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"Você É um Animal, Viskovitz?" apresenta ao leitor o humor rebelde de Alessandro Boffa
Uma saga de corpos infinitos
Giovanna Bartucci
especial para a Folha
Você É um Animal, Viskovitz?", de
Alessandro Boffa, é uma narrativa
prenhe de humor e ironia. Pois é, não podemos de forma alguma confundir escárnio com ironia. Se o escárnio logo remete o leitor, ou interlocutor, ao reconhecimento do menosprezo e/ou desdém do escritor ou falante acerca de algo
ou alguém, a ironia não chega a expressar desamor.
E mais, se a ironia consiste em dizer o
contrário daquilo que se está pensando
ou sentindo, ou por pudor em relação a
si próprio, ou até mesmo com intenção
depreciativa em relação a outrem, há algo de muito curioso em seu uso.
A ironia é como aquela pitadinha de
tempero que altera todo e qualquer sabor: a possibilidade mesma de levar o interlocutor, ou leitor, ao reconhecimento
de seu estado de não-saber, ou melhor,
ao reconhecimento de seu estado de
não-saber-que-sabe.
Um rebelde
O humor, então, nem se
fala. Se é, afinal, uma disposição de espírito, o humor não é resignado, mas rebelde. Se sua essência é poupar os afetos à
qual uma determinada situação daria
origem, afastando com uma piada a possibilidade de expressão das emoções, o
humor afirma, na verdade, a vulnerabilidade sim do sujeito.
Ao se "recusar a ser afetado" pelos
"traumas externos", aquele que produz o
humor está dizendo: olha a vida aqui, e
por certo não passarei por ela passivamente. Assim é que podemos de forma
prazerosa e ativa sair do lugar ou posição
que nos foi designada, independente de
qual seja, para circularmos mais livremente. Afinal, o humor não é resignado,
mas rebelde. Mais interessante, ainda, é
quando aquele que produz o humor é ele mesmo
objeto de seu próprio humor, já que é consciente
de que não é dono (ou pelo menos não o único) de
sua própria casa.
É essencialmente isso o
que faz Alessandro Boffa,
em "Você É um Animal,
Viskovitz?". Viskovitz, personagem
principal dessa saga, narra seu percurso
por esse ecossistema muito humano no
qual convivem arganazes, caramujos, insetos, pássaros, alces, estercorários, porcos, mais roedores, papagaios, peixes,
aracnídeas, camaleões, cães, mais vermes, tubarões, micróbios etc. etc; ou seja,
Viskovitz e Liuba, sua paixão, em seus
diferentes corpos.
E não são simples os relacionamentos
mútuos entre determinado meio ambiente e flora, entre fauna e os microorganismos que nesse ecossistema habitam -ainda que tudo isso se dê em nome do equilíbrio geológico, atmosférico,
meteorológico e biológico. Formações
de compromisso são necessárias.
Reflexo assassino
Mas, veja só, Viskovitz é um acrônimo de Very Intelligent
Superior Kind of Very Intelligent and
Talented Zootype. É, nessa medida, que
Viskovitz está sempre a rir de si mesmo.
Embora impossibilitado de viver em sociedade por causa de seu reflexo assassino escorpiano, Viskovitz não cessa de
procurar a companheira
ideal com a qual possa
educar seus filhos, envelhecer ao seu lado. Mas,
imagine, quando encontra efetivamente a dita cuja, já agora (ou anteriormente) no "corpo" de um
arganaz, Viskovitz não sabe mais o que é realidade
ou fantasia, e perdem-se, entre sonhos
pessoais e coletivos, Viskovitz e Liuba.
Passando pelo "comportamento sexual" dos caramujos, pelo comportamento estereotipado dos passeriformes,
por aquilo que um alce tem na cabeça
além de idéias, ou seja, sabres (ou melhor, cabelo), pela luta pela sobrevivência
dos estercorários, por heranças identificatórias dos porcos, por processos de seleção artificial criados em laboratório a
que são submetidos os roedores, pela
busca de sabedoria dos papagaios, pelo
desejo das larvas de dominar o mundo e
reduzir à servidão o próximo e destruir
toda criatura com mais de um mícron de
altura, são muitas as questões com as
quais se defrontam Viskovitz e Liuba.
E, passando pela impotência dos
"skorpios" diante do automatismo de
seu sistema nervoso primitivo e sua expectativa de que a psicanálise possa curá-los, pela descoberta dos camaleões do segredo para ser si-mesmo, ou seja, renunciar a si, esvaziar-se e deixar-se preencher, pelo trauma psicológico causado
ao tubarão-filho ao ver seu pai estraçalhar sua mãe sem deixar nem um pedacinho para ele saborear, pela impossibilidade de um vegetal em suicidar-se, são
muitas as temáticas que demandam de
Viskovitz e Liuba reflexão, afinal, é sempre de sua inserção nesse ecossistema geracional e da possibilidade mesma de viver e não sobreviver a absoluta vulnerabilidade do sujeito que se trata.
Mas, talvez, a característica mais significativa e borgiana dessa narrativa é que
Viskovitz e Liuba perdem-se entre sonhos e realidades. Ao final, melhor dizendo, no princípio, já não sabem mais
quem havia sonhado quem, ou com que
vida haviam sonhado para si. Mas não
será essa, então, a grande qualidade de
todo humor: ao reconhecer sua própria
vulnerabilidade, o sujeito está, simultaneamente, afirmando certa liberdade em
relação às "neuroses de destino"? Pois
sim, até que provem o contrário, e como
bem diz Viskovitz, "cada despertar (é)
uma morte, viver (é) morrer". E, talvez,
ainda devamos dizer não a tudo aquilo
que ameace o que não podemos perder,
o que signifique vida, por certo.
Você É um Animal, Viskovitz?
144 págs., R$ 20,50
de Alessandro Boffa. Tradução
de Eduardo Brandão. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel. 0/xx/11/
866-0801).
Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de "Borges
-A Realidade da Construção (Imago) e organizadora de
"Psicanálise, Cinema e Estéticas de Subjetivação" (Imago, no prelo).
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