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DNA ROTULADO
BIÓLOGO EXPLICA POR QUE A ESTAMPAGEM GENÔMICA
PODE REVOLUCIONAR A GENÉTICA NESTE SÉCULO
Reprodução
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Esculturas da série "Big Baby" (técnica mista), de Ron Mueck |
Da Redação
O termo "estampagem genômica" soa exótico o bastante para assustar um leigo. Mas, numa época em que
pseudocientistas malucos correm uns contra os outros
para produzir clones humanos, convém conhecer seu
significado. Ele é igualmente assustador: grosso modo,
trata-se de um fenômeno que impede que as cópias genéticas de mamíferos sejam normais.
A estampagem -"genetic imprinting", em inglês- é
uma propriedade ainda pouco conhecida do genoma.
Durante o embaralhamento dos genes do pai e da mãe
para a formação de um novo indivíduo, certas sequências de DNA de um dos lados, marcadas com uma espécie de "selo de origem", silenciam suas equivalentes do
outro. Assim, tornam-se a única cópia ativa na produção de proteínas ou na regulagem do funcionamento de
outros genes. Alguns geneticistas acham que o fenômeno reflete uma disputa evolutiva entre o DNA materno
e o paterno pelo predomínio no organismo.
No caso da clonagem, como não há "selo" no DNA
-que pertence a um único genitor-, a regulagem dos
genes que seria feita pela estampagem simplesmente
não funciona. O resultado são aberrações genéticas de
todo tipo, que vão desde morte do feto até obesidade,
artrite, câncer e anomalias na placenta.
A entrada em campo da estampagem sugere aos geneticistas uma pausa para reflexão. Ela indica, por um
lado, que nem tudo no genoma pode ser reduzido à leitura pura e simples da informação do DNA -há instruções comandando o desenvolvimento que não provêm da sequência. Por outro, que essa mesma sequência pode receber estampas diferentes, que são apagadas
e reimpressas durante a evolução.
Um dos poucos cientistas que se dedicaram a estudar
a estampagem é o geneticista evolutivo David Haig, da
Universidade Harvard, no Estado norte-americano de
Massachusetts. Ele estuda os conflitos e a sua resolução
no interior do genoma. ""A área à qual dediquei atenção
maior", diz ele, ""é um fenômeno novo na biologia molecular conhecido como estampagem genômica, que é
uma situação na qual uma sequência de DNA pode
apresentar comportamentos condicionais, dependendo de ser herança materna -ou seja, do óvulo- ou paterna -do espermatozóide."
O trabalho de Haig forma uma interseção com o de
sociobiólogos como Edward O. Wilson, também de
Harvard, e psicólogos evolucionistas como Steven Pinker, do Massachusetts Institute of Technology. No artigo a seguir, Haig relata a descoberta da estampagem e
conta como ela deve mudar a biologia neste século.
Por David Haig
Meu trabalho ao longo dos últimos dez anos,
mais ou menos, girou em torno principalmente dos conflitos no interior do organismo individual. Em boa parte da biologia
evolucionista, a metáfora implícita é que o organismo é
uma máquina, ou, mais especificamente, um computador, que procura resolver algum problema e que maximiza a boa forma física. Maximizar a boa forma física é
análogo a maximizar uma função de utilidade na economia. Eu me interesso por situações nas quais há conflitos internos ao indivíduo, nas quais agentes diferentes dentro do ser possuem funções de boa forma distintas, além de políticas internas resultantes desses conflitos de interesses.
A área à qual venho dedicando minha atenção maior
é um fenômeno novo na biologia molecular conhecido
como estampagem genômica, que é uma situação na
qual uma sequência de DNA pode apresentar comportamentos condicionais, dependendo de ser herança
materna -ou seja, do óvulo- ou paterna -do espermatozóide. O fenômeno é chamado de estampagem
porque a idéia básica é que existe uma estampa que é
impressa sobre o DNA dentro do ovário da mãe ou dos
testículos do pai, estampa essa que marca o DNA como
sendo materno ou paterno e que influi sobre seu padrão
de expressão -o que o gene vai fazer na próxima geração, tanto na prole feminina quanto na masculina.
É um processo complicado, porque a estampa pode
ser apagada e reimpressa. Por exemplo, os genes maternos no meu corpo, quando os repasso para meus filhos,
serão genes paternos, apresentando comportamento
paterno. Se minha filha passar genes paternos aos filhos
dela, mesmo que ela os tenha recebido de mim, como
genes paternos, o que ela passará serão genes maternos.
Os biólogos moleculares estão especialmente interessados na natureza dessas estampas e em como é possível
modificar o DNA de alguma maneira que seja hereditária, mas que possa ser refeita. Minha área de interesse
específica tem sido compreender por que um comportamento tão estranho evolui. Venho procurando encontrar situações nas quais o que é melhor para os genes de origem materna é diferente daquilo que maximiza a boa forma dos genes de origem paterna.
A melhor maneira de compreender a teoria subjacente é com a ajuda de uma anedota famosa atribuída ao
grande geneticista britânico J.B.S. Haldane, sobre o qual
se dizia que ele daria sua vida para salvar mais do que
dois irmãos seus que estivessem se afogando ou mais do
que oito primos na mesma situação. A lógica é que, se
Haldane está preocupado apenas em transmitir seus genes às gerações futuras, essa é a coisa certa a fazer. Um
gene em seu corpo terá uma chance em duas de estar
presente em um irmão.
Se ele sacrificasse a cópia do gene presente em seu corpo para salvar três irmãos, estaria salvando, em média,
uma cópia e meia do gene em seus três irmãos, colocando-o à frente em termos de contabilidade genética. Mas,
quando se trata de primos, cada um deles tem só uma
chance em oito de carregar um gene qualquer do corpo
de Haldane. Para beneficiar-se do sacrifício de uma cópia do gene presente nele próprio, ele precisa resgatar
nove ou mais primos. Essa hipótese foi formalizada por
Bill Hamilton em sua teoria da boa forma inclusiva.
Para ilustrar minha teoria, posso reformular a pergunta de Haldane, indagando: ""Será que Haldane sacrificaria sua vida por três meios-irmãos?" Pelo bem da
história, digamos que eles são seus meios-irmãos maternos, filhos de sua mãe, mas de pais diferentes. A resposta tradicional a essa pergunta é ""não", porque, se você pega um gene aleatório em Haldane, ele terá uma
chance em quatro de estar presente num meio-irmão.
Assim, um gene aleatório teria a expectativa de ter três
quartos de uma cópia dele salvos, em troca da perda de
uma cópia em Haldane. Se há estampagem, porém, os
genes podem ter informações sobre sua origem paterna
ou materna, e isso pode mudar a contabilidade.
Desde o ponto de vista de um gene de Haldane que seja de origem materna, os três meios-irmãos são todos filhos de sua mãe, de modo que seus genes maternos terão uma metade de probabilidade de estar presentes em
cada meio-irmão. Em troca do sacrifício de uma cópia
do gene nele mesmo, Haldane estaria salvando uma cópia e meia, em média, de seus genes maternos. Uma seleção natural atuando nessa situação seria favorável ao
comportamento sacrifical.
Política interna
Mas a situação seria muito diferente
desde o ponto de vista dos genes paternos de Haldane.
Aqueles três meios-irmãos são filhos de pais diferentes,
o que os torna totalmente não-aparentados com ele. Se
a contabilidade genética fosse o único fator a levar em
conta, nenhum sacrifício, por pequeno que fosse, justificaria qualquer benefício, por maior fosse, a seus
meios-irmãos. Assim, neste caso, uma seleção baseada
em genes paternamente derivados impediriam Haldane de realizar o ato sacrifical.
Essa história ilustra o fato de que forças seletivas distintas podem influir sobre genes diferentes dentro de
um indivíduo, atraindo-o para direções diferentes e resultando em conflitos genéticos internos. Desconfio
que a maneira como esses conflitos são resolvidos é
uma questão que depende da história, da política genética e do conhecimento dos detalhes do sistema. Para
responder a perguntas como essa, podemos obter subsídios das ciências sociais. A ciência política, em especial, diz respeito a lidar com conflitos de interesse na sociedade por meio da formação de partidos e facções, e
acredito que, se houver conflitos no interior do indivíduo, haverá uma espécie semelhante de política interna.
Interesso-me particularmente em estudar situações
no mundo real em que a história que acabei de relatar,
sobre Haldane, se aplicaria -ou seja, em que há forças
seletivas potencialmente conflitantes atuando dentro
do indivíduo. Até agora falei sobre conflitos entre genes
de origem paterna e materna, mas também há conflitos
possíveis entre genes localizados nos cromossomos sexuais e genes de outros cromossomos, ou entre genes
situados no núcleo e genes situados nas mitocôndrias,
ou entre nossa herança genética e transmissão cultural.
Estou tentando desenvolver um conjunto de teorias e
ferramentas para lidar com situações como essas.
Influência do ambiente
A estampagem genômica
é um fenômeno fascinante e suscita uma pergunta interessante: se a informação sobre o sexo de um pai ou
uma mãe na geração anterior pode ser transmitida por
mecanismos como esse, será que existem outras informações históricas vindas do ambiente que podem ser
transmitidas à geração atual e influir sobre sua expressão genética? Seria possível que, se minha bisavó tivesse
vivido durante uma guerra ou em tempos de fome generalizada, esse fato teria impresso uma estampa sobre
o genoma, estampa essa que estaria influindo sobre a
expressão dos genes em meu corpo?
Meu interesse pela estampagem genética começou
quando eu estava concluindo meu doutorado na Universidade Macquarie, em Sydney. Comecei a estudar a
ecologia vegetal e, em especial, como se dá a regeneração após um incêndio. Passei algum tempo percorrendo o sertão australiano, examinando plantas, mas percebi que aquilo não me interessava verdadeiramente.
Por boa sorte, tive uma oportunidade de fazer um estudo teórico sobre a evolução dos ciclos de vida das plantas, aplicando a teoria da seleção por parentesco -a
teoria do conflito pais/filhos desenvolvida por Robert
Trivers- às plantas. Ao pensar sobre o que acontece
dentro das sementes, eu já tinha, essencialmente, uma
teoria da estampagem genética pronta para ser esboçada assim que ouvi falar nesse fenômeno.
Num artigo sobre o conflito pais/filhos escrito em
1974, Trivers observou que frequentemente existe um
pressuposto implícito segundo o qual o que é bom para
o pai ou a mãe também é bom para a prole. Em termos
de transmissão genética, parece que os filhos são a aposta dos pais no futuro, de modo que os pais deveriam fazer o melhor possível por eles. O que Trivers dizia, porém, é que os pais seriam selecionados para maximizar
seu número total de filhos sobreviventes -o que pode
ser bastante diferente de maximizar a sobrevivência de
qualquer filho individual específico. Ele sugeriu que
existe um equilíbrio entre gerar muitos filhos e investir
relativamente pouco neles, por um lado, e gerar um número pequeno de filhos e investir muito em cada um
deles, por outro.
Conflito
Trivers pensava que, no decorrer da evolução, os filhos começariam a competir com seus irmãos
pelos recursos disponíveis. E a rivalidade entre irmãos,
por sua vez, resultaria em conflitos entre filhos e pais, já
que, com o passar do tempo, os filhos seriam selecionados para tentar conseguir mais do que sua justa parcela
de recursos de seus pais -mais do que os pais tinham
sido selecionados para fornecer-, enquanto os pais seriam selecionados para dividir seus recursos de maneira mais igualitária entre um número maior de filhos. Segundo Trivers, isso poderia levar a conflitos evolutivos.
Fui convidado a fazer uma palestra durante um
workshop sobre estampagem e doenças humanas realizado nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados
Unidos. Meu objetivo era dar idéias sobre como a teoria
da evolução podia oferecer novas visões das doenças
humanas. Um caso evidente era o gravidez humana, na
qual a teoria do conflito pais/filhos de Trivers ajudaria a
entender por que a gravidez é tão frequentemente associada a complicações médicas. Desde então, a análise
das interações entre mães e seus fetos tem sido outra
área de pesquisa minha.
A teoria de Trivers tem muito a dizer sobre a razão pela qual a gravidez não funciona muito bem. Se analisarmos a maioria dos produtos da seleção natural, como a
mão, o fígado ou o rim, eles são objetos fantásticos de
engenharia que funcionam muito bem por 60 ou 70
anos. Mas por que ocorrem tantos problemas na gravidez? A gravidez é absolutamente essencial à reprodução; logo, poderíamos imaginar que essa seria uma parte da fisiologia humana que teria sido aperfeiçoada pela
seleção natural. Mas há uma diferença evolutiva importante entre o função do coração e o que acontece durante a gravidez. Quando olhamos para as forças seletivas
que atuam sobre a função do coração, não existe conflito evolutivo. Todos os genes envolvidos no desenvolvimento e na função do coração pertencem ao mesmo indivíduo genético e, em certo sentido, têm o mesmo interesse genético: a maximização do número de filhos daquele indivíduo. Na ausência de conflitos, temos um
problema simples de otimização e uma solução ótima.
Mas na relação entre mãe e feto -devido ao conflito
pais/filhos que Trivers destacou- agora temos forças
conflitantes. O filho está sendo selecionado para receber
um pouco a mais da mãe, e a mãe é selecionada para resistir a algumas das exigências do filho. Essas forças seletivas tendem a atuar com objetivos conflitantes e anular-se mutuamente.
Reprodução
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"D.N.A Zigótico" (1997), escultura de Jake e Dino Chapman |
Outro problema da gravidez é a comunicação da informação entre mãe e prole. Na comunicação interna
ao corpo, não há conflito, já que a seleção faz com que as
células enviem mensagens da maneira mais econômica
e eficiente possível. Mas, quando se analisa a troca de
mensagens entre mãe e feto, há um problema de credibilidade, já que seus interesses não são idênticos. Em algumas situações há um incentivo evolutivo para o envio
de mensagens que causam confusão e uma seleção correspondente para que o destinatário das mensagens
não confie nas mensagens recebidas.
Uma coisa que acontece durante a gravidez é a ausência dos controles normais de feedback. Tive acesso a pedidos de verba encaminhados por cientistas que se propunham a estudar as relações materno-fetais, e eles tendiam a traçar um quadro muito cor-de-rosa dessas relações, como se fossem um intercâmbio quase amoroso
de mensagens entre mãe e feto. Na realidade, porém, o
que acontece na gravidez é que um embrião se implanta
na cavidade abdominal ou numa trompa de Falópio
-numa posição totalmente inapropriada no corpo- e
se desenvolve de maneira autônoma, na ausência de
quaisquer mensagens maternas apropriadas. Acredito
que muito pouca comunicação ocorra de fato entre a
mãe e o feto durante a gravidez. Em vez disso, o que se
vê são diversas tentativas fetais de manipular a fisiologia
e o metabolismo maternos em benefício próprio.
Durante a gravidez, os sistemas de comunicação hormonal da mãe passam para o controle conjunto da mãe
e do feto. O feto secreta vários hormônios no corpo da
mãe para alcançar efeitos diversos, especialmente o de
elevar os níveis de nutrientes no sangue materno. Nas
primeiras fases da gravidez humana, o embrião se implanta na parede uterina e se liga ao sistema sanguíneo
materno, liberando hormônios no sangue materno que
podem influir sobre a fisiologia da mãe, sua pressão
sanguínea e os níveis de açúcar em seu sangue. Quanto
mais altos os níveis de açúcar e gorduras no sangue materno, mais nutrientes o feto poderá obter.
Os hormônios são moléculas produzidas em quantidades ínfimas e que exercem efeitos grandes, pelo menos quando a comunicação ocorre no interior de um
único corpo e não há conflito entre remetente e destinatário. Na gravidez, porém, um indivíduo (o feto) lança
sinais a outro (a mãe), e existe potencial para conflito. A
seleção natural favorece o aumento da produção hormonal da prole para exercer um efeito maior, e, ao mesmo tempo, favorece os sistemas receptores maternos,
que se tornam cada vez mais resistentes a manipulações. Assim, existe potencial para uma escalada evolutiva que às vezes resulta na produção de hormônios placentários em quantidades maciças. Estima-se que cerca
de um grama de lactogênio placentário humano seja secretado para o fluxo sanguíneo materno, mas, apesar
disso, seus efeitos são relativamente pequenos.
A estampagem será
relevante para entender
a evolução das interações
sociais. Também há
evidências de que esteja
relacionada a algumas
formas de autismo
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Acho que essa observação -a de que os hormônios
placentários tendem a ser produzidos em quantidades
muito grandes- é a melhor prova da existência do
conflito materno-fetal. O feto secreta esses hormônios
no corpo da mãe numa tentativa de convencê-la a fazer
algo que ela não necessariamente quer. Pense nos hormônios placentários como o equivalente às mensagens
de "spam" que você recebe em seu e-mail. As mensagens tentam convencer você a fazer alguma coisa. São
relativamente baratas de ser produzidas, de modo que
são distribuídas em quantidades enormes, mas exercem efeitos pequenos.
A mais bem-sucedida aplicação de minhas idéias sobre a estampagem tem sido no estudo do crescimento
durante a gravidez e na previsão de que os genes de origem paterna são selecionados para produzir placentas
maiores, que extraem mais recursos das mães. Mas a
idéia básica da teoria se aplica a qualquer interação entre pessoas ligadas pelo que eu chamo de parentesco assimétrico -aparentadas pelo lado materno da família,
mas não pelo lado paterno, ou vice-versa. Desconfio
que a estampagem genômica será relevante à compreensão da evolução das interações sociais. Também
já temos evidências, hoje, de que a estampagem esteja
relacionada a algumas formas de autismo. Há uma série
de genes que sabe-se serem estampados no cérebro, e
estou interessado em estudar essas idéias.
Prática
O trabalho empírico mais instigante feito para
testar minhas idéias saiu do laboratório de Shirley
Tilghman. Seu laboratório foi um dos primeiros a descrever um gene estampado. Paul Vrana, um pós-doutorando de Tilghman, analisou cruzamentos entre duas
espécies de camundongo, uma das quais tinha um índice muito alto de trocas de parceiros -diversos pais em
cada grupo de filhotes-, enquanto a outro era um camundongo dito monogâmico, no qual um único pai era
responsável por todos os filhotes de uma ninhada e a fêmea tinha cerca de 80% de chances de permanecer com
o pai para gerar a próxima ninhada. O pesquisador previu que o conflito entre genomas maternos e paternos
seria mais intenso no camundongo com paternidade
múltipla do que no camundongo monogâmico, e, de fato, quando se cruza os dois, constata-se uma diferença
dramática em termos de peso natal.
Se o pai veio da espécie que tem a paternidade múltipla, teria ocorrido uma seleção intensa de genomas paternos para extrair mais recursos das mães. Esse genoma paterno seria contraposto a um genoma materno
que não teria sido submetido a uma seleção intensa para resistir às exigências paternas. Nessa direção do cruzamento, os filhotes eram maiores do que o normal,
sendo que no cruzamento recíproco, no qual o genoma
paterno vinha da espécie monogâmica e o genoma materno da espécie poliândrica, os filhotes eram menores
do que o normal. Paul Vrana conseguiu demonstrar
que essa diferença se devia em grande medida aos genes
estampados nas duas espécies. Isso sugere que a divergência de genes estampados pode contribuir para o
processo de formação das espécies, e, em especial, que
mudanças nos sistemas sociais e de acasalamento podem provocar mudanças na expressão da estampa.
O segundo trabalho está sendo feito num lugar inesperado: um laboratório de oncologia hepática no Centro Médico da Universidade Duke. Só por curiosidade,
Randy Jirtle e Keith Killian examinaram os marsupiais e
depois o ornitorrinco -um mamífero que põe ovos-
para descobrir onde acontece a estampagem. Descobriram que não há estampagem no ornitorrinco, mas que
ela existe nos marsupiais. Assim, parece que a estampagem surgiu de maneira mais ou menos coincidente com
a origem do nascimento vivo, antes do antepassado comum dos marsupiais e dos mamíferos placentários.
Há outras observações intrigantes que pedem uma
explicação teórica. Há evidências no camundongo, por
exemplo, de que o genoma paterno é especialmente favorável ao desenvolvimento do hipotálamo, enquanto
o materno favorece o desenvolvimento do neocórtex.
Sugeri que alguns conflitos materno-paternos podem
ser vistos no interior do indivíduo entre diferentes partes do cérebro, favorecendo diferentes tipos de ação.
Não tenho uma explicação boa sobre o porquê de isso
estar ocorrendo com o camundongo, mas eu gostaria
muito de saber a razão. Num nível mais amplo, talvez
essas teorias tenham algo a dizer sobre a experiência
subjetiva dos conflitos internos -por que, às vezes,
sentimos grande dificuldade para nos decidir. Se a mente fosse puramente um computador maximizador de
boa forma com uma única função ligada à boa forma,
esse senso paralisante de indecisão que frequentemente
sentimos não faria sentido. Quando somos forçados a
tomar uma decisão difícil, isso às vezes consome nossas
energias todas por um dia inteiro, embora fiquemos
melhores por termos tomado a decisão. Talvez isso possa ser explicado como uma discussão política dentro da
mente entre agentes diferentes, com prioridades diferentes. Mas aí entramos no reino da especulação.
Futuramente, eu também gostaria de voltar a estudar
plantas. Já refleti muito sobre os ciclos de vida das plantas, e o meu Ph.D. teve relativamente pouco impacto, de
modo que eu gostaria de voltar e repensar algumas daquelas idéias. Pensei em escrever um livro intitulado
""Sociobotânica" que fizesse pelas plantas o que Trivers,
Edward Wilson e Richard Dawkins fizeram pelo comportamento animal. A botânica tende a enxergar as etapas diferentes nos ciclos de vida de uma planta como
uma colaboração. Mas as teorias de conflito pais/prole
de Trivers são muito relevantes para a compreensão de
algumas características estranhas do desenvolvimento
de sementes e da embriologia das plantas.
Sementes em guerra
Um de meus exemplos favoritos desse fenômeno pode ser visto nas sementes de pinheiro. A semente contém ovos que podem ser fertilizados por vários tubos de pólen, equivalente vegetal do espermatozóide. Dentro da semente, são gerados embriões múltiplos que, depois, competem para tornar-se
o único que sobrevive naquela semente. Enquanto tudo
isso acontece, há uma rivalidade fraterna muito intensa
no interior da semente, incluindo até o fratricídio. Devido aos aspectos singulares da reprodução das plantas,
os ovos que geraram aqueles embriões são todos geneticamente idênticos, de modo que a competição entre os
embriões se dá em volta dos genes que eles recebem de
seus pais, pelo tubo de pólen. Em razão disso, prevejo
que há estampagem nos embriões de pinheiro.
Outro caso interessante é encontrado na Welwitschia,
uma planta muito estranha que cresce no deserto da
Namíbia. Aqui, mais uma vez devido às singularidades
da genética das plantas, as células do ovo não são mais
geneticamente idênticas, mas competem entre si para
gerar o embrião que vai sobreviver na semente. Em lugar de esperar para o tubo de pólen alcançar os ovos, os
ovos crescem em tubos para alcançar os tubos de pólen.
Chega a ocorrer uma corrida para alcançar os tubos de
pólen que crescem para baixo, em direção aos ovos. A
fertilização ocorre, e então os embriões correm de volta
à semente para tentar ser os primeiros a ter acesso às reservas de nutrientes armazenadas na semente. Esse
comportamento singular foi apenas uma observação
estranha dos embriologistas de plantas, mas acho que a
aplicação das idéias de conflito entre indivíduos genéticos distintos forma uma explicação muito agradável do
porquê de observarmos esse comportamento na Welwitschia, mas não em outros grupos nos quais os ovos
são geneticamente idênticos.
Algumas dessas idéias também tocam o trabalho de
psicólogos evolucionistas. Embora eu não interaja com
eles diariamente, eles se interessam muito por meu trabalho, e eu acompanho o deles. Uma psicologia verdadeira precisa ser uma psicologia evolucionista. Se toda
teoria que se intitula psicologia evolucionista merece
esse nome é outra questão, mas, em termos da questão
de se Darwin é relevante para a compreensão da mente
e do comportamento humanos, os psicólogos evolucionistas acertaram em cheio. Somos seres evoluídos, e,
portanto, nossa psicologia terá de ser compreendida
em termos da seleção natural, entre outros fatores.
David Haig é professor associado de biologia no Departamento de
Biologia de Organismos e da Evolução da Universidade Harvard e autor de ""Genomic Imprinting and Kinship" (Estampagem genômica e
parentesco). O artigo acima foi publicado originalmente no site "Edge" (www.edge.org).
Tradução de Clara Allain
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