São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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LIVROS
FHC na linha de fogo



"Novos Estudos", do Cebrap, comemora nš 50 com textos do presidente e adversários
CÉLIA DE GOUVÊA FRANCO
da Reportagem Local

"A reforma do Estado não é apenas um movimento incentivador da racionalização formal da máquina pública e de incentivos a critérios de competição aberta em detrimento dos cartórios fechados. É sobretudo um movimento democratizador, para assentar as bases de um Estado que tenha presença em uma sociedade que -embora os tenha, aos milhões- não aceita mais a existência de excluídos."
Esse é o ponto central da argumentação do presidente Fernando Henrique Cardoso, para quem o Estado brasileiro precisa passar por uma reformulação radical, não para obedecer aos cânones do neoliberalismo, mas sim para torná-lo mais democrático. "Com as reformas, o princípio orientador do Estado passa a ser universalização do acesso." Ou seja, o Estado precisa apresentar um novo modelo, de forma que não apenas grupos relativamente pequenos de pessoas possam desfrutar de benefícios como saúde e educação.
As opiniões de FHC estão contidas em um artigo que escreveu para a edição nš 50 da revista "Novos Estudos", uma publicação do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), do qual o presidente foi um dos fundadores.
Boa parte do artigo é dedicada à análise da chamada "onda rosa" ou ao clima político e ideológico que parece estar dominando o debate em alguns países. FHC cita e comenta as mudanças no cenário político em países como Reino Unido, França, Itália e Portugal.
Para ele, reformar o papel do Estado é inevitável. "O mercado é uma realidade inescapável, aloca recursos e benefícios sob o imperativo da eficiência capitalista (...). Mas não é o mercado que garante, como subproduto, a redistribuição de rendas ou o bem-estar social e a coesão da sociedade." Para alcançar esses objetivos, seria preciso, diz FHC, não "ação estatal", mas sim "ação pública", e para permitir que o Estado atue segundo esse novo modelo de ação pública é que seria preciso reformá-lo totalmente.
FHC não avalia em detalhes se seu governo seria ou não neoliberal. Ele se mantém quase distante, na verdade, do debate mais vivo sobre a orientação da sua administração. Só se permite uma estocada, de leve, em seus críticos de esquerda, ao afirmar, já no final do seu artigo, que hoje os sinais políticos estão trocados e ele não tem contado com o suporte de quem deveria estar apoiando as reformas do Estado pelo caráter democratizante que elas teriam.
Príncipe ou tirano?
O tom ameno do comentário de Fernando Henrique Cardoso contrasta com o dos artigos seguintes. "Para quem um dia foi chamado por Glauber Rocha (...) de "príncipe dos sociólogos' brasileiros, terminar como tirano talvez seja uma forma principesca", escreve o professor de sociologia Francisco de Oliveira sobre o presidente.
Poucas páginas adiante, Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre e dirigente do PT, diz que, "se analisarmos as forças sociais e políticas que sustentam o governo FHC, concluiremos que ele se apóia basicamente nos setores mais conservadores e reacionários da sociedade brasileira".
Mais adiante, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), avalia que o credo básico de FHC em algumas variáveis (como a de que "o povo não liga para política") resulta na "esterilização da política, reduzida a manobras "florentinas' (versão planaltina difundida na imprensa) ou "calhordas' (versão de Itamar Franco esbravejada aos jornalistas) que circunscrevem o debate sobre a nacionalidade".
Um último exemplo é o artigo do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, da Universidade Cândido Mendes: "Dadas as peculiaridades institucionais inauguradas pela Constituição de 1988, a adição de vetustos problemas àqueles cuja paternidade é mais recente pariu, por certo inesperadamente, uma espécie de governo ad referendum, cuja consagrada estratégia de ação consiste na criação de fatos consumados (...). Possivelmente, nenhum governo, nem mesmo os militares, usou os recursos de poder à sua disposição no extremo limite em que o atual o faz".
Essas avaliações não são críticas feitas por inimigos figadais, históricos do presidente, mas sim por intelectuais e professores com os quais, em sua maioria, FHC conviveu de forma muito intensa no próprio Cebrap.
O tom duro, extremamente crítico, de alguns dos artigos da revista do Cebrap significaria que o próprio Cebrap está avaliando o governo de FHC dessa forma?
Não, garantem dois dos principais dirigentes do Cebrap, que discordam entre si nas avaliações do governo FHC.
José Arthur Giannotti, presidente do Cebrap e um dos seus fundadores, reconhece que o tom da mais recente edição "Novos Estudos" pode parecer muito crítico a FHC. Por ser o número 50 da revista, resolveu-se fazer uma edição especial, para a qual foram convidados a colaborar muitos dos que formaram o núcleo básico, fundador, do Cebrap -o próprio Fernando Henrique mandou seu artigo, "Notas sobre a Reforma do Estado".
Por uma série de fatores, acabaram ficando de fora os comentários de alguns intelectuais que teriam dado maior equilíbrio à avaliação do governo, explica Giannotti e confirma Alencastro, diretor científico do Cebrap.
Diversidade de opiniões
"O Cebrap sempre foi uma instituição com pessoas consideradas de centro e de esquerda no arco político brasileiro. Sempre houve um tom crítico nas avaliações que se fez dos governos, especialmente, é claro, durante os governos militares. Mas o Cebrap sempre se destacou também pela diversidade de opiniões. Sempre houve discordâncias entre as pessoas que trabalhavam aqui", comenta Alencastro. Ele lembra que em 1985 alguns dos pesquisadores do Cebrap defendiam a idéia de que Fernando Henrique Cardoso deveria abrir mão da sua candidatura à prefeitura de São Paulo em favor de uma aliança com o PT -na eleição que acabou sendo vencida por Jânio Quadros.
Giannotti volta a épocas ainda mais remotas, os anos seguintes à fundação do Cebrap, em 1969. "Havia uma coesão muito grande entre os fundadores do Cebrap. Também havia discussões muito violentas, mas prevalecia um clima amigável. Todo mundo xingava os outros até a alma, mas depois iam todos tomar chope juntos."
Isso não impediu que nas últimas eleições o Cebrap fosse tomado por discussões acaloradas sobre apoiar ou não a decisão de FHC de fazer alianças políticas com partidos como o PFL, que resultaram na saída da entidade de alguns pesquisadores, notadamente Francisco de Oliveira, um dos fundadores.
Giannotti e Alencastro acham que neste ano de eleições o clima é diferente. Continuam as divergências políticas -acredita-se, por exemplo, que entre os pesquisadores mais jovens a maioria está de uma forma ou de outra ligada ao PT-, mas haveria "um consenso de que é preciso haver um certo respeito pelas idéias políticas dos outros para ser possível haver uma convivência no Cebrap", diz Alencastro.



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