São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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Ponto de fuga

A luz da noite

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Algumas exposições espetaculares terminaram em Paris: "Melancolia", "Viena 1900", "Dada". Embora discutíveis e desiguais, atraíram multidões. A mais importante para o conhecimento, a mais bela também, deu-se, discreta, confidencial, no Museu do Louvre. Foi consagrada a um discípulo de David, o pintor Girodet.
Uma vez perguntaram ao diretor italiano Mario Bava por que os americanos e os franceses se interessavam por seus filmes, já que a Itália não os valorizava. Bava retrucou, rindo: "Porque eles são mais idiotas do que nós". A ironia embutida na resposta assinala um fenômeno efetivo. Muitas vezes, culturas estrangeiras são mais capazes de compreender fenômenos artísticos que escapam, pelos preconceitos, pelos hábitos mentais repetidos e calejados, à boa percepção do próprio meio que os criou.
Assim, franceses descobriram a elevada grandeza do cinema de Hollywood; americanos e franceses assinalaram a qualidade vertiginosa própria aos filmes de terror italianos. Isso ocorre também com a pintura francesa da segunda geração neoclássica: são os americanos que mais a estimam e estudam. A tal ponto que a mostra Girodet foi iniciada pelo Museu de Cleveland. Os trabalhos consagrados ao pintor são, no entanto, parciais. Faltam ainda grandes sínteses, debates e reflexões.
O gênio de Girodet emerge da exposição parisiense impondo a força de uma beleza singular e superior. Depois do primeiro impacto que abala, o olhar tem dificuldade em se destacar de cada tela, tantas são suas seduções misteriosas. Elas se tecem numa conjunção de heroísmo, grandeza e graça. Mostram também uma poesia luminosa e noturna que só Girodet soube atingir.

Lusco-fusco
É curioso que os escritos sobre a questão da luz em Girodet não tenham ido mais longe do que despachar o pintor à tutela do "sfumato" leonardesco. Primeiramente porque o "sfumato" é uma solução, e a luz, para Girodet, é uma fonte de interrogações. Depois, porque na arte de Leonardo a penumbra acaricia epidermes, enquanto nos quadros de Girodet ela penetra a matéria para transfigurá-la. É bem conhecido o fato de que o artista preferia pintar à noite, iluminando as telas com refletores: curioso ainda que ninguém tenha sublinhado a pouquíssima ortodoxia de tal procedimento e, sobretudo, o resultado visual que dele decorre.
Num quadro enorme, um grupo, nu, uma família agarra-se, desesperada, para escapar ao dilúvio. No alto, ziguezagueia um raio: a intensidade efêmera do clarão "metaliza", por assim dizer, a pele dos personagens, dando-lhe tons e "substância" de cobre ou bronze. O retrato satírico da atriz srta. Lange, com quem Girodet teve uma desavença, concentra focos diferentes: a luminosidade das moedas de Zeus, que caem no colo da moderna Danae, retira a materialidade dos ombros; a luz da candeia, que queima mariposas, parece aveludar a própria atmosfera.
Cada obra fervilha de novidades picturais sutilíssimas. A essa mostra do Louvre, o Museu de Montargis, adorável cidadezinha cortada por canais na qual nasceu Girodet, acrescentou uma outra, inserindo as obras de juventude do artista ao lado das de seus condiscípulos no ateliê de David. Todo um setor da história da pintura que está ainda por ser plenamente explorado.

Pataca
Alguns leitores escreveram pedindo precisões sobre o preço da caixa Mozart editada pela marca "Brilliant Classics": na coluna do domingo passado elas ficaram meio confusas. O estojo contém toda a obra de Mozart em 170 CDs. Na Europa, custa por volta de 100, o que, em moeda brasileira, sai menos do que R$ 2 por disco.

Fastidious
Outros leitores assinalaram lapso referente ao nascimento e morte de Mozart, cujas datas saíram invertidas na coluna passada. Um deles faz bem as contas: "Mozart nasceu no dia 27/01/1756 e morreu no dia 5/12/1791. Portanto, o que se completou em 1991 foi o bicentenário da morte, não do nascimento. E o que se lembra este ano são os 250 anos do nascimento, e não da morte. Se ele tivesse nascido em 1791 e morrido em 1756, teria tido idade negativa."


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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