparei para fazer um filme de guerra", disse Eastwood- quanto uma meditação
sobre a celebridade, sua natureza acidental e sua manipulação pela mídia.
O hasteamento da bandeira
americana no monte Suribachi
ganha fama porque foi captado
numa foto, e os três sobreviventes do evento -se é que
realmente participaram dele-
são exibidos nos EUA para angariar dinheiro para os bônus
de guerra. No entanto o filme
inclui um relato da captura da
ilha do ponto de vista norte-americano.
"Cartas de Iwo Jima", por
outro lado, é notável porque
apresenta para o público americano a batalha vista pelo lado
japonês. O filme foi rodado em
japonês, com atores japoneses
como Ken Watanabe, mais conhecido no papel de samurais.
A abordagem de Eastwood é
ainda mais notável e de fato corajosa, diante das antigas opiniões americanas sobre o papel
dos japoneses na Segunda
Guerra, começando com um
ato de traição, o ataque não-anunciado a Pearl Harbor, e
continuando com o tratamento
desumano de prisioneiros.
A resistência
"Cartas" consegue de maneira admirável transmitir a idéia
de que os japoneses são pessoas
comuns, que na maior parte do
tempo pensam em suas famílias, assim como os americanos
retratados em "A Conquista".
O filme também sugere que
os soldados japoneses não estavam mais confiantes na vitória.
Pelo contrário, eles são apresentados como estoicamente
resignados à derrota e à morte
inevitáveis, acreditando que é
seu dever continuar resistindo,
apesar de os invasores americanos estarem em número muito
superior.
Nos dois filmes se faz um
bom uso, embora infreqüente,
de imagens da ilha feitas do
ponto de vista dos atacantes e
dos defensores.
Para qualquer um que já tenha visto "A Conquista", em
que as forças americanas que
invadem a ilha esperam uma
feroz resistência, é um pouco
chocante ver a cena repetida,
desta vez sabendo que os japoneses estão com escassez de
homens e de munição.
É intrigante o fato de ter sido
Clint Eastwood quem decidiu
fazer esses dois filmes, já que
sua fama começou por sua
atuação em papéis heróicos em
filmes de western como "Por
Uns Dólares a Mais" (1967), em
que era fácil ver a distinção entre o lado certo e o errado.
É igualmente intrigante -e
talvez um sinal de esperança
política- que essa dupla de filmes, minando qualquer comparação simples entre heróis e
vilões, tenha atraído o público
americano na era da chamada
"guerra ao terrorismo".
"Cartas de Iwo Jima" recebeu o Globo de Ouro [de filme
em idioma estrangeiro] e foi indicado para o Oscar de melhor
filme.
Sim, há uma longa e difícil
distância entre retratar os japoneses com simpatia, 60 anos
depois da Segunda Guerra
Mundial, e apresentar os vários
pontos de vista dos árabes ou
dos muçulmanos hoje.
Mas, se um diretor de cinema
importante não tomar essa iniciativa, como as pessoas vão
aprender a ver os dois lados?
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .
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