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A ORIGEM DA TRAGÉDIA
FILHO DO CASAL DE POETAS MAIS FAMOSO DO SÉCULO 20, NICHOLAS HUGHES
VIVIA COMO BIÓLOGO NO ALASCA ANTES DE SE MATAR, EM MARÇO PASSADO
DAVID BARSTOW
Antes de sua morte
em 1998, o poeta inglês Ted Hughes
publicou um livro
doloroso sobre sua
vida com Sylvia Plath, intitulado "Cartas de Aniversário" [ed.
Record, trad. Paulo Henriques
Britto]. Os poemas, quase todos endereçados a Plath, tratavam de beleza e da fratura de
seu casamento, antes do suicídio dela em 1963.
Um dos poemas foi escrito
para os filhos do casal, Frieda e
Nicholas. Chamado "The Dogs
Are Eating Your Mother" (Os
Cães Estão Devorando Sua
Mãe), o poema avisava sobre os
famintos devotos de Plath que
"acharão vocês igualmente suculentos" e oferecia uma espécie de bênção a Nicholas, que,
havia anos, já mantinha os literatos à distância:
"Então a deixe.
Que ela seja o despojo deles. Vá mergulhar
Sua cabeça nos rios nevados
Da Brooks Range."
Os versos faziam um retrato
sucinto de Nicholas Hughes,
homem que se dedicou de corpo e alma ao estudo dos peixes
dos rios nevados do Alasca e
cuja casa, um belo chalé de 280
metros quadrados em meio a
oito hectares de abetos e bétulas intocados, era voltada para
a distante cadeia de montanhas
Brooks Range.
Ele foi um homem que deixou claro a seus amigos que
preferia discutir as minúcias da
pesca no gelo aos escritos de
seus pais. De fato, alguns de
seus colegas na Escola de Ciências Oceânicas e da Pesca da
Universidade do Alasca, em
Fairbanks, trabalharam com
ele durante anos sem saber que
ele era filho de dois importantíssimos poetas do século 20.
Tudo isso mudou em 16 de
março.
O dia estava ensolarado, com
a temperatura um pouco abaixo de zero, e Hughes aparentava estar de bom humor.
Durante anos ele combatera
a depressão, como tinha sido o
caso de sua mãe, e, numa viagem recente à Nova Zelândia,
chegara a falar em suicídio.
Mas suportara os períodos
difíceis, buscando o apoio de
amigos íntimos, procurando
ajuda médica e administrando
sua doença com exercício e migrações regulares, no inverno,
para o clima mais ensolarado
da Nova Zelândia.
Em seu chalé, naquela tarde,
ele tomou chá com sua namorada, Christine M. Hunter.
"É um dia bom", comentou
com ela. Disse que sairia para
fazer uma caminhada. Hunter,
que é professora de ecologia
silvestre na universidade, foi
para o primeiro andar da casa
para fazer a avaliação de trabalhos de alunos.
Corda de náilon
Por volta das 16h, quando ele
ainda não retornara, ela saiu à
sua procura. Hughes tinha dito
a amigos que, se algum dia decidisse pôr fim à própria vida,
concluíra que o melhor método
seria enforcar-se em sua oficina ao lado de seu chalé.
Foi ali que Hunter o encontrou, enforcado com uma corda
fina de náilon amarrada a uma
viga exposta no teto.
Nicholas Hughes, 47 anos,
não deixou uma carta. Mas os
investigadores disseram que as
evidências deixaram claro que
ele planejou sua morte com
cuidado. "Ele sabia o que estava
fazendo", disse o policial estadual Michael Wery.
Nas semanas após sua morte,
a notícia do suicídio reverberou
de maneiras muito diferentes
em dois mundos distantes e
desligados um do outro.
Na dinâmica comunidade de
estudiosos de Plath e Hughes, a
morte de Nicholas foi sentida
profundamente pelo viés dos
escritos de seus pais.
Seu nascimento foi registrado vividamente nos diários de
Sylvia Plath. Ele foi "o bebê no
celeiro" de "Nick e o Castiçal",
da coletânea mais conhecida de
Plath, "Ariel" [ed. Verus], escrita nos meses finais de sua vida.
E, no acontecimento cuja
presença pesa sobre cada página de "Cartas de Aniversário",
ele era o pequeno Nick, que mal
completara um ano de idade
quando Plath cuidadosamente
o encerrou em outro cômodo
com Frieda e então se matou,
inalando gás do forno em seu
apartamento, em Londres.
"As pessoas sentem como se
quase conhecessem os dois pela poesia", disse Karen V. Kukil,
curadora da coleção de Sylvia
Plath no Smith College.
Kukil disse que, quando faz
palestras, as pessoas inevitavelmente lhe perguntam sobre Nicholas e Frieda.
Afinal, eles não apenas absorveram a morte de sua mãe
como também tiveram que suportar o que aconteceu seis
anos mais tarde, quando Assia
Wevill, a mulher por quem Hughes deixara Plath, matou a si
mesma e à meia-irmã deles,
Shura, de 4 anos, também inalando gás.
Kukil contou que as plateias
pareciam sentir-se tranquilizadas quando ela descrevia a vida
de Nicholas Hughes no distante Alasca, um caminho de vida
condizente com o amor do pai
dele pela natureza e pela pesca.
Seu suicídio, disse, "atingiu as
pessoas com muita força".
Pesca e jardinagem
As reações em Fairbanks são
mais complexas. Aqui uma comunidade de cientistas conhecia Nicholas Hughes não pela
poesia de seus pais, mas por
suas inteligentes pesquisas
com ecossistemas de água doce. Conheciam-no pela pesca
no gelo, o ciclismo, a jardinagem ou a cerâmica.
E sua morte provocou um
ressentimento crescente, de
que sua vida e sua morte estão
sendo distorcidas por estranhos, retratadas como o inevitável efeito posterior das infidelidades de seu pai ou como
tendo sido de alguma maneira
predeterminadas pelos demônios de sua mãe.
O Nicholas Hughes que essas
pessoas conheciam era um homem de imensa energia e curiosidade e que se mostrava
mais à vontade num velho pulôver de lã e um par gasto de botas, caminhando sobre a tundra
em direção a algum riacho escondido.
Sentia aversão absoluta pela
política acadêmica e possuía
um dom especial para encontrar soluções simples para problemas científicos complexos,
que traduzia em prosa enxuta e
clara para as publicações mais
importantes de sua área.
"Para mim, seu trabalho era
elegante e belo, como um bom
poema", disse Amanda E. Rosenberger, professora na Escola de Ciências Oceânicas e da
Pesca, enxugando lágrimas.
Seus amigos em Fairbanks
estão enfrentando sua morte
não como um ponto final literário lastimável, mas como uma
perda irreparável -para sua
namorada, para os estudantes
que orientava e para o futuro da
ecologia ictiológica.
Usando sistemas complexos
de câmeras subaquáticas e modelos computadorizados sofisticados, Hughes havia desenvolvido novas ideias sobre como salmões e outros peixes escolhem seus habitats.
Possuía um conhecimento
enciclopédico dos ecossistemas, era perito em hidrodinâmica e biologia evolucionária.
Fascínio por peixes
Essa é uma razão pela qual as
pessoas aqui zombam da ideia
de que ele teria vindo ao Alasca
como uma fuga à moda de "Na
Natureza Selvagem" [Cia. das
Letras], de Jon Krakauer.
O fascínio que sentia por peixes remontava a mais de duas
décadas, desde sua passagem
pela Universidade de Oxford,
onde fez bacharelado e mestrado em zoologia, seguidos por
um doutorado em biologia na
Universidade do Alasca, em
1991.
Após conquistar vários cargos de prestígio como pesquisador no Canadá e no Alasca, em
1998 a Universidade do Alasca
em Fairbanks o contratou como professor-assistente.
Nicholas Hughes trabalhava
em um conjunto de construções no alto de uma escarpa,
com vista para uma planície
onde pastam renas. É um ambiente informal, onde os cientistas guardam esquis em seus
laboratórios para que possam
esquiar na hora do almoço.
O estilo de vida agradava a
Hughes, tanto profissionalmente quanto pelo amor que
nutria pela natureza do Alasca.
Privacidade
Mas também apreciava outra
qualidade do Alasca: o respeito
por ser deixado sozinho. Vários
amigos seus rejeitaram educadamente os pedidos de entrevista, dizendo simplesmente
que achavam que Hughes não
gostaria de qualquer invasão
em sua privacidade.
Aqueles que conheciam sua
história familiar também acharam questão de bons modos básicos não tocar no assunto sem
serem convidados.
Frank Soos, professor de inglês aposentado, participava de
um grupo de ciclismo com Nicholas Hughes e conhece bem o
trabalho de Sylvia Plath e Ted
Hughes. Mas em nenhuma ocasião tocou no assunto.
"Era muito evidente que não
queria falar nisso", disse Soos.
Na realidade, lembra, o relacionamento deles mudou quando
Hughes soube que ele lecionava inglês. "Senti uma distância
palpável surgir entre nós".
Seus colegas sabiam de sua
luta contra a depressão, mas
disseram que Hughes se esforçava para administrar a doença.
Mesmo assim, em setembro de
2006, ficaram alarmados quando ele deixou de comparecer ao
trabalho por vários dias. Pediram à polícia estadual que verificasse como estava.
Alguns meses mais tarde,
Hughes renunciou inesperadamente a seu cargo na universidade. Seus amigos disseram
que ele queria escapar do estresse da política acadêmica e
dos trabalhos administrativos
burocráticos.
Mas, graças à receita do legado literário de sua mãe, ele tinha condições econômicas de
levar suas pesquisas adiante
por conta própria e continuou a
colaborar com outro professor,
Mark S. Wipfli, em um grande
projeto de estudo demográfico
e ecológico dos salmões chinook no rio Chena.
Hughes comprou seu chalé
nos arredores de Fairbanks e
começou a namorar Christine
Hunter, cujas pesquisas ajudaram a descrever como o aquecimento global ameaça a sobrevivência dos ursos polares. Rosenberger jantou com o casal
em dezembro, antes da partida
deles para a Nova Zelândia.
"Fiquei contente de ver que
ele estava tendo um relacionamento e estava feliz", disse.
Mas o policial Wery disse que
Christine Hunter contou aos
investigadores que Hughes estava aflito com um tema particular: as desavenças entre sua
irmã e a madrasta deles, Carol
Hughes. Nos últimos dois anos,
as duas mulheres se desentenderam em torno do espólio de
Ted Hughes. Nem Hunter nem
Frieda, ela própria poeta, pintora e escritora residente na Inglaterra, responderam a pedidos de declarações.
Em 30 de março, amigos de
Nicholas Hughes se reuniram
numa sala da universidade para
uma cerimônia memorial. Embora sua morte tivesse gerado
manchetes em todo o mundo, a
cerimônia só foi mencionada
no "Daily News-Miner" da manhã seguinte.
Seu colunista principal, Dermot Cole, disse que, havia pelo
menos uma década, sabia que o
filho de Sylvia Plath e Ted Hughes vivia na cidade. De vez em
quando ligava para tentar convencer Hughes a autorizar que
escrevesse sobre ele.
"Mas ele simplesmente não
queria", comentou Cole. Depois do suicídio, ele escreveu o
obituário de Hughes, mas disse
que não sentiu que seria certo
invadir a cerimônia memorial.
Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Clara Allain.
Folha Online
Leia dois poemas do livro
"Ariel", de Sylvia Plath
www.folha.com.br/091061
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