São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Policial burlesco



"Elogio da Mentira", de Patrícia Melo, traz vida à literatura de diversão
JOSÉ MARCOS MACEDO
especial para a Folha

Patrícia Melo possui o inegável mérito de haver conferido elegância narrativa à literatura de entretenimento. Seus livros, narrados sempre em primeira pessoa, são econômicos de palavras e reproduzem os cortes cinematográficos, a sintaxe entrecortada e o fluxo de orações coordenadas que vestem como uma luva seus enredos policialescos, sob medida para os leitores premidos pela constante falta de tempo. Nesse sentido, sua obra é um fiel retrato da literatura dos anos 90, a que ela incorpora, como tema recorrente, a gratuidade da violência urbana.
No primeiro livro, "Acqua Toffana", dois contos aparentemente sem vínculo se entrelaçam num simpático exercício narrativo sob pontos de vista antagônicos -o de uma vítima acuada e o de um maníaco atroz, corroído pelo ódio sem justificativa. A mestria está precisamente em aderir à visão perturbada, pouco ventilada, dos protagonistas e lhe imprimir uma cadência engasgada, que mais sugere do que conclui. Método semelhante é reproduzido em seu segundo livro, "O Matador", história de um justiceiro que apaga bandidos pés-de-chinelo por conta própria ou a soldo de ricaços boçais.
Neste livro, o que antes era vantagem -o fato de a linguagem mimetizar o próprio enredo- passa a ser uma inconveniência. A voz do narrador, sempre precisa e cortante, adquire um peso bem maior do que o próprio enredo, de modo que as atrocidades do protagonista são amortecidas por uma dicção niveladora, imune ao impacto do assunto narrado: as articulações importam muito mais que os fatos, isto é, qualquer tema, desde que bufo e burlesco, poderia ser tratado da mesma forma pela autora, com igual sucesso.


A OBRA
Elogio da Mentira - Patrícia Melo. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 187 págs. R$ 18,50.



Isso ocorre, é verdade, porque Máiquel, o assassino que de bandido vira herói da polícia e das gentes de bem, percorre um caminho bastante estereotipado de ascensão e queda, previsível em todos os sentidos.
Talvez porque queira apenas entreter, a autora não aprofunda o potencial conflito social da trama, que permanece casual. São circunstâncias -ou meros acasos- que acompanham a escalada criminosa do herói; do enredo, nada se conclui, a não ser uma sensação de fatalidade opressiva, que bem se espelha na linguagem, com sua preferência por períodos coordenados, independentes entre si. É o que já se chamou de "realismo da sensação de irrealidade generalizada": a morte, a banalização da violência, é mero acaso, de que os leitores, nas horas de lazer, confortavelmente instalados em seus lares, estão a salvo, visto que tudo é puro arbítrio, simples e exótico arbítrio, sem causa definida. E isso só se agrava no último livro.
"Elogio da Mentira", o pior dos três, se vale da trama policial para dar impulso à sátira do mundo editorial. Em dois pontos essa última obra é inferior às anteriores: no domínio precário da montagem narrativa, pois as ações se sucedem sem maior propósito, numa trama desalinhavada e de pouco interesse; e no relato do próprio narrador, que, em suas incursões pela literatura de auto-ajuda, fica a meio caminho da exploração, do mau-caratismo descarado e da crença nos próprios ensinamentos pífios, o que não condiz com o recuo necessário para debochar impiedosamente de tal realidade do mundo das letras.
Deboche, aliás, de que não estão livres as obras da autora: sabe-se que, na França, "O Matador" preservou o título original, em português, para garantir o impacto ("Os franceses acham que pode soar excêntrico e pegar bem"). José Guber, protagonista da última obra, faz pastiche de clássicos da literatura e os vende para seu editor que, para dar o tom cômico, os rejeita prontamente, alegando que eles não renderiam boa história. A paródia, porém, mantém-se no nível mais direto, da zombaria escrachada, e guarda uma relação muito tênue com o enredo; quanto aos livros de auto-ajuda, o simples fato de existirem já depõe contra eles -e qualquer tipo de sátira só fará ver o óbvio.
Apesar de tudo, é impossível negar que os livros da autora acrescentaram certa volúpia ao universo de ordinário aborrecedor, tedioso, da literatura de diversão. Seu grande talento em captar e reelaborar numa chave literária os processo de edição da TV e do cinema alargaram o horizonte dos livros de fácil acesso, dotando-lhes de maior densidade. Com isso, seus temas, que chocam na medida exata para não afugentar os leitores, ganham inteira legitimidade. O que todos esperam é que esse talento não se perca na reprodução de formas consagradas pelo sucesso, repetindo uma receita na qual o "tempero ideal para apimentar a sopa de letras" seja apenas "um pouco de crime e outro de sexo", como aconselha a autora.


José Marcos Macedo é mestre em teoria literária pela USP.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.