São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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+ cinema

O diretor explica "Kedma", que está competindo em Cannes, e afirma querer desmontar a "novela" em que a mídia transformou o conflito árabe-israelense

Um olhar subversivo sobre o Oriente Médio

Sheila Schvarzman
especial para a Folha

O cineasta Amos Gitai, como outros israelenses, não se rendeu ao clima guerreiro que contamina políticos e populações. "Kedma" [em direção às origens, em hebraico], que está competição no Festival de Cannes e trata da Guerra de Independência de Israel em 1948 é, infelizmente, premonitório. Estão ali esboçados os conflitos a que hoje se assiste. Em "Kedma", Gitai reúne sobreviventes do Holocausto que chegam a Israel e são enviados para o campo de batalha onde muitos deles morrem sem que se saiba nem mesmo o seu nome, palestinos que partem para o exílio, soldados ingleses que têm a pretensão de tudo controlar e combatentes judeus. Interessado em descobrir como o antigo povo errante se converteu num povo de soldados que perdeu a capacidade de controlar o uso da força, Gitai vai ao fundo das questões que dividem israelenses e palestinos, revolvendo a própria história sem complacência.

Sua obra tem se caracterizado pelo olhar crítico sobre Israel. Em "Kedma", se a situação em foco é a Guerra de Independência de 1948, sua questão profunda é analisar como os sobreviventes do Holocausto vão se adaptar a essa nova terra, confrontando também outro desterro, o dos palestinos provocado por Israel.
Eu queria falar desses sobreviventes que chegam à Palestina depois da Segunda Guerra Mundial. Eles começaram a viver numa nova terra ainda marcados pelo horror de sua antiga experiência e se defrontam lá também com um novo conflito. Como se deu a transição entre os dois êxodos? O que imaginavam antes de chegar? A paisagem que encontram pertence ao imaginário de toda a humanidade. Ela não é espetacular, ao contrário, é suave, feita de traços sutis como num quadro de Courbet com suas cores doces, o sol quente da tarde. Em "Kedma", os homens observam a paisagem, mas pode-se imaginar o contrário: a paisagem, testemunha calada de séculos de história, observa a passagem dos homens, suas guerras, sua loucura, as incontáveis perdas. Alguns meses depois de começar a escrever sobre essa história, a realidade do Oriente Médio alcançou o projeto. O conflito que nos dilacera hoje começa em 1948.
Como surgiu a idéia de filmar "Kedma"?
Quando eu tinha 5 ou 6 anos, havia em casa um pequeno entalhe feito com muita sensibilidade. Minha mãe me contou que havia sido feito por um homem que chegara de barco da Europa em 1948, partiu para o combate na Guerra de Independência e nunca mais voltou. Isso me marcou muito. Como alguém com tanto talento deixa apenas uma pequena marca e desaparece? Depois havia a história do pai de minha mulher, o único de sua família que conseguiu fugir da Polônia com a chegada dos nazistas. Ele se engajou no Exército Vermelho, foi enviado à fronteira russo-japonesa e, no fim da guerra, atravessou toda a União Soviética em sentido contrário e pegou um barco para a Palestina. Assim que desembarcou, foi enviado de novo ao campo de batalha para abrir a estrada entre Tel Aviv e Jerusalém -que em 1948 estava sitiada pelos árabes- e acabou ferido. É esse o tema de "Kedma", um filme sobre os "deslocados" de 1948: os sobreviventes da Europa deslocados em Israel, e os palestinos deslocados pelos israelenses.
Ao compor esse quadro da fundação de um Estado que surge a partir de vários êxodos, você utilizou atores de origens distintas, compondo um exemplo possível de vida em comum de povos que hoje têm preferido o combate ao diálogo.
O cinema ajudou muito nesse período terrível e triste. No set de filmagem havia judeus, árabes, gente de países diferentes que estabeleceram relações de amizade verdadeira, de diálogo e de criação comum. Isso foi como um milagre em meio ao caos da matança mútua e do sentimento geral de que não há saída possível, de que a única solução é a força. O cinema nos salvou um pouco, ele nos deu a opção de dirigir a energia de um grupo de pessoas dilaceradas rumo a um projeto criativo. No fim das filmagens estavam todos muito tristes em voltar para casa e mergulhar novamente diante da tela da televisão.
Qual é a ficção que palestinos e israelenses têm vivido e que a mídia tem reforçado?
De ambos os lados, hoje se acredita que a força vai levar a uma solução definitiva. Na TV isso está compondo uma espécie de novela que se acompanha cotidianamente: um dia, depois de um atentado suicida, os palestinos são terríveis, depois são os israelenses. No outro dia os israelenses são bons, no dia seguinte são maus. Os mortos são uma espécie de moeda de troca. Essa mecânica binária, difundida pela TV, incita os diferentes poderes a buscar efeitos dramáticos. Se eu faço filmes é para mostrar uma outra visão sobre o que é mostrado pela mídia. O cinema tem que ser subversivo diante dessa loucura. Ele tem que recusar essa divisão.
Passados mais de 50 anos da existência de Israel, perderam-se os antigos valores éticos e a capacidade crítica?
A grande dificuldade hoje é dominar a força. Todo povo que detém sua própria história, seu destino, não pode se deixar levar pela força. Nos anos da diáspora, essas questões não eram centrais para os judeus. Hoje é preciso aceitar que fazem coisas morais e imorais. Em meu filme, procurei em 1948 as raízes do projeto que fez dos israelenses guerreiros. Na origem da nova sociedade concebida pelos sionistas, os judeus não deveriam ser apenas comerciantes ou intelectuais, como na diáspora, mas também agricultores e soldados. A crise de identidade de Israel vem daí. O projeto se realizou em sua lógica extrema. Eles começaram na terra e se tornaram soldados. E agora, o que esperar?
O que você espera?
São necessárias várias coisas ao mesmo tempo. Aceitar que o conflito é legítimo, que as opiniões podem variar e que não é necessário passar pela matança para entrar em acordo. Há várias formas de diálogo, mesmo na discordância. Não existe fórmula perfeita em política. Quem busca a perfeição em política termina como Pol Pot no Camboja, matando todos que se opunham ao seu modelo. Na arte, ao contrário, é possível buscar a perfeição, ser radical. A solução política passa pela aceitação de nuanças, de soluções imperfeitas, mas que são parte de um processo dinâmico que caminha em direção a uma melhora das condições. No cinema, ao contrário, é necessário fazer coisas radicais, fortes, para que as questões sejam vistas em sua dinâmica dialética. Os israelenses devem parar de achar que podem ocupar territórios palestinos, e os palestinos devem admitir que há um direito de coexistência, um ao lado do outro, sem o uso da força, sem intimidação.


Sheila Schvarzman é historiadora e professora visitante do departamento de multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.


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