São Paulo, domingo, 19 de abril de 1998

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LIVROS
Tempo prismático



Antologia reúne os melhores textos publicados na "Revista Barroco"
GUIOMAR DE GRAMMONT
especial para a Folha

Em um dos belos textos dessa coletânea, intitulado "Uma Geometria do Tempo", Suzanna Peters nos oferece uma interessante análise sobre o momento em que ampulhetas, clepsidras e relógios tornaram-se metáforas privilegiadas para os poetas marinistas do século 17. Os instrumentos opõem a aparente estabilidade da medição das horas ao fluxo do tempo em que esses autores escrevem, instável e dominado pela imagem da morte. Apesar de medido e controlado, o tempo flui, inexorável, como a água da clepsidra e o pó da ampulheta. O homem é lagrime "in vita", e "polve in morte", derrama lágrimas em vida para desfazer-se em cinzas na morte, reza o poema "Orologio da Polvere", de Ciro di Pers, analisado pela autora. A matéria do tempo é a experiência, com tudo o que esta possa conter de dores e delícias. É o que nos mostra o percurso da "Revista Barroco" em sua história de desafios e conquistas, lutas e realizações.
Fundada pelo poeta e ensaísta Affonso Ávila e por ele dirigida até hoje, a "Revista Barroco" comemora seus 25 anos com o lançamento de uma antologia dos melhores artigos publicados no período, dividida em cinco partes fundamentais, tendo o barroco como eixo: temas teóricos; o barroco na Europa; na América Latina; no Brasil e, finalmente, o barroco mineiro, a qual ocupa a maior parte do volume.
Por seu caráter de antologia, pouco haveria a acrescentar para ressaltar a excelência dos textos selecionados por Affonso Ávila. O volume é um prisma, ilumina inúmeros aspectos da arte e da cultura dos séculos 16, 17 e 18 -da arquitetura à literatura e da filosofia à iconologia, entre outros, e apresenta os temas sob enfoques diferenciados, por vezes, contraditórios. Por exemplo, no texto "Tropicalidade do Barroco", de Ricardo Averini, o "barroco dos países latino-americanos" é apresentado como "a primeira forma de arte conatural e legítima" (...), "da qual nascerá a consciência de nacionalidades autônomas e distintas" nas colônias.
Em outra perspectiva, Jorge Alberto Manrique irá questionar a "licitude" do próprio termo "barroco americano", lembrando, muito apropriadamente, que a terminologia estilística não é inerente às obras de arte. Segundo o autor, "à medida que uma pressão por maiores distinções se fez presente, surgiram termos como barroco, maneirismo e rococó. Certo que, uma vez cunhados, se impõe uma perigosa tendência essencialista, que leva facilmente a supor a existência real nas obras de algo como "o barroco, que não é senão criação mental nossa, recurso de análise e de linguagem a posteriori". Essa diversidade de tendências é o maior mérito da edição primorosa, com índice onomástico e informações biobibliográficas sobre cada autor, além da tradução acurada de todos os textos para o português.
Por seu amplo enfoque, a antologia oferece textos saborosos tanto para o pesquisador que se dedica ao estudo de um tema específico quanto para o leigo que deseja se aprofundar prazerosamente no conhecimento das múltiplas perspectivas apresentadas sobre a arte e a cultura do período. A atualidade dos textos que verticalizam temas se destaca, na medida em que os textos teóricos são mais vulneráveis às preocupações das épocas em que foram produzidos. Contudo, é possível que o maior interesse para o pesquisador que deseja conhecer a historiografia do fenômeno denominado "barroco" resida justamente no comprometimento de cada texto com uma visão de mundo, tendo em conta que, desde os questionamentos da École des Annales, já se consolidou a máxima de que toda história é história do presente.
Seria impossível conter em uma simples resenha o que a revista "Barroco" representou e representa para a história da arte e da cultura brasileiras, ao possibilitar a divulgação e a reunião das pesquisas que se produziram no país no último quarto de século. Seu valor é inestimável, tanto no que se refere ao estímulo para que os estudiosos se detivessem sobre aspectos pouco ou nada estudados quanto no sentido de apresentar, sob novas perspectivas, temas aparentemente esgotados. Além disso, a publicação nos colocou em comunicação com a maior parte dos trabalhos que se fizeram na área em outros países.
A criação e a manutenção de uma revista não é tarefa simples, pois, além dos recursos materiais, é necessária uma imensa tenacidade, abnegação e, sobretudo, humildade intelectual, já que o editor trabalha com dedicação, em geral, para divulgar as produções de outros pesquisadores. Affonso Ávila soube reunir essas qualidades à paixão pelo tema e seus desdobramentos, e a crítica não pode deixar de ressaltar a ausência dos fundamentais textos do editor, elegantemente excluídos de sua própria antologia. Só nos resta desejar que a revista se constitua cada vez mais em espaço múltiplo e aberto à divulgação crítica e analítica dos trabalhos que se desenvolvem na área, em âmbito nacional e internacional.


Guiomar de Grammont é escritora e professora de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto.



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