São Paulo, domingo, 19 de abril de 2009

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A ORIGEM DA TRAGÉDIA

FILHO DO CASAL DE POETAS MAIS FAMOSO DO SÉCULO 20, NICHOLAS HUGHES VIVIA COMO BIÓLOGO NO ALASCA ANTES DE SE MATAR, EM MARÇO PASSADO

DAVID BARSTOW
Antes de sua morte em 1998, o poeta inglês Ted Hughes publicou um livro doloroso sobre sua vida com Sylvia Plath, intitulado "Cartas de Aniversário" [ed. Record, trad. Paulo Henriques Britto]. Os poemas, quase todos endereçados a Plath, tratavam de beleza e da fratura de seu casamento, antes do suicídio dela em 1963.
Um dos poemas foi escrito para os filhos do casal, Frieda e Nicholas. Chamado "The Dogs Are Eating Your Mother" (Os Cães Estão Devorando Sua Mãe), o poema avisava sobre os famintos devotos de Plath que "acharão vocês igualmente suculentos" e oferecia uma espécie de bênção a Nicholas, que, havia anos, já mantinha os literatos à distância:
"Então a deixe.
Que ela seja o despojo deles. Vá mergulhar
Sua cabeça nos rios nevados
Da Brooks Range."
Os versos faziam um retrato sucinto de Nicholas Hughes, homem que se dedicou de corpo e alma ao estudo dos peixes dos rios nevados do Alasca e cuja casa, um belo chalé de 280 metros quadrados em meio a oito hectares de abetos e bétulas intocados, era voltada para a distante cadeia de montanhas Brooks Range.
Ele foi um homem que deixou claro a seus amigos que preferia discutir as minúcias da pesca no gelo aos escritos de seus pais. De fato, alguns de seus colegas na Escola de Ciências Oceânicas e da Pesca da Universidade do Alasca, em Fairbanks, trabalharam com ele durante anos sem saber que ele era filho de dois importantíssimos poetas do século 20.
Tudo isso mudou em 16 de março.
O dia estava ensolarado, com a temperatura um pouco abaixo de zero, e Hughes aparentava estar de bom humor.
Durante anos ele combatera a depressão, como tinha sido o caso de sua mãe, e, numa viagem recente à Nova Zelândia, chegara a falar em suicídio.
Mas suportara os períodos difíceis, buscando o apoio de amigos íntimos, procurando ajuda médica e administrando sua doença com exercício e migrações regulares, no inverno, para o clima mais ensolarado da Nova Zelândia.
Em seu chalé, naquela tarde, ele tomou chá com sua namorada, Christine M. Hunter.
"É um dia bom", comentou com ela. Disse que sairia para fazer uma caminhada. Hunter, que é professora de ecologia silvestre na universidade, foi para o primeiro andar da casa para fazer a avaliação de trabalhos de alunos.

Corda de náilon
Por volta das 16h, quando ele ainda não retornara, ela saiu à sua procura. Hughes tinha dito a amigos que, se algum dia decidisse pôr fim à própria vida, concluíra que o melhor método seria enforcar-se em sua oficina ao lado de seu chalé. Foi ali que Hunter o encontrou, enforcado com uma corda fina de náilon amarrada a uma viga exposta no teto.
Nicholas Hughes, 47 anos, não deixou uma carta. Mas os investigadores disseram que as evidências deixaram claro que ele planejou sua morte com cuidado. "Ele sabia o que estava fazendo", disse o policial estadual Michael Wery. Nas semanas após sua morte, a notícia do suicídio reverberou de maneiras muito diferentes em dois mundos distantes e desligados um do outro.
Na dinâmica comunidade de estudiosos de Plath e Hughes, a morte de Nicholas foi sentida profundamente pelo viés dos escritos de seus pais.
Seu nascimento foi registrado vividamente nos diários de Sylvia Plath. Ele foi "o bebê no celeiro" de "Nick e o Castiçal", da coletânea mais conhecida de Plath, "Ariel" [ed. Verus], escrita nos meses finais de sua vida. E, no acontecimento cuja presença pesa sobre cada página de "Cartas de Aniversário", ele era o pequeno Nick, que mal completara um ano de idade quando Plath cuidadosamente o encerrou em outro cômodo com Frieda e então se matou, inalando gás do forno em seu apartamento, em Londres.
"As pessoas sentem como se quase conhecessem os dois pela poesia", disse Karen V. Kukil, curadora da coleção de Sylvia Plath no Smith College.
Kukil disse que, quando faz palestras, as pessoas inevitavelmente lhe perguntam sobre Nicholas e Frieda. Afinal, eles não apenas absorveram a morte de sua mãe como também tiveram que suportar o que aconteceu seis anos mais tarde, quando Assia Wevill, a mulher por quem Hughes deixara Plath, matou a si mesma e à meia-irmã deles, Shura, de 4 anos, também inalando gás.
Kukil contou que as plateias pareciam sentir-se tranquilizadas quando ela descrevia a vida de Nicholas Hughes no distante Alasca, um caminho de vida condizente com o amor do pai dele pela natureza e pela pesca. Seu suicídio, disse, "atingiu as pessoas com muita força".

Pesca e jardinagem
As reações em Fairbanks são mais complexas. Aqui uma comunidade de cientistas conhecia Nicholas Hughes não pela poesia de seus pais, mas por suas inteligentes pesquisas com ecossistemas de água doce. Conheciam-no pela pesca no gelo, o ciclismo, a jardinagem ou a cerâmica. E sua morte provocou um ressentimento crescente, de que sua vida e sua morte estão sendo distorcidas por estranhos, retratadas como o inevitável efeito posterior das infidelidades de seu pai ou como tendo sido de alguma maneira predeterminadas pelos demônios de sua mãe.
O Nicholas Hughes que essas pessoas conheciam era um homem de imensa energia e curiosidade e que se mostrava mais à vontade num velho pulôver de lã e um par gasto de botas, caminhando sobre a tundra em direção a algum riacho escondido.
Sentia aversão absoluta pela política acadêmica e possuía um dom especial para encontrar soluções simples para problemas científicos complexos, que traduzia em prosa enxuta e clara para as publicações mais importantes de sua área.
"Para mim, seu trabalho era elegante e belo, como um bom poema", disse Amanda E. Rosenberger, professora na Escola de Ciências Oceânicas e da Pesca, enxugando lágrimas.
Seus amigos em Fairbanks estão enfrentando sua morte não como um ponto final literário lastimável, mas como uma perda irreparável -para sua namorada, para os estudantes que orientava e para o futuro da ecologia ictiológica.
Usando sistemas complexos de câmeras subaquáticas e modelos computadorizados sofisticados, Hughes havia desenvolvido novas ideias sobre como salmões e outros peixes escolhem seus habitats.
Possuía um conhecimento enciclopédico dos ecossistemas, era perito em hidrodinâmica e biologia evolucionária.

Fascínio por peixes
Essa é uma razão pela qual as pessoas aqui zombam da ideia de que ele teria vindo ao Alasca como uma fuga à moda de "Na Natureza Selvagem" [Cia. das Letras], de Jon Krakauer.
O fascínio que sentia por peixes remontava a mais de duas décadas, desde sua passagem pela Universidade de Oxford, onde fez bacharelado e mestrado em zoologia, seguidos por um doutorado em biologia na Universidade do Alasca, em 1991.
Após conquistar vários cargos de prestígio como pesquisador no Canadá e no Alasca, em 1998 a Universidade do Alasca em Fairbanks o contratou como professor-assistente.
Nicholas Hughes trabalhava em um conjunto de construções no alto de uma escarpa, com vista para uma planície onde pastam renas. É um ambiente informal, onde os cientistas guardam esquis em seus laboratórios para que possam esquiar na hora do almoço.
O estilo de vida agradava a Hughes, tanto profissionalmente quanto pelo amor que nutria pela natureza do Alasca.

Privacidade
Mas também apreciava outra qualidade do Alasca: o respeito por ser deixado sozinho. Vários amigos seus rejeitaram educadamente os pedidos de entrevista, dizendo simplesmente que achavam que Hughes não gostaria de qualquer invasão em sua privacidade.
Aqueles que conheciam sua história familiar também acharam questão de bons modos básicos não tocar no assunto sem serem convidados.
Frank Soos, professor de inglês aposentado, participava de um grupo de ciclismo com Nicholas Hughes e conhece bem o trabalho de Sylvia Plath e Ted Hughes. Mas em nenhuma ocasião tocou no assunto.
"Era muito evidente que não queria falar nisso", disse Soos.
Na realidade, lembra, o relacionamento deles mudou quando Hughes soube que ele lecionava inglês. "Senti uma distância palpável surgir entre nós".
Seus colegas sabiam de sua luta contra a depressão, mas disseram que Hughes se esforçava para administrar a doença.
Mesmo assim, em setembro de 2006, ficaram alarmados quando ele deixou de comparecer ao trabalho por vários dias. Pediram à polícia estadual que verificasse como estava.
Alguns meses mais tarde, Hughes renunciou inesperadamente a seu cargo na universidade. Seus amigos disseram que ele queria escapar do estresse da política acadêmica e dos trabalhos administrativos burocráticos.
Mas, graças à receita do legado literário de sua mãe, ele tinha condições econômicas de levar suas pesquisas adiante por conta própria e continuou a colaborar com outro professor, Mark S. Wipfli, em um grande projeto de estudo demográfico e ecológico dos salmões chinook no rio Chena.
Hughes comprou seu chalé nos arredores de Fairbanks e começou a namorar Christine Hunter, cujas pesquisas ajudaram a descrever como o aquecimento global ameaça a sobrevivência dos ursos polares. Rosenberger jantou com o casal em dezembro, antes da partida deles para a Nova Zelândia.
"Fiquei contente de ver que ele estava tendo um relacionamento e estava feliz", disse. Mas o policial Wery disse que Christine Hunter contou aos investigadores que Hughes estava aflito com um tema particular: as desavenças entre sua irmã e a madrasta deles, Carol Hughes. Nos últimos dois anos, as duas mulheres se desentenderam em torno do espólio de Ted Hughes. Nem Hunter nem Frieda, ela própria poeta, pintora e escritora residente na Inglaterra, responderam a pedidos de declarações.
Em 30 de março, amigos de Nicholas Hughes se reuniram numa sala da universidade para uma cerimônia memorial. Embora sua morte tivesse gerado manchetes em todo o mundo, a cerimônia só foi mencionada no "Daily News-Miner" da manhã seguinte.
Seu colunista principal, Dermot Cole, disse que, havia pelo menos uma década, sabia que o filho de Sylvia Plath e Ted Hughes vivia na cidade. De vez em quando ligava para tentar convencer Hughes a autorizar que escrevesse sobre ele.
"Mas ele simplesmente não queria", comentou Cole. Depois do suicídio, ele escreveu o obituário de Hughes, mas disse que não sentiu que seria certo invadir a cerimônia memorial.


Este texto foi publicado no "New York Times". Tradução de Clara Allain.

Folha Online
Leia dois poemas do livro "Ariel", de Sylvia Plath
www.folha.com.br/091061


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