São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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O ESTADO NOVO DA CULTURA

PROJETO DE REGULAMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL PROPOSTO PELO GOVERNO FEDERAL FAZ DO BRASIL UM LABORATÓRIO DO CAPITALISMO DE INFORMAÇÃO E PÕE EM CRISE O CONCEITO DE IDENTIDADE NACIONAL

por Ivana Bentes

Eleições de 2002. No estúdio da Rede Globo em São Paulo, o apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, pela primeira vez na história do telejornal se levanta da bancada para receber o recém-eleito presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Antes de subir a rampa do Planalto, numa das imagens mais impactantes de nosso imaginário midiático, Lula sobe os degraus que o colocam num lugar fetiche, na tela/mente da nação, em rede nacional de televisão, ao lado do apresentador do Jornal Nacional. Ao longo da edição, ele acompanha sua vitória nas ruas, vê sua vida em retrospecto num compacto, recebe cumprimentos, ouve velhos amigos e assiste às notícias do mundo desfilarem diante de si. Num acontecimento simbólico, toma posse da nação e da mídia, do Estado-mídia, essa corporação híbrida que marca o que chamamos de capitalismo informacional ou midiático. Lula começava seu governo com força total. No centro e com as benções da maior corporação de mídia da América Latina. Corta! A cultura digital pós-industrial em todo o planeta vem pondo em cheque o capitalismo nacional e monopolista, deslocando de forma radical a idéia de uma "identidade nacional", fossilizada e arraigada, em nome de uma "diversidade" cultural bem mais complexa, perturbadora e nômade que todo o velho ideário nacionalista. Mais do que isso, a dupla face dos processos de globalização não aponta apenas para um diagnóstico apocalíptico, "a globalização tendendo a uniformizar idéias e modos de vida", mas também para uma outra globalização, das redes de cooperação e produção heterogêneas e diversas, criando novas linguagens e comportamentos. Estamos assistindo a uma profunda transformação das tecnologias da comunicação, que deslocam, pulverizam ou potencializam a capacidade de produção de conteúdos entre atores muito distintos. De megacorporações transnacionais até a multidão de produtores/usuários na sua singularidade. Redes de cooperativas, coletivos de toda espécie, produtores independentes têm a real oportunidade de participar na produção da comunicação em nível local, regional e global. Discutindo pela primeira vez, de forma pública e transparente, questões de ponta no campo da cultura, como a lei de software livre, a inclusão digital e a produção audiovisual, o Brasil aparece como um laboratório experimental do capitalismo informacional, dando importância, repercussão e visibilidade máxima a uma área, a cultura, relegada, em outros governos, à administração burocrática. Com uma legislação para as comunicações obsoleta diante de tantas mudanças, o governo decidiu colocar em pauta um dos mais importantes projetos do Ministério da Cultura, o Projeto de constituição da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), projeto discutido exaustivamente, desde 2000, pelo Congresso Brasileiro do Cinema, que engloba as entidades mais variadas e representativas do cinema brasileiro, num diálogo constante com empresas de comunicação e com as produtoras independentes de cinema e TV. A matéria é tão quente que extrapolou a fala dos especialistas, chegando finalmente à sociedade civil.

No olho do furacão
O caráter público da discussão, raro no Brasil, com tal amplitude e mobilização, colocou o Ministério da Cultura (Minc) e a Secretaria do Audiovisual no olho de um furacão. A nova dimensão midiática do capitalismo que transforma qualquer um em produtor de conteúdo, com blogs, fotologs, TVs comunitárias no cabo, rádios e exibições de filmes e produtos audiovisuais na internet, no computador, em celulares. Potência e hiperatividade da multidão, ainda mal assimilada pelas grandes empresas. E onde o Minc aparece como mediador. Pois como estimular, promover e não sufocar esse fluxo, diante de um mercado tradicional que não entende as conseqüência vitais dessas mudanças? Como dialogar por exemplo com uma esquerda que estacionou no capitalismo nacional industrial e que não consegue vislumbrar uma democracia global, um cenário em que a ação estatal não pode ser desvinculada de uma política internacional? Pois, se as estruturas de poder ultrapassaram as fronteiras nacionais, como insistir ainda em lutas apenas "nacionais", quando a globalização suscita contradiscursos e lutas também globais, nômades e móveis, como diz Antonio Negri? As transformações no campo da comunicação fizeram da cultura lugar estratégico de pensamento e lutas. Além de questões muito concretamente mercadológicas. Mas uma dessas questões fez o alarme soar ainda mais forte. Depois da revolução da internet, [ ] outra febre que já se espalhou pelo mundo vai chegar ao Brasil: a possibilidade das operadoras de telefonia transmitirem conteúdo: vídeos, jogos de futebol, clipes, textos, games, concorrendo com a televisão e com outros produtores de conteúdo nacionais. A ameaça foi o bastante para detonar uma campanha nacional das empresas de televisão pedindo reserva de mercado para o produtor de conteúdo brasileiro. Um trecho do documento "Conteúdo Brasil", entregue por atores e cineastas, parceiros da Globo, ao Ministério da Cultura, dá o tom do alarme: "Em 2005, contratos do setor de telecomunicações serão renovados. Agora é a hora de mobilizarmos a nação para que voltemos ao rumo que os constituintes vislumbraram para o país. Podemos deixar claro, dentro dos marcos da lei, que quem controla a infra-estrutura de telefonia está impedido de produzir conteúdo". O tom impositivo abafa uma série de interesses não simplesmente culturais ou de "soberania" nacional, mas francamente comerciais e mercadológicos. Duas dimensões que sempre andaram juntas, mas que se tornam indiscerníveis e explícitas no momento em que o próprio capitalismo se torna imaterial, comercializando produção simbólica, mais do que bens materiais. No documento da Globo aponta-se uma necessária separação, um interdito, entre meios de transmissão (base tecnológica e infra-estrutura, redes físicas) e a produção de conteúdo. É um dos muitos pontos importantes do projeto da Ancinav, mas que se tornou ponto de honra nas negociações com as TVs -não vindo a público na cortina de fumaça em torno do suposto dirigismo ou intervencionismo do governo em questões de liberdade de expressão e criação, suspeita que se mostrou infundada. O setor explicitando seu horror a qualquer tipo de controle social. Mas o ponto de honra das televisões é outro. Como as tecnologias de comunicação não param de mudar (cabo, internet, telefonia celular, TV digital ) e o Brasil não tem como concorrer com as empresas globais, pede-se uma reserva de mercado para a produção de conteúdo brasileiro. Uma reserva de mercado a qualquer custo, mas para quem? Qual a contrapartida?

Riscos e possibilidades
Na síntese do economista Luís Nassif, a questão surge de modo cristalino: "A convergência de mídias acabará, finalmente, com a herança getulista da reserva de mercado que caracteriza o atual sistema de concessões para rádio e televisão. Cria o risco real da invasão dos gigantes mundiais, mas abre a oportunidade para o florescimento de uma indústria cultural independente no país. Como nos protegermos dos riscos, sem abrir mão das novas possibilidades?".
Essa precipitação de cenários coloca o Brasil como laboratório experimental do capitalismo imaterial ou capitalismo cognitivo, em que a mercadoria é a informação e o conhecimento, e onde o consumidor é também produtor.
Como falar simplesmente de homogeneização e dominação, diante dos movimentos globais de afirmação da cultura digital, pela democratização da informação, pelo acesso gratuito às redes, pelo software livre, pela inclusão digital? Diante de novas formas de reação e resistência à voracidade do capital nacional ou transnacional?
A questão é que a cultura brasileira sobreviveu e se constituiu, nos últimos 500 anos, a despeito de toda sorte de predação, monopólios, invasão e graças à hibridação e fusão. Porque seríamos dizimados agora pelo processo de globalização eletrônica?
Uma análise em conjunto das campanhas "Identidade Brasil", na TV Globo, do documento "Conteúdo Brasil", coordenado pela Globo junto com a PUC de São Paulo e entregue ao Minc, até as atuais criticas à Ancinav, em editoriais, colunas, telejornalismo, deixa claro que tivemos uma empresa zelosa, que se "antecipou" ao debate público e "propôs" o que poderia estar em sintonia com o ideário do governo e de alguns produtores de audiovisual. Sendo, entretanto, mais realista que o rei, tem-se a impressão de que a Globo encampou uma proposta nacional-popular, já há algum tempo presente ao seu discurso e produtos, que lembra uma reedição deslocada da cultura da broa de milho ou do projeto do Centro Popular de Cultura dos anos 60, mas agora na sua face espetacular e midiática, com difusão em massa e exportação de seu ideário. Na novela "Celebridade", de Gilberto Braga vê-se uma ode à singela e autêntica vida na zona norte e subúrbios cariocas, com um Andaraí idílico e modelar, pintado com os valores populares mais profundos: samba, pagode, forró, feijoada, de um lado, e, de outro, os novos-ricos da indústria cultural e os novos aliados estratégicos do audiovisual. Uma profusão de cineastas parceiros da Globofilmes foram homenageados ao longo da novela. A primeira que colocou um diretor de cinema fazendo o papel de galã. Um Marcos Palmeira romântico e preocupado com as coisas do Brasil. Com um arquinho na cabeça e alguns roteiros institucionais sobre as belezas da Amazônia e do Maranhão nas mãos, pela primeira vez a Globo mimava o cinema brasileiro, dando-lhe todas as honras na ficção. Pela primeira vez, o drama da atriz principal, Malu Mader, era um drama empresarial-cultural, de uma trabalhadora da indústria imaterial, uma produtora de bens simbólicos.

Capitalismo flexível
Também é interessante analisar as reportagens especiais do Jornal Nacional desde o final de 2003 que elegeram o Brasil profundo e a indústria da cultura como tema: "festa junina, sertão feliz, Brasil bonito", por um lado, e a campanha "Identidade Brasil", série de reportagens sob o mote "é a cultura que faz a cara do Brasil" com os temas: "Brasil com S", "Produção Cultural, Identidade Cultural, Um Grande Negócio", "O Que É Cultura?" e "Cultura na TV". Temas de fato relevantes e reveladores que poderiam estar em qualquer programa de cultura governamental, não viessem acompanhados de um profundo viés institucional que apresenta uma única empresa de televisão como a repositária e espelho dessa identidade e alma nacional, agente de integração regional e criadora da imagem nacional de exportação. Não está em questão aqui a competência empresarial nem a capacidade de produzir conteúdos e programas de qualidade das Organizações Globo. O que está em questão aqui é um modelo de produção, ligado ao capitalismo monopolista industrial, que está se esgotando diante do novo modelo do capitalismo rizomático, de fluxos, nômade e flexível, capaz de se reinventar continuamente e se aliar a novos atores, inclusive ao produtor de conteúdo independente. O aniversário de Ana Maria Braga e de Tony Ramos ou de Regina Duarte e Renato Aragão, sua vida privada, são apresentados como marcos da cultura nacional. E o são, dirá alguém, mesmo se reduzem o "conteúdo brasileiro" e a "identidade nacional" (expressão já por si só problemática, pedindo revisão e plural urgente) a um só agente produtor e a um "star system" global. Tudo é Brasil! Diríamos, homenageando um criador de conteúdo brasileiro que nunca foi exibido na Globo, o cineasta Rogério Sganzerla. Sim, tudo é Brasil, mas de fato uma única empresa de televisão brasileira tornou-se "a cara" do Brasil, ao realizar uma globalização interna, monocultura, modelo empresarial e estético que triunfou em diferentes mídias: televisão, rádio, disco, vídeo, internet, cinema. Além de exportar "essa cara" como a cara oficial do Brasil no exterior. Mídia-Estado se confundindo de forma problemática. A explicação para seu domínio do mercado interno, encontramos na fonte, numa das reportagens da série "Identidade Brasil", é no mínimo curiosa: "Mas acontece também uma espécie de exportação interna, dentro do Brasil. Pouca gente pode viajar por todo o Brasil. Então, muitos brasileiros descobrem o Brasil na tela: sotaques, paisagens, festas. A cultura".

Vantagens e perdas
A televisão como turismo cultural dos pobres? Sempre desvinculando produção simbólica de mercado econômico e político, esse discurso passa longe de qualquer explicação histórica, mercadológica, ou fazendo referência à trajetória da empresa que durante décadas teve todas as vantagens corporativas, em todos os governos, desde sua implantação como braço ideológico do regime militar e base material para o projeto bem-sucedido de integração nacional via redes nacionais de televisão, até sua entrada polêmica no mercado do cinema nacional, com a Globo Filmes. Nesse ponto, mais polêmicas, apesar de ter alavancado um "cinema popular brasileiro", o "blockbuster" nacional, capaz de -com sua linguagem decalcada das próprias novelas e séries e capitalizando a popularidade de seus autores- fazer frente à hegemonia do cinema norte-americano, o ganho simbólico vem junto com vantagens não obtidas por praticamente nenhum produtor independente brasileiro. Combinação ainda mais estranha encontramos na estética de de algumas produções da Globo Filmes, como "Olga" ou "Cazuza", fundindo o imaginário rebelde com a estética hollywoodiana da higienização e da glamourização. Como é possível fazer um filme sobre líderes comunistas sem falar a palavra comunismo ou fazer um filme sobre um contestador como Cazuza sem falar a palavra homossexualismo?

Figurante chique
É possível uma síntese feliz entre globalização e "globolização"? No final de "Celebridade", Gilberto Gil, negro, tropicalista, odara, defensor do nomadismo digital e do software livre e de todos os hibridismos, no comando do projeto de maior impacto na cultura brasileira desde o Estado Novo (a Ancinav), não se fez de rogado e, convidado, entrou em cena nos capítulos finais da novela. Ministro da Cultura e figurante chique no Sobradinho nacional-popular, celebrando a tal identidade nacional, entre artistas e cineastas (parceiros da Globofilmes) homenageados. O "happy end" da cultura popular midiática celebrada no subúrbio cenográfico, no Andaraí cepecista? Bem, pelo menos a novela da Ancinav ainda não acabou e seu final ainda está em aberto.
O conteúdo brasileiro será nosso? Mas produzido por quem? Vamos receber mais novela, mais compacto de futebol, mas ensaios sensuais de atrizes, ou também net-arte, videoarte brasileira, jogos inteligentes, na tela do celular com conteúdo nacionalizado? E, como contrapartida, vamos ver o cinema brasileiro que desenvolveu realmente uma linguagem própria, singular, não-fossilizada, no horário nobre, na televisão aberta? Se todo brasileiro tem direito de querer ser presidente do Brasil e um brasileiro pobre quis, furou o bloqueio e chegou lá, talvez não seja preciso esperar mais 500 anos para essa outra revolução acontecer. Dá até novela mexicana.


Ivana Bentes é professora e pesquisadora de cinema e audiovisual, coordenadora-adjunta da pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participa das redes de ativismo Universidade Nômade, Universidade Aberta e Revista Global.


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