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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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DNA ROTULADO

BIÓLOGO EXPLICA POR QUE A ESTAMPAGEM GENÔMICA PODE REVOLUCIONAR A GENÉTICA NESTE SÉCULO

Reprodução
Esculturas da série "Big Baby" (técnica mista), de Ron Mueck


Da Redação

O termo "estampagem genômica" soa exótico o bastante para assustar um leigo. Mas, numa época em que pseudocientistas malucos correm uns contra os outros para produzir clones humanos, convém conhecer seu significado. Ele é igualmente assustador: grosso modo, trata-se de um fenômeno que impede que as cópias genéticas de mamíferos sejam normais.
A estampagem -"genetic imprinting", em inglês- é uma propriedade ainda pouco conhecida do genoma. Durante o embaralhamento dos genes do pai e da mãe para a formação de um novo indivíduo, certas sequências de DNA de um dos lados, marcadas com uma espécie de "selo de origem", silenciam suas equivalentes do outro. Assim, tornam-se a única cópia ativa na produção de proteínas ou na regulagem do funcionamento de outros genes. Alguns geneticistas acham que o fenômeno reflete uma disputa evolutiva entre o DNA materno e o paterno pelo predomínio no organismo.
No caso da clonagem, como não há "selo" no DNA -que pertence a um único genitor-, a regulagem dos genes que seria feita pela estampagem simplesmente não funciona. O resultado são aberrações genéticas de todo tipo, que vão desde morte do feto até obesidade, artrite, câncer e anomalias na placenta.
A entrada em campo da estampagem sugere aos geneticistas uma pausa para reflexão. Ela indica, por um lado, que nem tudo no genoma pode ser reduzido à leitura pura e simples da informação do DNA -há instruções comandando o desenvolvimento que não provêm da sequência. Por outro, que essa mesma sequência pode receber estampas diferentes, que são apagadas e reimpressas durante a evolução.
Um dos poucos cientistas que se dedicaram a estudar a estampagem é o geneticista evolutivo David Haig, da Universidade Harvard, no Estado norte-americano de Massachusetts. Ele estuda os conflitos e a sua resolução no interior do genoma. ""A área à qual dediquei atenção maior", diz ele, ""é um fenômeno novo na biologia molecular conhecido como estampagem genômica, que é uma situação na qual uma sequência de DNA pode apresentar comportamentos condicionais, dependendo de ser herança materna -ou seja, do óvulo- ou paterna -do espermatozóide."
O trabalho de Haig forma uma interseção com o de sociobiólogos como Edward O. Wilson, também de Harvard, e psicólogos evolucionistas como Steven Pinker, do Massachusetts Institute of Technology. No artigo a seguir, Haig relata a descoberta da estampagem e conta como ela deve mudar a biologia neste século.

Por David Haig

Meu trabalho ao longo dos últimos dez anos, mais ou menos, girou em torno principalmente dos conflitos no interior do organismo individual. Em boa parte da biologia evolucionista, a metáfora implícita é que o organismo é uma máquina, ou, mais especificamente, um computador, que procura resolver algum problema e que maximiza a boa forma física. Maximizar a boa forma física é análogo a maximizar uma função de utilidade na economia. Eu me interesso por situações nas quais há conflitos internos ao indivíduo, nas quais agentes diferentes dentro do ser possuem funções de boa forma distintas, além de políticas internas resultantes desses conflitos de interesses.
A área à qual venho dedicando minha atenção maior é um fenômeno novo na biologia molecular conhecido como estampagem genômica, que é uma situação na qual uma sequência de DNA pode apresentar comportamentos condicionais, dependendo de ser herança materna -ou seja, do óvulo- ou paterna -do espermatozóide. O fenômeno é chamado de estampagem porque a idéia básica é que existe uma estampa que é impressa sobre o DNA dentro do ovário da mãe ou dos testículos do pai, estampa essa que marca o DNA como sendo materno ou paterno e que influi sobre seu padrão de expressão -o que o gene vai fazer na próxima geração, tanto na prole feminina quanto na masculina.
É um processo complicado, porque a estampa pode ser apagada e reimpressa. Por exemplo, os genes maternos no meu corpo, quando os repasso para meus filhos, serão genes paternos, apresentando comportamento paterno. Se minha filha passar genes paternos aos filhos dela, mesmo que ela os tenha recebido de mim, como genes paternos, o que ela passará serão genes maternos. Os biólogos moleculares estão especialmente interessados na natureza dessas estampas e em como é possível modificar o DNA de alguma maneira que seja hereditária, mas que possa ser refeita. Minha área de interesse específica tem sido compreender por que um comportamento tão estranho evolui. Venho procurando encontrar situações nas quais o que é melhor para os genes de origem materna é diferente daquilo que maximiza a boa forma dos genes de origem paterna.
A melhor maneira de compreender a teoria subjacente é com a ajuda de uma anedota famosa atribuída ao grande geneticista britânico J.B.S. Haldane, sobre o qual se dizia que ele daria sua vida para salvar mais do que dois irmãos seus que estivessem se afogando ou mais do que oito primos na mesma situação. A lógica é que, se Haldane está preocupado apenas em transmitir seus genes às gerações futuras, essa é a coisa certa a fazer. Um gene em seu corpo terá uma chance em duas de estar presente em um irmão.

Se ele sacrificasse a cópia do gene presente em seu corpo para salvar três irmãos, estaria salvando, em média, uma cópia e meia do gene em seus três irmãos, colocando-o à frente em termos de contabilidade genética. Mas, quando se trata de primos, cada um deles tem só uma chance em oito de carregar um gene qualquer do corpo de Haldane. Para beneficiar-se do sacrifício de uma cópia do gene presente nele próprio, ele precisa resgatar nove ou mais primos. Essa hipótese foi formalizada por Bill Hamilton em sua teoria da boa forma inclusiva. Para ilustrar minha teoria, posso reformular a pergunta de Haldane, indagando: ""Será que Haldane sacrificaria sua vida por três meios-irmãos?" Pelo bem da história, digamos que eles são seus meios-irmãos maternos, filhos de sua mãe, mas de pais diferentes. A resposta tradicional a essa pergunta é ""não", porque, se você pega um gene aleatório em Haldane, ele terá uma chance em quatro de estar presente num meio-irmão. Assim, um gene aleatório teria a expectativa de ter três quartos de uma cópia dele salvos, em troca da perda de uma cópia em Haldane. Se há estampagem, porém, os genes podem ter informações sobre sua origem paterna ou materna, e isso pode mudar a contabilidade. Desde o ponto de vista de um gene de Haldane que seja de origem materna, os três meios-irmãos são todos filhos de sua mãe, de modo que seus genes maternos terão uma metade de probabilidade de estar presentes em cada meio-irmão. Em troca do sacrifício de uma cópia do gene nele mesmo, Haldane estaria salvando uma cópia e meia, em média, de seus genes maternos. Uma seleção natural atuando nessa situação seria favorável ao comportamento sacrifical.

Política interna
Mas a situação seria muito diferente desde o ponto de vista dos genes paternos de Haldane. Aqueles três meios-irmãos são filhos de pais diferentes, o que os torna totalmente não-aparentados com ele. Se a contabilidade genética fosse o único fator a levar em conta, nenhum sacrifício, por pequeno que fosse, justificaria qualquer benefício, por maior fosse, a seus meios-irmãos. Assim, neste caso, uma seleção baseada em genes paternamente derivados impediriam Haldane de realizar o ato sacrifical. Essa história ilustra o fato de que forças seletivas distintas podem influir sobre genes diferentes dentro de um indivíduo, atraindo-o para direções diferentes e resultando em conflitos genéticos internos. Desconfio que a maneira como esses conflitos são resolvidos é uma questão que depende da história, da política genética e do conhecimento dos detalhes do sistema. Para responder a perguntas como essa, podemos obter subsídios das ciências sociais. A ciência política, em especial, diz respeito a lidar com conflitos de interesse na sociedade por meio da formação de partidos e facções, e acredito que, se houver conflitos no interior do indivíduo, haverá uma espécie semelhante de política interna. Interesso-me particularmente em estudar situações no mundo real em que a história que acabei de relatar, sobre Haldane, se aplicaria -ou seja, em que há forças seletivas potencialmente conflitantes atuando dentro do indivíduo. Até agora falei sobre conflitos entre genes de origem paterna e materna, mas também há conflitos possíveis entre genes localizados nos cromossomos sexuais e genes de outros cromossomos, ou entre genes situados no núcleo e genes situados nas mitocôndrias, ou entre nossa herança genética e transmissão cultural. Estou tentando desenvolver um conjunto de teorias e ferramentas para lidar com situações como essas.

Influência do ambiente
A estampagem genômica é um fenômeno fascinante e suscita uma pergunta interessante: se a informação sobre o sexo de um pai ou uma mãe na geração anterior pode ser transmitida por mecanismos como esse, será que existem outras informações históricas vindas do ambiente que podem ser transmitidas à geração atual e influir sobre sua expressão genética? Seria possível que, se minha bisavó tivesse vivido durante uma guerra ou em tempos de fome generalizada, esse fato teria impresso uma estampa sobre o genoma, estampa essa que estaria influindo sobre a expressão dos genes em meu corpo? Meu interesse pela estampagem genética começou quando eu estava concluindo meu doutorado na Universidade Macquarie, em Sydney. Comecei a estudar a ecologia vegetal e, em especial, como se dá a regeneração após um incêndio. Passei algum tempo percorrendo o sertão australiano, examinando plantas, mas percebi que aquilo não me interessava verdadeiramente. Por boa sorte, tive uma oportunidade de fazer um estudo teórico sobre a evolução dos ciclos de vida das plantas, aplicando a teoria da seleção por parentesco -a teoria do conflito pais/filhos desenvolvida por Robert Trivers- às plantas. Ao pensar sobre o que acontece dentro das sementes, eu já tinha, essencialmente, uma teoria da estampagem genética pronta para ser esboçada assim que ouvi falar nesse fenômeno. Num artigo sobre o conflito pais/filhos escrito em 1974, Trivers observou que frequentemente existe um pressuposto implícito segundo o qual o que é bom para o pai ou a mãe também é bom para a prole. Em termos de transmissão genética, parece que os filhos são a aposta dos pais no futuro, de modo que os pais deveriam fazer o melhor possível por eles. O que Trivers dizia, porém, é que os pais seriam selecionados para maximizar seu número total de filhos sobreviventes -o que pode ser bastante diferente de maximizar a sobrevivência de qualquer filho individual específico. Ele sugeriu que existe um equilíbrio entre gerar muitos filhos e investir relativamente pouco neles, por um lado, e gerar um número pequeno de filhos e investir muito em cada um deles, por outro.

Conflito
Trivers pensava que, no decorrer da evolução, os filhos começariam a competir com seus irmãos pelos recursos disponíveis. E a rivalidade entre irmãos, por sua vez, resultaria em conflitos entre filhos e pais, já que, com o passar do tempo, os filhos seriam selecionados para tentar conseguir mais do que sua justa parcela de recursos de seus pais -mais do que os pais tinham sido selecionados para fornecer-, enquanto os pais seriam selecionados para dividir seus recursos de maneira mais igualitária entre um número maior de filhos. Segundo Trivers, isso poderia levar a conflitos evolutivos.
Fui convidado a fazer uma palestra durante um workshop sobre estampagem e doenças humanas realizado nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Meu objetivo era dar idéias sobre como a teoria da evolução podia oferecer novas visões das doenças humanas. Um caso evidente era o gravidez humana, na qual a teoria do conflito pais/filhos de Trivers ajudaria a entender por que a gravidez é tão frequentemente associada a complicações médicas. Desde então, a análise das interações entre mães e seus fetos tem sido outra área de pesquisa minha.
A teoria de Trivers tem muito a dizer sobre a razão pela qual a gravidez não funciona muito bem. Se analisarmos a maioria dos produtos da seleção natural, como a mão, o fígado ou o rim, eles são objetos fantásticos de engenharia que funcionam muito bem por 60 ou 70 anos. Mas por que ocorrem tantos problemas na gravidez? A gravidez é absolutamente essencial à reprodução; logo, poderíamos imaginar que essa seria uma parte da fisiologia humana que teria sido aperfeiçoada pela seleção natural. Mas há uma diferença evolutiva importante entre o função do coração e o que acontece durante a gravidez. Quando olhamos para as forças seletivas que atuam sobre a função do coração, não existe conflito evolutivo. Todos os genes envolvidos no desenvolvimento e na função do coração pertencem ao mesmo indivíduo genético e, em certo sentido, têm o mesmo interesse genético: a maximização do número de filhos daquele indivíduo. Na ausência de conflitos, temos um problema simples de otimização e uma solução ótima.
Mas na relação entre mãe e feto -devido ao conflito pais/filhos que Trivers destacou- agora temos forças conflitantes. O filho está sendo selecionado para receber um pouco a mais da mãe, e a mãe é selecionada para resistir a algumas das exigências do filho. Essas forças seletivas tendem a atuar com objetivos conflitantes e anular-se mutuamente.

Reprodução
"D.N.A Zigótico" (1997), escultura de Jake e Dino Chapman


Outro problema da gravidez é a comunicação da informação entre mãe e prole. Na comunicação interna ao corpo, não há conflito, já que a seleção faz com que as células enviem mensagens da maneira mais econômica e eficiente possível. Mas, quando se analisa a troca de mensagens entre mãe e feto, há um problema de credibilidade, já que seus interesses não são idênticos. Em algumas situações há um incentivo evolutivo para o envio de mensagens que causam confusão e uma seleção correspondente para que o destinatário das mensagens não confie nas mensagens recebidas.
Uma coisa que acontece durante a gravidez é a ausência dos controles normais de feedback. Tive acesso a pedidos de verba encaminhados por cientistas que se propunham a estudar as relações materno-fetais, e eles tendiam a traçar um quadro muito cor-de-rosa dessas relações, como se fossem um intercâmbio quase amoroso de mensagens entre mãe e feto. Na realidade, porém, o que acontece na gravidez é que um embrião se implanta na cavidade abdominal ou numa trompa de Falópio -numa posição totalmente inapropriada no corpo- e se desenvolve de maneira autônoma, na ausência de quaisquer mensagens maternas apropriadas. Acredito que muito pouca comunicação ocorra de fato entre a mãe e o feto durante a gravidez. Em vez disso, o que se vê são diversas tentativas fetais de manipular a fisiologia e o metabolismo maternos em benefício próprio.
Durante a gravidez, os sistemas de comunicação hormonal da mãe passam para o controle conjunto da mãe e do feto. O feto secreta vários hormônios no corpo da mãe para alcançar efeitos diversos, especialmente o de elevar os níveis de nutrientes no sangue materno. Nas primeiras fases da gravidez humana, o embrião se implanta na parede uterina e se liga ao sistema sanguíneo materno, liberando hormônios no sangue materno que podem influir sobre a fisiologia da mãe, sua pressão sanguínea e os níveis de açúcar em seu sangue. Quanto mais altos os níveis de açúcar e gorduras no sangue materno, mais nutrientes o feto poderá obter.
Os hormônios são moléculas produzidas em quantidades ínfimas e que exercem efeitos grandes, pelo menos quando a comunicação ocorre no interior de um único corpo e não há conflito entre remetente e destinatário. Na gravidez, porém, um indivíduo (o feto) lança sinais a outro (a mãe), e existe potencial para conflito. A seleção natural favorece o aumento da produção hormonal da prole para exercer um efeito maior, e, ao mesmo tempo, favorece os sistemas receptores maternos, que se tornam cada vez mais resistentes a manipulações. Assim, existe potencial para uma escalada evolutiva que às vezes resulta na produção de hormônios placentários em quantidades maciças. Estima-se que cerca de um grama de lactogênio placentário humano seja secretado para o fluxo sanguíneo materno, mas, apesar disso, seus efeitos são relativamente pequenos.


A estampagem será relevante para entender a evolução das interações sociais. Também há evidências de que esteja relacionada a algumas formas de autismo


Acho que essa observação -a de que os hormônios placentários tendem a ser produzidos em quantidades muito grandes- é a melhor prova da existência do conflito materno-fetal. O feto secreta esses hormônios no corpo da mãe numa tentativa de convencê-la a fazer algo que ela não necessariamente quer. Pense nos hormônios placentários como o equivalente às mensagens de "spam" que você recebe em seu e-mail. As mensagens tentam convencer você a fazer alguma coisa. São relativamente baratas de ser produzidas, de modo que são distribuídas em quantidades enormes, mas exercem efeitos pequenos. A mais bem-sucedida aplicação de minhas idéias sobre a estampagem tem sido no estudo do crescimento durante a gravidez e na previsão de que os genes de origem paterna são selecionados para produzir placentas maiores, que extraem mais recursos das mães. Mas a idéia básica da teoria se aplica a qualquer interação entre pessoas ligadas pelo que eu chamo de parentesco assimétrico -aparentadas pelo lado materno da família, mas não pelo lado paterno, ou vice-versa. Desconfio que a estampagem genômica será relevante à compreensão da evolução das interações sociais. Também já temos evidências, hoje, de que a estampagem esteja relacionada a algumas formas de autismo. Há uma série de genes que sabe-se serem estampados no cérebro, e estou interessado em estudar essas idéias.

Prática
O trabalho empírico mais instigante feito para testar minhas idéias saiu do laboratório de Shirley Tilghman. Seu laboratório foi um dos primeiros a descrever um gene estampado. Paul Vrana, um pós-doutorando de Tilghman, analisou cruzamentos entre duas espécies de camundongo, uma das quais tinha um índice muito alto de trocas de parceiros -diversos pais em cada grupo de filhotes-, enquanto a outro era um camundongo dito monogâmico, no qual um único pai era responsável por todos os filhotes de uma ninhada e a fêmea tinha cerca de 80% de chances de permanecer com o pai para gerar a próxima ninhada. O pesquisador previu que o conflito entre genomas maternos e paternos seria mais intenso no camundongo com paternidade múltipla do que no camundongo monogâmico, e, de fato, quando se cruza os dois, constata-se uma diferença dramática em termos de peso natal. Se o pai veio da espécie que tem a paternidade múltipla, teria ocorrido uma seleção intensa de genomas paternos para extrair mais recursos das mães. Esse genoma paterno seria contraposto a um genoma materno que não teria sido submetido a uma seleção intensa para resistir às exigências paternas. Nessa direção do cruzamento, os filhotes eram maiores do que o normal, sendo que no cruzamento recíproco, no qual o genoma paterno vinha da espécie monogâmica e o genoma materno da espécie poliândrica, os filhotes eram menores do que o normal. Paul Vrana conseguiu demonstrar que essa diferença se devia em grande medida aos genes estampados nas duas espécies. Isso sugere que a divergência de genes estampados pode contribuir para o processo de formação das espécies, e, em especial, que mudanças nos sistemas sociais e de acasalamento podem provocar mudanças na expressão da estampa. O segundo trabalho está sendo feito num lugar inesperado: um laboratório de oncologia hepática no Centro Médico da Universidade Duke. Só por curiosidade, Randy Jirtle e Keith Killian examinaram os marsupiais e depois o ornitorrinco -um mamífero que põe ovos- para descobrir onde acontece a estampagem. Descobriram que não há estampagem no ornitorrinco, mas que ela existe nos marsupiais. Assim, parece que a estampagem surgiu de maneira mais ou menos coincidente com a origem do nascimento vivo, antes do antepassado comum dos marsupiais e dos mamíferos placentários. Há outras observações intrigantes que pedem uma explicação teórica. Há evidências no camundongo, por exemplo, de que o genoma paterno é especialmente favorável ao desenvolvimento do hipotálamo, enquanto o materno favorece o desenvolvimento do neocórtex. Sugeri que alguns conflitos materno-paternos podem ser vistos no interior do indivíduo entre diferentes partes do cérebro, favorecendo diferentes tipos de ação. Não tenho uma explicação boa sobre o porquê de isso estar ocorrendo com o camundongo, mas eu gostaria muito de saber a razão. Num nível mais amplo, talvez essas teorias tenham algo a dizer sobre a experiência subjetiva dos conflitos internos -por que, às vezes, sentimos grande dificuldade para nos decidir. Se a mente fosse puramente um computador maximizador de boa forma com uma única função ligada à boa forma, esse senso paralisante de indecisão que frequentemente sentimos não faria sentido. Quando somos forçados a tomar uma decisão difícil, isso às vezes consome nossas energias todas por um dia inteiro, embora fiquemos melhores por termos tomado a decisão. Talvez isso possa ser explicado como uma discussão política dentro da mente entre agentes diferentes, com prioridades diferentes. Mas aí entramos no reino da especulação. Futuramente, eu também gostaria de voltar a estudar plantas. Já refleti muito sobre os ciclos de vida das plantas, e o meu Ph.D. teve relativamente pouco impacto, de modo que eu gostaria de voltar e repensar algumas daquelas idéias. Pensei em escrever um livro intitulado ""Sociobotânica" que fizesse pelas plantas o que Trivers, Edward Wilson e Richard Dawkins fizeram pelo comportamento animal. A botânica tende a enxergar as etapas diferentes nos ciclos de vida de uma planta como uma colaboração. Mas as teorias de conflito pais/prole de Trivers são muito relevantes para a compreensão de algumas características estranhas do desenvolvimento de sementes e da embriologia das plantas.

Sementes em guerra
Um de meus exemplos favoritos desse fenômeno pode ser visto nas sementes de pinheiro. A semente contém ovos que podem ser fertilizados por vários tubos de pólen, equivalente vegetal do espermatozóide. Dentro da semente, são gerados embriões múltiplos que, depois, competem para tornar-se o único que sobrevive naquela semente. Enquanto tudo isso acontece, há uma rivalidade fraterna muito intensa no interior da semente, incluindo até o fratricídio. Devido aos aspectos singulares da reprodução das plantas, os ovos que geraram aqueles embriões são todos geneticamente idênticos, de modo que a competição entre os embriões se dá em volta dos genes que eles recebem de seus pais, pelo tubo de pólen. Em razão disso, prevejo que há estampagem nos embriões de pinheiro.
Outro caso interessante é encontrado na Welwitschia, uma planta muito estranha que cresce no deserto da Namíbia. Aqui, mais uma vez devido às singularidades da genética das plantas, as células do ovo não são mais geneticamente idênticas, mas competem entre si para gerar o embrião que vai sobreviver na semente. Em lugar de esperar para o tubo de pólen alcançar os ovos, os ovos crescem em tubos para alcançar os tubos de pólen. Chega a ocorrer uma corrida para alcançar os tubos de pólen que crescem para baixo, em direção aos ovos. A fertilização ocorre, e então os embriões correm de volta à semente para tentar ser os primeiros a ter acesso às reservas de nutrientes armazenadas na semente. Esse comportamento singular foi apenas uma observação estranha dos embriologistas de plantas, mas acho que a aplicação das idéias de conflito entre indivíduos genéticos distintos forma uma explicação muito agradável do porquê de observarmos esse comportamento na Welwitschia, mas não em outros grupos nos quais os ovos são geneticamente idênticos.
Algumas dessas idéias também tocam o trabalho de psicólogos evolucionistas. Embora eu não interaja com eles diariamente, eles se interessam muito por meu trabalho, e eu acompanho o deles. Uma psicologia verdadeira precisa ser uma psicologia evolucionista. Se toda teoria que se intitula psicologia evolucionista merece esse nome é outra questão, mas, em termos da questão de se Darwin é relevante para a compreensão da mente e do comportamento humanos, os psicólogos evolucionistas acertaram em cheio. Somos seres evoluídos, e, portanto, nossa psicologia terá de ser compreendida em termos da seleção natural, entre outros fatores.

David Haig é professor associado de biologia no Departamento de Biologia de Organismos e da Evolução da Universidade Harvard e autor de ""Genomic Imprinting and Kinship" (Estampagem genômica e parentesco). O artigo acima foi publicado originalmente no site "Edge" (www.edge.org).
Tradução de Clara Allain


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