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Ponto de fuga
A luz da noite
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Algumas exposições espetaculares
terminaram em Paris: "Melancolia", "Viena 1900", "Dada". Embora
discutíveis e desiguais, atraíram
multidões. A mais importante para o conhecimento, a mais bela também, deu-se, discreta, confidencial, no Museu do Louvre. Foi
consagrada a um discípulo de David, o pintor Girodet.
Uma vez perguntaram ao diretor italiano
Mario Bava por que os americanos e os franceses se interessavam por seus filmes, já que
a Itália não os valorizava. Bava retrucou, rindo: "Porque eles são mais idiotas do que
nós". A ironia embutida na resposta assinala
um fenômeno efetivo. Muitas vezes, culturas estrangeiras são mais capazes de compreender fenômenos artísticos que escapam, pelos preconceitos, pelos hábitos mentais repetidos e calejados, à boa percepção
do próprio meio que os criou.
Assim, franceses descobriram a elevada
grandeza do cinema de Hollywood; americanos e franceses assinalaram a qualidade
vertiginosa própria aos filmes de terror italianos. Isso ocorre também com a pintura
francesa da segunda geração neoclássica:
são os americanos que mais a estimam e estudam. A tal ponto que a mostra Girodet foi
iniciada pelo Museu de Cleveland. Os trabalhos consagrados ao pintor são, no entanto,
parciais. Faltam ainda grandes sínteses, debates e reflexões.
O gênio de Girodet emerge da exposição
parisiense impondo a força de uma beleza
singular e superior. Depois do primeiro impacto que abala, o olhar tem dificuldade em
se destacar de cada tela, tantas são suas seduções misteriosas. Elas se tecem numa
conjunção de heroísmo, grandeza e graça.
Mostram também uma poesia luminosa e
noturna que só Girodet soube atingir.
Lusco-fusco
É curioso que os escritos sobre a questão
da luz em Girodet não tenham ido mais longe do que despachar o pintor à tutela do
"sfumato" leonardesco. Primeiramente
porque o "sfumato" é uma solução, e a luz,
para Girodet, é uma fonte de interrogações.
Depois, porque na arte de Leonardo a penumbra acaricia epidermes, enquanto nos
quadros de Girodet ela penetra a matéria para transfigurá-la. É bem conhecido o fato de
que o artista preferia pintar à noite, iluminando as telas com refletores: curioso ainda
que ninguém tenha sublinhado a pouquíssima ortodoxia de tal procedimento e, sobretudo, o resultado visual que dele decorre.
Num quadro enorme, um grupo, nu, uma
família agarra-se, desesperada, para escapar
ao dilúvio. No alto, ziguezagueia um raio: a
intensidade efêmera do clarão "metaliza",
por assim dizer, a pele dos personagens,
dando-lhe tons e "substância" de cobre ou
bronze. O retrato satírico da atriz srta. Lange, com quem Girodet teve uma desavença,
concentra focos diferentes: a luminosidade
das moedas de Zeus, que caem no colo da
moderna Danae, retira a materialidade dos
ombros; a luz da candeia, que queima mariposas, parece aveludar a própria atmosfera.
Cada obra fervilha de novidades picturais
sutilíssimas. A essa mostra do Louvre, o Museu de Montargis, adorável cidadezinha cortada por canais na qual nasceu Girodet,
acrescentou uma outra, inserindo as obras
de juventude do artista ao lado das de seus
condiscípulos no ateliê de David. Todo um
setor da história da pintura que está ainda
por ser plenamente explorado.
Pataca
Alguns leitores escreveram pedindo precisões sobre o preço da caixa Mozart editada
pela marca "Brilliant Classics": na coluna do
domingo passado elas ficaram meio confusas. O estojo contém toda a obra de Mozart
em 170 CDs. Na Europa, custa por volta de
100, o que, em moeda brasileira, sai menos
do que R$ 2 por disco.
Fastidious
Outros leitores assinalaram lapso referente ao nascimento e morte de Mozart, cujas
datas saíram invertidas na coluna passada.
Um deles faz bem as contas: "Mozart nasceu
no dia 27/01/1756 e morreu no dia 5/12/1791.
Portanto, o que se completou em 1991 foi o
bicentenário da morte, não do nascimento.
E o que se lembra este ano são os 250 anos
do nascimento, e não da morte. Se ele tivesse
nascido em 1791 e morrido em 1756, teria tido idade negativa."
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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