São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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Escrito em 1848, "Manifesto Comunista", de Marx e Engels, antecipou a expansão e interdependência dos mercados em todo o mundo, mas não conseguiu dar conta da complexidade da vida social

O novo desafio da esfinge

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em meio às perplexidades correntes, geradas por um mundo de compreensão cada vez mais difícil, é sugestivo ler um texto escrito por dois jovens alemães, na casa dos 20 anos, que teve um imenso alcance. Falo, naturalmente, do "Manifesto Comunista", lançado por Marx e Engels, em fevereiro de 1848.
Seria absurdo tomar o texto como uma Bíblia do socialismo mas seria equivocado também tomá-lo apenas a partir da crítica de seus erros de análise e de previsão. O "Manifesto" é antes de tudo um documento histórico, como já diziam os autores, no prefácio à edição alemã de 1872, embora sustentassem a plena validade de seus princípios gerais.
Não cabe pois tomar ao pé da letra esse documento, que combina uma análise premonitória dos rumos universalizantes do capitalismo com uma incompreensão da complexidade da vida social.


Às certezas de um mundo que pressu-punha otimismo, veio sobrepor-se a opacidade do presente


Sob o primeiro aspecto, por exigências de espaço, reproduzo apenas, sem comentários, uma frase do "Manifesto" tratando da expansão do mercado mundial: "Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual".
Sob o segundo aspecto, é hoje fácil constatar que o proletariado tem pátria -a Primeira Guerra Mundial já demonstrara isso duramente- e não é uma classe redentora universal, que nada teria a perder, a não ser seus grilhões.
É fácil constatar também que o monopólio estatal não só da produção como de todas as esferas da vida social, pela via do partido, levou à monstruosa construção do regime dito soviético na Rússia e a outros que se seguiram. É fácil constatar, por último, que das entranhas do mundo civilizado sairia outro monstro -o nazismo-, regime irracional e profundamente racista, cujo surgimento Marx e Engels não poderiam imaginar.

Mundo de contradições
Na minha leitura, o primeiro elemento que impressiona no "Manifesto" é a simplificação, mas não a simplicidade do texto. Por sua natureza, pela convicção de seus autores, ele contém afirmativas contundentes, como lembrou Ruy Fausto num excelente artigo ("Acertos e Dificuldades do "Manifesto Comunista'"), publicado na revista "Estudos Avançados", de setembro/dezembro de 1988. Afirmativas do tipo "a história de toda sociedade é a história das lutas de classe"; "o poder do Estado moderno não é mais do que um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa"; "os trabalhadores não têm pátria" etc.
Para além dessa constatação, o "Manifesto" se destaca porque seus autores acreditam possuir a compreensão de um mundo reduzido a nítidas contradições polares. Veja-se a já citada redução de toda a história da sociedade à história da luta de classes; a simplificação dos antagonismos de classe, na época da burguesia, em dois vastos campos opostos -a burguesia e o proletariado- , conseqüência do avanço prodigioso da grande indústria, da proletarização das camadas inferiores da classe média, do domínio da cidade sobre o campo.
É esse contraste, entre a suposta simplicidade da compreensão do mundo exposta no "Manifesto" e a complexidade do presente, que nos leva a algumas questões centrais.
Em primeiro lugar, num contexto em que as crenças religiosas, as disputas étnicas, acompanhadas de uma fantástica simbologia de textos e imagens, alcançaram grande projeção, convém não esquecer a manutenção da importância das bases materiais da sociedade, dos interesses econômicos em jogo, embora as bases materiais tenham mudado profundamente de conteúdo, ao longo dos anos.
Ao mesmo tempo, é preciso constatar que a polaridade da luta de classes já não tem grande força explicativa e que as maiores contradições do mundo atual não se situam nesse plano.
Ressalvadas algumas iluminadas exceções, a perspectiva do socialismo ao alcance das mãos cedeu lugar a reivindicações mais realistas, admitidas todas as suas dificuldades: a luta contra a fome, a redução das desigualdades, o acesso de milhões de pessoas à educação, à saúde, aos direitos civis e políticos, em poucas palavras, o acesso à cidadania.

Multidão
Por outro lado, as "superestruturas" que iriam ruir com a liqüidação da burguesia, na previsão de Marx e de Engels, revelaram ter uma sólida consistência, com a emergência dos fundamentalismos e das questões étnicas e raciais, em muitas partes do mundo, que não se restringem ao Oriente Médio. O sagrado, o étnico, a afirmação nacional são temas mobilizadores, ao lado de outros, como o da preservação da natureza ou da luta contra a globalização.
Em muitas mobilizações, quem está presente não é o proletariado branco europeu dos tempos de Marx e Engels, e sim massas sem emprego, sem perspectivas de futuro, situadas à margem do processo histórico da globalização. Essas massas não representam sociologicamente o chamado lumpemproletariado, definido no "Manifesto" como "produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade", predisposto principalmente a "vender-se à reação".
Mas, se a origem sociológica desses contingentes sociais deriva menos da velha sociedade e mais das novas formas sociais, nem por isso eles deixam de ser os setores mais tocados pela "desordem do mundo", pela manipulação de muitos governos, pelo encanto dos heróis salvadores. De fato, às certezas do passado, às certezas de um mundo supostamente legível, que pressupunha otimismo e progresso apesar das catástrofes, veio sobrepor-se a opacidade do presente.
A realidade atual traz desconforto, mas tem também uma fascinação que lembra o desafio da esfinge: "Decifra-me ou devoro-te". Só que a necessária decifração não corresponde mais a alcançar ilusórias certezas. Decifrar, no mundo de hoje, é tentar entender, como passo inicial de uma ação transformadora.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores".


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