São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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Sociedade das letras

O filólogo alemão Erich Auerbach e os brasileiros Antonio Candido, Roberto Schwarz e Raymundo Faoro são tema de 2 lançamentos

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que se encontra no ponto de convergência entre crítica literária, sociologia, filologia, erudição, elegância de linguagem, empenho humanista solidário com aquela antiga generalidade chamada "o homem"? O leitor brasileiro pode dizer que nesse ponto está a obra de Antonio Candido; o leitor informado na tradição ampla do Ocidente pronunciará o nome de Erich Auerbach.
E os dois têm razão: marcadas algumas diferenças (em Candido, aquele "homem" está mais situado política e socialmente do que em Auerbach, por exemplo), estamos tratando de obra maiúscula, que alimenta a compreensão do mundo e por certo permanecerá iluminando o debate por tempos.
Esse paralelo é uma das chaves do excelente estudo de Leopoldo Waizbort, "A Passagem do Três ao Um", que vem a público de mãos dadas com "Ensaios de Literatura Ocidental", de Erich Auerbach, numa jogada editorial ensaiada que é digna dos melhores aplausos.

Comentadores
Waizbort, professor de sociologia na USP, precisa da divulgação do novo volume de Auerbach para fazer sentido, porque seu estudo é, dito em poucas e aproximativas palavras, uma medição da presença do autor de "Mimesis" na obra de três dos maiores comentadores de literatura brasileiros: Raymundo Faoro, Roberto Schwarz e Antonio Candido.
Isso tudo sem deixar de ser uma homenagem a Auerbach, na forma de uma profunda e clara análise de seus pressupostos e de sua prática crítica, e sendo ainda, por cima, uma contribuição forte para o debate da ciência social e da literatura no Brasil.

Influência latente
Sociologia e crítica literária são dois elementos do subtítulo; o terceiro termo é a filologia, nome da disciplina acadêmica em que Auerbach militou; o que se insinua no título é que os quatro, Faoro, Schwarz, Candido e Auerbach, caminham para uma síntese, para o "um". Por fora do eixo principal da exposição, Waizbort discretamente reivindica que os brasileiros permaneceram sociólogos, pela via da filologia.
Não é pouco, e Waizbort se armou para a tarefa. Começa que seu texto flui num andamento inteligente, agradável e desafiador ao mesmo tempo, que combina análise minuciosa e erudição no patamar sempre instável do ensaio, ia dizer montaigniano, não fosse o autor alguém afeito ao ensaio inventivo da tradição acadêmica alemã, com Simmel, Adorno e Benjamin.
Acresce que o livro, de edição rara no mercado brasileiro (capa dura, revisão criteriosa, índice onomástico), acolheu um sem-fim de notas de pé de página que dão um calor para a argumentação: são dezenas, a ponto de as páginas serem freqüentemente divididas pela metade e muitas das notas são longas e prenhes de sugestões que ampliam a conversa, mas sem perder o foco.
Terceiro ponto, a leitura vai deixando evidente que Waizbort lê com intimidade toda a extensão da obra dos quatro críticos que são seu objeto preferencial, tendo também notável manejo da obra de Machado de Assis, ponto nervoso de dois terços de seu estudo. Não é pouco.
A primeira parte do trabalho compara Faoro e Schwarz, tendo como centro "Machado de Assis - A Pirâmide e o Trapézio" [ed. Globo], de 1974, e "Ao Vencedor as Batatas" [ed. 34], de 1977; ali, o que se procura é entender os procedimentos dos dois acerca da avaliação do realismo de Machado de Assis, vistas as coisas sempre a partir de Auerbach.
Chama a atenção a força com que repõe o valor do estudo de Faoro, sem demasias que obscureçam os acertos lukacsianos e adornianos de Schwarz, mas também sem o filtro ultra-restritivo de certa prática uspiana que torce o nariz para Weber e absolutiza o marxismo.
A segunda e mais extensa parte dedica toda a energia a entender o processo interpretativo de Antonio Candido. Caminha-se de depoimentos diretos do autor da "Formação da Literatura Brasileira" [ed. Ouro sobre Azul], em entrevistas e artigos menores, até as profundezas epistemológicas de seus principais trabalhos, com ganhos apreciáveis.
Por exemplo a observação muito original e de grande alcance crítico de que, assim como Machado é o ponto de chegada da formação do sistema literário brasileiro, também Candido é o ponto de chegada do, digamos, sistema intelectual no Brasil.

Qual modernismo?
Os dois têm explícita consciência da tradição local que herdam e ajudam a enunciar tanto quanto dialogam altivamente com as informações estrangeiras, de tal forma que podem usufruir da liberdade criativa nascida da diversificação, da especialização das posições no campo em que atuam.
Há passos a dar depois disso, por exemplo o exame político (mas também estético) da naturalização da visada paulistana, modernista no sentido estrito da Semana de 22, nesse processo todo, naturalização que cobra preço alto (afinal, havia mais de uma possibilidade modernista nos anos entre 1910 e 1930, e só uma parece ter direito ao sol intelectual brasileiro), mas que passa batida no trabalho de Waizbort.
Claro, não é seu horizonte, pelo contrário -o ensaio quer é o mapeamento do debate entre os três brasileiros e os notáveis filólogos e sociólogos alemães, para saber, como disse sobre outro tema Celso Furtado, das condições da internalização das decisões, neste caso intelectuais.

Ensaios decisivos
Do livro de Auerbach, haveria tanto a dizer que vale ficar em uma generalidade apenas: depois de "Mimesis", daquela "Introdução aos Estudos Literários" [ed. Cultrix] que era lida nos cursos de letras nos anos 70 e que foi banida por uma avalanche anódina de modas cada vez menos inteligentes e críticas, e ainda dos estudos sobre Dante, tem agora o leitor brasileiro acesso a alguns decisivos ensaios, como aquele sobre Montaigne ou sobre Baudelaire, de leitura inadiável.
Se não for pelo cultivo do debate intelectual, sempre precário na universidade brasileira (e não só nela), que seja pelo sentido de fundo do trabalho de Auerbach: apresentando o volume, diz o mesmo Waizbort que a filologia do grande crítico alemão tem como objeto a "história da humanidade levada à expressão de si".
Não é pequena a pretensão, é vasta a tarefa, tudo tende ao inabarcável. Auerbach é dos melhores guias imagináveis para tudo isso.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Literatura Brasileira - Modos de Usar" (L&PM).


A PASSAGEM DO TRÊS AO UM
Autor:
Leopoldo Waizbort
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 49 (344 págs.)

ENSAIOS DE LITERATURA OCIDENTAL
Autor:
Erich Auerbach
Tradução: Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/ 3032-6755)
Quanto: R$ 46 (384 págs.)



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