São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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ADESÃO AO KARDECISMO REVELA REJEIÇÃO AOS EVANGÉLICOS

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Definitivamente. Estamos diante de um grupo de brasileiros muito especial, também do ponto de vista de sua composição religiosa. Salta da pesquisa um perfil religioso bem peculiar. Próprio. Exclusivo. Completamente distinto do perfil religioso da população brasileira divulgado pelo Censo 2000 do IBGE. E surpreendentemente distinto do perfil religioso da população paulistana adulta revelado pelo Datafolha meses atrás.
Comecemos comparando a ordem de grandeza das três principais filiações religiosas que perpassam os três perfis. Na população brasileira total, a ordem de tamanho dos grupos religiosos é a seguinte: em primeiro lugar, os católicos, que embora em declínio numérico, ainda são 73,8% dos brasileiros; em segundo lugar os evangélicos ou protestantes, 15,5%, dos quais 10,5% são pentecostais; em terceiro lugar os espíritas kardecistas, com apenas 1,4% de seguidores declarados. Forma-se pois de católicos, protestantes e espíritas, nessa ordem, nosso pódio religioso, digamos.


O grande achado está na elevada proporção de espíritas na população GLBT


São essas as três maiores confissões religiosas do Brasil atual e, como se vê, em patamares numéricos bem distanciados entre si. Um outro grupo que ganha destaque com o Censo 2000 é o dos sem religião. Com 7,3% do total de brasileiros, não fosse o fato de serem por autodefinição "sem religião", bem que poderiam levar o terceiro posto no pódio dos religiosos.
No perfil religioso dos paulistanos adultos, a formação do pódio permanece a mesma, na mesma ordem, só se alterando o tamanho de cada religião: católicos (59%), evangélicos (23%), kardecistas (6%). Também em São Paulo, portanto, diminuem os católicos por causa do acelerado crescimento pentecostal.
Já no perfil religioso dos participantes da parada, muda a configuração do pódio. Seguem na frente os mesmos três competidores, só que a ordem de colocação resulta alterada: logo depois dos católicos (36%) agora vêm os kardecistas (19%) e só depois, bem depois, os evangélicos (7%). O grande achado empírico da pesquisa está aí, na elevada proporção de espíritas no seio da população GLBT -19%-, proporção fortemente desviante da performance do kardecismo no total da população brasileira e três vezes maior que sua porcentagem na população paulistana adulta. Sem contar que o kardecismo ocupa no público GLBT um segundo lugar bem mais próximo ao escore do primeiro colocado, o catolicismo, cujos adeptos declarados não passam de 36%. Maioria, é verdade, mas maioria simples, bem aquém de uma esperada maioria absoluta.
A retração do catolicismo, no entanto, não se deve nesse meio específico -e isto lhe é característico- a uma escalada dos pentecostais, cujo crescimento constante, consistente, conseqüente, representa o dado real mais importante no panorama religioso brasileiro dos últimos 25 anos. Pelo contrário. O pentecostalismo sai mal nessa foto. Mal sai.

Recusa
De resto, a instalação do kardecismo em segundo lugar está na verdade narrando essa outra história, a da baixa aceitação do pentecostalismo no seio da população GLBT. Na parada, só 4% dos participantes se confessam pentecostais. Curioso é sua presença insinuar-se algo menos rala entre os mais jovens: oscila para 5% na faixa etária de 16 a 25 anos. Nada mais. Em meio a um Brasil crescentemente evangélico, a rejeição do pentecostalismo é decisiva, aqui, na definição de um perfil religioso culturalmente diferenciado.
Outro achado de efeito particularizador do perfil é a grande presença nele de ateus e sem religião, cuja soma representa quase um quarto dos participantes da parada (23%), extrapolando em muito as marcas observadas para as populações paulistana (8%) e brasileira (7,3%). Nesse caso vale a pena observar como vai se comportar a faixa etária mais jovem, pois é aí que se concentram as taxas mais altas de ateísmo declarado (8%) e desfiliação religiosa (20%).
Importa por fim considerar a distribuição das filiações e desfiliações religiosas através das diferentes orientações sexuais. Temos aí uma descoberta relevante dessa pesquisa: a enunciação da diferenciação entre gays, lésbicas e bissexuais rebate na autodefinição religiosa. Em alguns casos, tal influxo salta aos olhos do leitor de tabelas mais amador. Por exemplo: os menos religiosos na parada são os bissexuais. Com 8% deles dizendo-se ateus e 19% sem religião, temos 27% dos indivíduos que se declaram bissexuais declarando-se, também, desvinculados de religião. Proporção que entre os gays é de 23% e cai para 20 entre as lésbicas.
Mais um dado importante, congruente com o anterior: além de haver menos religiosos entre os bissexuais, os bissexuais religiosos são menos católicos (26%) do que as lésbicas (39%) e os gays (38%). E são também menos cristãos, visto que entre eles a resposta "outra religião" atinge 15%, mais que o dobro da proporção de gays e lésbicas (7%) que confessam fazer parte dessa categoria incomum de brasileiros, os "não-cristãos". Categoria que a duras penas, nadando contra a corrente, precisa crescer no Brasil, enriquecendo assim nossa acanhada diversidade religiosa.

Antônio Flávio Pierucci é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (34), entre outros livros.


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