São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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História do avesso

Filmes de cineastas como Miklós Jancsó e Clint Eastwood, com pontos de vista múltiplos, são exemplos a seguir para retratar os conflitos atuais

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Ver os dois lados de uma disputa é uma arte que só podemos desejar que fosse mais praticada e cultivada do que parece ser hoje, para evitar os custos humanos dos conflitos violentos. As escolas poderiam ajudar nesse sentido, ensinando os futuros cidadãos a evitar a suposição de que outras pessoas, grupos ou nações são inferiores ou menos racionais ou mais egoístas que nós mesmos ou nossa comunidade.
Os romancistas há muito deram uma contribuição para esse tipo de entendimento, educando a emoção e a razão dos leitores ao incentivá-los a se identificarem, pelo menos temporariamente, com pessoas e problemas diferentes dos seus.
No entanto, se há um meio apropriado para nos conscientizarmos da variedade de atitudes e preconceitos humanos, certamente é o cinema, em que o termo "ponto de vista" tem um significado literal assim como um metafórico, e é possível para a câmera mover-se à vontade entre visões opostas dos mesmos fatos.
Não estou certo se os diretores de cinema têm usado esse modo de educar o público com a freqüência devida, mas não é muito difícil lembrar alguns exemplos que se destacam.

Um filme húngaro
Nesse sentido, um dos meus filmes favoritos faz 40 anos neste ano. É um filme húngaro, encomendado pelos russos na época do comunismo para comemorar o 50º aniversário da Revolução Bolchevique -é um pensamento purificador que essa revolução tenha ocorrido há 90 anos.
Dirigido por Miklós Jancsó na época em que ele começava a ser conhecido internacionalmente, é ambientado em 1918, em plena guerra civil russa, travada de 1917 a 1922 entre os defensores dos bolcheviques e uma aliança de forças antibolcheviques liderada pelo general Anton Denikin, o almirante Aleksandr Kolchak e outros. Conhecido em húngaro como "Csillagosok, Katonák" (Estrelas, Soldados) e em inglês como "The Red and the White" (Os Vermelhos e os Brancos), o filme, que data de 1967, se passa em uma aldeia russa capturada primeiro pelos soldados vermelhos e depois pelos brancos.
Os dois grupos são apresentados de maneiras diferentes -a brutalidade dos brancos é mais formal e disciplinada que a dos vermelhos-, mas é quase inevitável, e sem dúvida foi planejado pelo diretor que o espectador não compare os pontos de vista dos vermelhos e dos brancos, mas o dos soldados, sejam de que lado forem, e o dos infelizes civis, que não querem mal a ninguém, mas são os que realmente sofrem.
Quase 40 anos depois, dois filmes de 2006, ambos dirigidos por Clint Eastwood, "A Conquista da Honra" e "Cartas de Iwo Jima" [DVD Warner], abordam de outra maneira o problema dos pontos de vista opostos.
De certa forma esses filmes formam uma dupla improvável, assimétrica. Eles tratam do mesmo acontecimento -a captura pelos americanos da ilha japonesa de Iwo Jima-, mas de ângulos muito diferentes. "A Conquista" não é tanto um filme de guerra -"Eu não me preparei para fazer um filme de guerra", disse Eastwood- quanto uma meditação sobre a celebridade, sua natureza acidental e sua manipulação pela mídia.
O hasteamento da bandeira americana no monte Suribachi ganha fama porque foi captado numa foto, e os três sobreviventes do evento -se é que realmente participaram dele- são exibidos nos EUA para angariar dinheiro para os bônus de guerra. No entanto o filme inclui um relato da captura da ilha do ponto de vista norte-americano. "Cartas de Iwo Jima", por outro lado, é notável porque apresenta para o público americano a batalha vista pelo lado japonês. O filme foi rodado em japonês, com atores japoneses como Ken Watanabe, mais conhecido no papel de samurais.
A abordagem de Eastwood é ainda mais notável e de fato corajosa, diante das antigas opiniões americanas sobre o papel dos japoneses na Segunda Guerra, começando com um ato de traição, o ataque não-anunciado a Pearl Harbor, e continuando com o tratamento desumano de prisioneiros.

A resistência
"Cartas" consegue de maneira admirável transmitir a idéia de que os japoneses são pessoas comuns, que na maior parte do tempo pensam em suas famílias, assim como os americanos retratados em "A Conquista".
O filme também sugere que os soldados japoneses não estavam mais confiantes na vitória. Pelo contrário, eles são apresentados como estoicamente resignados à derrota e à morte inevitáveis, acreditando que é seu dever continuar resistindo, apesar de os invasores americanos estarem em número muito superior.
Nos dois filmes se faz um bom uso, embora infreqüente, de imagens da ilha feitas do ponto de vista dos atacantes e dos defensores.
Para qualquer um que já tenha visto "A Conquista", em que as forças americanas que invadem a ilha esperam uma feroz resistência, é um pouco chocante ver a cena repetida, desta vez sabendo que os japoneses estão com escassez de homens e de munição.
É intrigante o fato de ter sido Clint Eastwood quem decidiu fazer esses dois filmes, já que sua fama começou por sua atuação em papéis heróicos em filmes de western como "Por Uns Dólares a Mais" (1967), em que era fácil ver a distinção entre o lado certo e o errado.
É igualmente intrigante -e talvez um sinal de esperança política- que essa dupla de filmes, minando qualquer comparação simples entre heróis e vilões, tenha atraído o público americano na era da chamada "guerra ao terrorismo". "Cartas de Iwo Jima" recebeu o Globo de Ouro [de filme em idioma estrangeiro] e foi indicado para o Oscar de melhor filme.
Sim, há uma longa e difícil distância entre retratar os japoneses com simpatia, 60 anos depois da Segunda Guerra Mundial, e apresentar os vários pontos de vista dos árabes ou dos muçulmanos hoje. Mas, se um diretor de cinema importante não tomar essa iniciativa, como as pessoas vão aprender a ver os dois lados?


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .


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