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Sociedade das letras
O filólogo alemão Erich Auerbach e os brasileiros Antonio Candido, Roberto Schwarz e Raymundo Faoro são
tema de 2 lançamentos
LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
que se encontra no
ponto de convergência entre crítica literária, sociologia, filologia,
erudição, elegância de linguagem, empenho humanista solidário com aquela antiga generalidade chamada "o homem"?
O leitor brasileiro pode dizer
que nesse ponto está a obra de
Antonio Candido; o leitor informado na tradição ampla do
Ocidente pronunciará o nome
de Erich Auerbach.
E os dois têm razão: marcadas algumas diferenças (em
Candido, aquele "homem" está
mais situado política e socialmente do que em Auerbach,
por exemplo), estamos tratando de obra maiúscula, que alimenta a compreensão do mundo e por certo permanecerá iluminando o debate por tempos.
Esse paralelo é uma das chaves do excelente estudo de
Leopoldo Waizbort, "A Passagem do Três ao Um", que vem a
público de mãos dadas com
"Ensaios de Literatura Ocidental", de Erich Auerbach, numa
jogada editorial ensaiada que é
digna dos melhores aplausos.
Comentadores
Waizbort, professor de sociologia na USP, precisa da divulgação do novo volume de Auerbach para fazer sentido, porque
seu estudo é, dito em poucas e
aproximativas palavras, uma
medição da presença do autor
de "Mimesis" na obra de três
dos maiores comentadores de
literatura brasileiros: Raymundo Faoro, Roberto Schwarz e
Antonio Candido.
Isso tudo sem deixar de ser
uma homenagem a Auerbach,
na forma de uma profunda e
clara análise de seus pressupostos e de sua prática crítica, e
sendo ainda, por cima, uma
contribuição forte para o debate da ciência social e da literatura no Brasil.
Influência latente
Sociologia e crítica literária
são dois elementos do subtítulo; o terceiro termo é a filologia,
nome da disciplina acadêmica
em que Auerbach militou; o
que se insinua no título é que os
quatro, Faoro, Schwarz, Candido e Auerbach, caminham para
uma síntese, para o "um".
Por fora do eixo principal da
exposição, Waizbort discretamente reivindica que os brasileiros permaneceram sociólogos, pela via da filologia.
Não é pouco, e Waizbort se
armou para a tarefa.
Começa que seu texto flui
num andamento inteligente,
agradável e desafiador ao mesmo tempo, que combina análise minuciosa e erudição no patamar sempre instável do ensaio, ia dizer montaigniano,
não fosse o autor alguém afeito
ao ensaio inventivo da tradição
acadêmica alemã, com Simmel,
Adorno e Benjamin.
Acresce que o livro, de edição
rara no mercado brasileiro (capa dura, revisão criteriosa, índice onomástico), acolheu um
sem-fim de notas de pé de página que dão um calor para a argumentação: são dezenas, a
ponto de as páginas serem freqüentemente divididas pela
metade e muitas das notas são
longas e prenhes de sugestões
que ampliam a conversa, mas
sem perder o foco.
Terceiro ponto, a leitura vai
deixando evidente que Waizbort lê com intimidade toda a
extensão da obra dos quatro
críticos que são seu objeto preferencial, tendo também notável manejo da obra de Machado
de Assis, ponto nervoso de dois
terços de seu estudo.
Não é pouco.
A primeira parte do trabalho
compara Faoro e Schwarz, tendo como centro "Machado de
Assis - A Pirâmide e o Trapézio" [ed. Globo], de 1974, e "Ao
Vencedor as Batatas" [ed. 34],
de 1977; ali, o que se procura é
entender os procedimentos
dos dois acerca da avaliação do
realismo de Machado de Assis,
vistas as coisas sempre a partir
de Auerbach.
Chama a atenção a força com
que repõe o valor do estudo de
Faoro, sem demasias que obscureçam os acertos lukacsianos
e adornianos de Schwarz, mas
também sem o filtro ultra-restritivo de certa prática uspiana
que torce o nariz para Weber e
absolutiza o marxismo.
A segunda e mais extensa
parte dedica toda a energia a
entender o processo interpretativo de Antonio Candido. Caminha-se de depoimentos diretos do autor da "Formação da
Literatura Brasileira" [ed. Ouro
sobre Azul], em entrevistas e
artigos menores, até as profundezas epistemológicas de seus
principais trabalhos, com ganhos apreciáveis.
Por exemplo a observação
muito original e de grande alcance crítico de que, assim como Machado é o ponto de chegada da formação do sistema literário brasileiro, também
Candido é o ponto de chegada
do, digamos, sistema intelectual no Brasil.
Qual modernismo?
Os dois têm explícita consciência da tradição local que
herdam e ajudam a enunciar
tanto quanto dialogam altivamente com as informações estrangeiras, de tal forma que podem usufruir da liberdade criativa nascida da diversificação,
da especialização das posições
no campo em que atuam.
Há passos a dar depois disso,
por exemplo o exame político
(mas também estético) da naturalização da visada paulistana, modernista no sentido estrito da Semana de 22, nesse
processo todo, naturalização
que cobra preço alto (afinal, havia mais de uma possibilidade
modernista nos anos entre
1910 e 1930, e só uma parece ter
direito ao sol intelectual brasileiro), mas que passa batida no
trabalho de Waizbort.
Claro, não é seu horizonte,
pelo contrário -o ensaio quer é
o mapeamento do debate entre
os três brasileiros e os notáveis
filólogos e sociólogos alemães,
para saber, como disse sobre
outro tema Celso Furtado, das
condições da internalização
das decisões, neste caso intelectuais.
Ensaios decisivos
Do livro de Auerbach, haveria tanto a dizer que vale ficar
em uma generalidade apenas:
depois de "Mimesis", daquela
"Introdução aos Estudos Literários" [ed. Cultrix] que era lida
nos cursos de letras nos anos 70
e que foi banida por uma avalanche anódina de modas cada
vez menos inteligentes e críticas, e ainda dos estudos sobre
Dante, tem agora o leitor brasileiro acesso a alguns decisivos
ensaios, como aquele sobre
Montaigne ou sobre Baudelaire, de leitura inadiável.
Se não for pelo cultivo do debate intelectual, sempre precário na universidade brasileira
(e não só nela), que seja pelo
sentido de fundo do trabalho de
Auerbach: apresentando o volume, diz o mesmo Waizbort
que a filologia do grande crítico
alemão tem como objeto a "história da humanidade levada à
expressão de si".
Não é pequena a pretensão, é
vasta a tarefa, tudo tende ao
inabarcável. Auerbach é dos
melhores guias imagináveis para tudo isso.
LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e autor de "Literatura Brasileira - Modos de
Usar" (L&PM).
A PASSAGEM DO TRÊS AO UM
Autor: Leopoldo Waizbort
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/
3218-1444)
Quanto: R$ 49 (344 págs.)
ENSAIOS DE LITERATURA
OCIDENTAL
Autor: Erich Auerbach
Tradução: Samuel Titan Jr. e José
Marcos Mariani de Macedo
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/ 3032-6755)
Quanto: R$ 46 (384 págs.)
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