São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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Leituras de guerra

Diretor da Biblioteca Nacional do Iraque, em Bagdá, Saad Eskander narra a difícil tarefa de reconstruir a instituição em meio a atentados

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Desde os estragos causados durante a invasão do Iraque, em 2003, a Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque (Bani), em Bagdá, vem se reconstruindo.
Reaberta para visitação em julho de 2004, ela vinha ganhando cada vez mais visitantes, até que, no dia 8 deste mês, houve um retrocesso inédito: a própria Guarda Nacional Iraquiana (GNI) invadiu e depredou as instalações.
Saad Eskander, diretor da instituição desde a queda do governo de Saddam Hussein, ainda em 2003, concedeu entrevista à Folha por um telefone que falhava tanto quanto um celular no subsolo. "Só conheço conexão pior por aqui." Sobre os responsáveis pela segurança no Iraque, declarou: "Em vez de protegerem os livros e nos apoiarem, eles depredam a instituição que preserva o legado histórico do país".
Para Eskander, falta à administração iraquiana uma postura conciliatória, semelhante à do brasileiro Jorvan Vieira, técnico da seleção iraquiana que venceu a Copa da Ásia de futebol em 29/7: "Vieira é a figura mais popular do país. Os iraquianos criticam os políticos e pedem que sigam o exemplo da seleção".
Um diário dos acontecimentos da biblioteca desde dezembro passado -incluindo notas de morte violenta de funcionários e parentes- foi publicado pela British Library (em www.bl.uk/iraqdiary.html), uma das instituições que financiam sua reestruturação. Eskander terminou a edição de julho prometendo não continuar o diário, em respeito à equipe, pois as histórias "exploram as tragédias" da biblioteca.  

FOLHA - Como foi a invasão da Biblioteca e Arquivo Nacional do Iraque pela Guarda Nacional Iraquiana? Como está a situação?
SAAD ESKANDER
- Eles ocuparam a bilblioteca na manhã da quarta-feira (8/8). Destruíram os portões, as portas e quebraram janelas. Deixaram o prédio na sexta (10/8).

FOLHA - O sr. estava lá?
ESKANDER
- Não, porque havia um toque de recolher em Bagdá. Não se podia circular pela cidade.

FOLHA - Como eles destruíram os portões?
ESKANDER
- Usaram armas. Quebraram portas e janelas e subiram ao topo do prédio. Eles saíram, mas deixaram muita coisa quebrada.

FOLHA - Portanto, eles concordaram em deixar a biblioteca?
ESKANDER
- Não, não foi um acordo. Eles apenas saíram e podem voltar amanhã ou qualquer dia. Talvez tenham nos ouvido, mas fazem o que querem, não se importam com o que dizemos ou com a legalidade de suas ações. Eles não escutam civis, gente como nós.

FOLHA - Já aconteceu antes?
ESKANDER
- Nós a fechamos por duas semanas no ano passado devido à falta de segurança.

FOLHA - Foi a primeira vez desde 2004 que soldados entraram destruindo instalações?
ESKANDER
- Sim. Durante a [guerra que levou à] queda do regime de Saddam, o edifício foi destruído. Foi incendiado duas vezes. Reconstruímos o prédio, que foi reaberto a visitação em julho de 2004.

FOLHA - Como foi a reconstrução da biblioteca?
ESKANDER
- Precisou de muito trabalho. Começamos a organizar a infra-estrutura da Bani, contatamos organizações internacionais pedindo apoio a nossos projetos. Logo, metade do orçamento vinha de italianos e japoneses. Conseguimos reestruturar todos os departamentos. As organizações devem trazer novas tecnologias, novos esquipamentos e novos sistemas. Eles estão patrocinando a modernização da instituição.

FOLHA - Quão danificada ficou a biblioteca?
ESKANDER
- Nossa instituição foi a mais danificada do Iraque. Perdemos 60% dos arquivos, incluindo documentos, gravações, fotografias e mapas. Perdemos cerca de 25% dos livros, especialmente manuscritos raros. Perdemos todo o equipamento e os móveis, e a estrutura do prédio sofreu danos consideráveis.

FOLHA - Desde 2004, as pessoas visitam a biblioteca normalmente?
ESKANDER
- Sim. A maioria dos freqüentadores é de universitários e pesquisadores.

FOLHA - Segundo seus números, houve 447 visitantes na biblioteca em junho e 503 em julho...
ESKANDER
- Por causa da situação de insegurança -a biblioteca é localizada numa área muito perigosa, cercada de patrulhas armadas. Por isso a visitação não é grande.

FOLHA - Quantas pessoas utilizavam a biblioteca antes da guerra?
ESKANDER
- A média diária era de 250 visitantes.

FOLHA - Ela ainda conserva um acervo importante?
ESKANDER
- Temos centenas de livros valiosos, dezenas de milhares de documentos e gravações importantes sobre a sociedade e a política do Iraque. Em vez de os protegerem e nos apoiarem, eles [os soldados] depredam a instituição que preserva o legado histórico do país, que é um legado histórico do mundo.

FOLHA - Que tipo de livro os visitantes procuram hoje em dia?
ESKANDER
- Principalmente os de ciências humanas e sociais, como sociologia, filosofia, política, relações internacionais e direito.

FOLHA - Voltou a trabalhar normalmente depois dessa invasão?
ESKANDER
- É claro. Abrimos normalmente. Não fecharemos a biblioteca.

FOLHA - A biblioteca fica em frente a uma base de segurança?
ESKANDER
- Sim. Os norte-americanos e o Exército iraquiano têm uma base a cerca de 20 metros de nosso edifício, com tanques e centenas de soldados armados.

FOLHA - Mesmo assim quiseram usar o prédio da Bani?
ESKANDER
- Não acho que ela seja importante para eles. Nosso prédio nem é o mais alto, há muitos outros mais altos na área.

FOLHA - Procurou as autoridades iraquianas e americanas?
ESKANDER
- Sim, mas não responderam.

FOLHA - Como consegue manter a Bani em funcionamento? O que faz os funcionários permanecerem trabalhando em condições tão difíceis?
ESKANDER
- Acho que a equipe ficou inspirada pelo trabalho duro de reconstrução do edifício e quer compartilhar o legado cultural com a comunidade.

FOLHA - Um brasileiro foi o técnico da seleção iraquiana de futebol...
ESKANDER
- Sim, o Vieira [Jorvan Vieira, que teve menos de três meses para treinar os campeões da Copa da Ásia].

FOLHA - Após ganhar o campeonato, ele declarou que o pior problema que superou foi a falta de cooperação entre jogadores de grupos étnicos diferentes. Considera o triunfo iraquiano no esporte uma esperança para o país ou isso não passa de distração dos problemas reais?
ESKANDER
- É uma esperança. Todos os iraquianos, independentemente de religião ou origem, comemoraram a vitória juntos. Todos dançaram e cantaram nas ruas. Não é uma distração. Os iraquianos, como os brasileiros, gostam de futebol -e adoram o bom futebol.
O que une os iraquianos é o futebol. A seleção iraquiana tem jogadores curdos, sunitas, xiitas, mas o técnico brasileiro conseguiu fazer o time trabalhar como uma unidade.
É por isso que teve sucesso, espero que ele fique na seleção [seu contrato restringiu-se à Copa da Ásia] porque todos os iraquianos -crianças, homens e mulheres- gostam de Vieira.
Ele é a figura mais popular do Iraque, mais do que o presidente [Jalal Talabani] e o primeiro-ministro [Nuri al-Maliki].

FOLHA - Então, a união entre jogadores de grupos étnico-religiosos diferentes serviu de exemplo?
ESKANDER
- Sim, porque todos os iraquianos falam sobre a seleção nacional. E dizem aos políticos: "Sigam o exemplo da seleção. Esses jovens trabalharam pelo Iraque e conseguiram trazer a Copa da Ásia". Os iraquianos criticam os políticos e pedem que sigam o exemplo da seleção.

FOLHA - As pessoas usam o futebol como exemplo para os políticos quando discutem nas ruas?
ESKANDER
- Somos livres para criticar o governo. Fazemos isso na TV, nas mesquitas, nas ruas... Há liberdade, não é como na época de Saddam. Por exemplo: estive na TV e critiquei o ministro da Defesa, a GNI, jornais publicaram minhas afirmações contra o ministro. Há liberdade de expressão.

FOLHA - Que livro de sua biblioteca o sr. recomendaria aos líderes para que dêem um fim a esta guerra?
ESKANDER
- Não me ocorre. Não sei. Nossa literatura sobre coexistência pacífica não é grande, porque o Iraque vive em violência há décadas. Portanto, não temos boa literatura sobre resistência pacífica. Em árabe, pelo menos, não me lembro.
Talvez Gandhi, o líder indiano. Esse é um bom exemplo a ser seguido pelo Iraque e por outras nações. Ele foi um gênio, expulsou os britânicos da Índia, estabeleceu uma república, um sistema democrático, um sistema federalista que uniu diferentes grupos étnicos e lingüísticos em um só país. Espero que nossos políticos leiam sobre paz e compromisso.


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