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O ESTADO NOVO DA CULTURA
PROJETO DE
REGULAMENTAÇÃO
DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
PROPOSTO PELO
GOVERNO FEDERAL FAZ
DO BRASIL UM LABORATÓRIO
DO CAPITALISMO DE
INFORMAÇÃO E PÕE
EM CRISE O CONCEITO
DE IDENTIDADE NACIONAL
por Ivana Bentes
Eleições de 2002. No estúdio da Rede Globo em São
Paulo, o apresentador do Jornal Nacional, William
Bonner, pela primeira vez na história do telejornal
se levanta da bancada para receber o recém-eleito
presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Antes
de subir a rampa do Planalto, numa das imagens mais impactantes de nosso imaginário midiático, Lula sobe os degraus que o colocam num lugar fetiche, na tela/mente da
nação, em rede nacional de televisão, ao lado do apresentador do Jornal Nacional.
Ao longo da edição, ele acompanha sua vitória nas ruas,
vê sua vida em retrospecto num compacto, recebe cumprimentos, ouve velhos amigos e assiste às notícias do
mundo desfilarem diante de si. Num acontecimento simbólico, toma posse da nação e da mídia, do Estado-mídia,
essa corporação híbrida que marca o que chamamos de
capitalismo informacional ou midiático. Lula começava
seu governo com força total. No centro e com as benções
da maior corporação de mídia da América Latina. Corta!
A cultura digital pós-industrial em todo o planeta vem
pondo em cheque o capitalismo nacional e monopolista,
deslocando de forma radical a idéia de uma "identidade
nacional", fossilizada e arraigada, em nome de uma "diversidade" cultural bem mais complexa, perturbadora e
nômade que todo o velho ideário nacionalista. Mais do
que isso, a dupla face dos processos de globalização não
aponta apenas para um diagnóstico apocalíptico, "a globalização tendendo a uniformizar idéias e modos de vida",
mas também para uma outra globalização, das redes de
cooperação e produção heterogêneas e diversas, criando
novas linguagens e comportamentos.
Estamos assistindo a uma profunda transformação das
tecnologias da comunicação, que deslocam, pulverizam
ou potencializam a capacidade de produção de conteúdos
entre atores muito distintos. De megacorporações transnacionais até a multidão de produtores/usuários na sua
singularidade. Redes de cooperativas, coletivos de toda espécie, produtores independentes têm a real oportunidade
de participar na produção da comunicação em nível local,
regional e global.
Discutindo pela primeira vez, de forma pública e transparente, questões de ponta no campo da cultura, como a
lei de software livre, a inclusão digital e a produção audiovisual, o Brasil aparece como um laboratório experimental
do capitalismo informacional, dando importância, repercussão e visibilidade máxima a uma área, a cultura, relegada, em outros governos, à administração burocrática.
Com uma legislação para as comunicações obsoleta
diante de tantas mudanças, o governo decidiu colocar em
pauta um dos mais importantes projetos do Ministério da
Cultura, o Projeto de constituição da Ancinav (Agência
Nacional do Cinema e do Audiovisual), projeto discutido
exaustivamente, desde 2000, pelo Congresso Brasileiro do
Cinema, que engloba as entidades mais variadas e representativas do cinema brasileiro, num diálogo constante
com empresas de comunicação e com as produtoras independentes de cinema e TV. A matéria é tão quente que extrapolou a fala dos especialistas, chegando finalmente à
sociedade civil.
No olho do furacão
O caráter público da discussão,
raro no Brasil, com tal amplitude e mobilização, colocou o
Ministério da Cultura (Minc) e a Secretaria do Audiovisual no olho de um furacão. A nova dimensão midiática
do capitalismo que transforma qualquer um em produtor
de conteúdo, com blogs, fotologs, TVs comunitárias no
cabo, rádios e exibições de filmes e produtos audiovisuais
na internet, no computador, em celulares. Potência e hiperatividade da multidão, ainda mal assimilada pelas grandes empresas. E onde o Minc aparece como mediador.
Pois como estimular, promover e não sufocar esse fluxo,
diante de um mercado tradicional que não entende as
conseqüência vitais dessas mudanças?
Como dialogar por exemplo com uma esquerda que estacionou no capitalismo nacional industrial e que não
consegue vislumbrar uma democracia global, um cenário
em que a ação estatal não pode ser desvinculada de uma
política internacional? Pois, se as estruturas de poder ultrapassaram as fronteiras nacionais, como insistir ainda
em lutas apenas "nacionais", quando a globalização suscita contradiscursos e lutas também globais, nômades e móveis, como diz Antonio Negri?
As transformações no campo da comunicação fizeram
da cultura lugar estratégico de pensamento e lutas. Além
de questões muito concretamente mercadológicas. Mas
uma dessas questões fez o alarme soar ainda mais forte.
Depois da revolução da internet, [ ] outra febre que já se espalhou pelo mundo vai chegar ao Brasil: a possibilidade
das operadoras de telefonia transmitirem conteúdo: vídeos, jogos de futebol, clipes, textos, games, concorrendo
com a televisão e com outros produtores de conteúdo nacionais. A ameaça foi o bastante para detonar uma campanha nacional das empresas de televisão pedindo reserva
de mercado para o produtor de conteúdo brasileiro.
Um trecho do documento "Conteúdo Brasil", entregue
por atores e cineastas, parceiros da Globo, ao Ministério
da Cultura, dá o tom do alarme: "Em 2005, contratos do
setor de telecomunicações serão renovados. Agora é a hora de mobilizarmos a nação para que voltemos ao rumo
que os constituintes vislumbraram para o país. Podemos
deixar claro, dentro dos marcos da lei, que quem controla
a infra-estrutura de telefonia está impedido de produzir
conteúdo".
O tom impositivo abafa uma série de interesses não simplesmente culturais ou de "soberania" nacional, mas francamente comerciais e mercadológicos. Duas dimensões
que sempre andaram juntas, mas que se tornam indiscerníveis e explícitas no momento em que o próprio capitalismo se torna imaterial, comercializando produção simbólica, mais do que bens materiais.
No documento da Globo aponta-se uma necessária separação, um interdito, entre meios de transmissão (base
tecnológica e infra-estrutura, redes físicas) e a produção
de conteúdo. É um dos muitos pontos importantes do
projeto da Ancinav, mas que se tornou ponto de honra nas
negociações com as TVs -não vindo a público na cortina
de fumaça em torno do suposto dirigismo ou intervencionismo do governo em questões de liberdade de expressão
e criação, suspeita que se mostrou infundada. O setor explicitando seu horror a qualquer tipo de controle social.
Mas o ponto de honra das televisões é outro. Como as
tecnologias de comunicação não param de mudar (cabo,
internet, telefonia celular, TV digital ) e o Brasil não tem
como concorrer com as empresas globais, pede-se uma reserva de mercado para a produção de conteúdo brasileiro.
Uma reserva de mercado a qualquer custo, mas para
quem? Qual a contrapartida?
Riscos e possibilidades
Na síntese do economista
Luís Nassif, a questão surge de modo cristalino: "A convergência de mídias acabará, finalmente, com a herança
getulista da reserva de mercado que caracteriza o atual sistema de concessões para rádio e televisão. Cria o risco real
da invasão dos gigantes mundiais, mas abre a oportunidade para o florescimento de uma indústria cultural independente no país. Como nos protegermos dos riscos, sem
abrir mão das novas possibilidades?".
Essa precipitação de cenários coloca o Brasil como laboratório experimental do capitalismo imaterial ou capitalismo cognitivo, em que a mercadoria é a informação e o conhecimento, e onde o consumidor é também produtor.
Como falar simplesmente de homogeneização e dominação, diante dos movimentos globais de afirmação da
cultura digital, pela democratização da informação, pelo
acesso gratuito às redes, pelo software livre, pela inclusão
digital? Diante de novas formas de reação e resistência à
voracidade do capital nacional ou transnacional?
A questão é que a cultura brasileira sobreviveu e se constituiu, nos últimos 500 anos, a despeito de toda sorte de
predação, monopólios, invasão e graças à hibridação e fusão. Porque seríamos dizimados agora pelo processo de
globalização eletrônica?
Uma análise em conjunto das campanhas "Identidade
Brasil", na TV Globo, do documento "Conteúdo Brasil",
coordenado pela Globo junto com a PUC de São Paulo e
entregue ao Minc, até as atuais criticas à Ancinav, em editoriais, colunas, telejornalismo, deixa claro que tivemos
uma empresa zelosa, que se "antecipou" ao debate público e "propôs" o que poderia estar em sintonia com o ideário do governo e de alguns produtores de audiovisual.
Sendo, entretanto, mais realista que o rei, tem-se a impressão de que a Globo encampou uma proposta nacional-popular, já há algum tempo presente ao seu discurso e produtos, que lembra uma reedição deslocada da cultura da
broa de milho ou do projeto do Centro Popular de Cultura
dos anos 60, mas agora na sua face espetacular e midiática,
com difusão em massa e exportação de seu ideário.
Na novela "Celebridade", de Gilberto Braga vê-se uma
ode à singela e autêntica vida na zona norte e subúrbios
cariocas, com um Andaraí idílico e modelar, pintado com
os valores populares mais profundos: samba, pagode, forró, feijoada, de um lado, e, de outro, os novos-ricos da indústria cultural e os novos aliados estratégicos do audiovisual. Uma profusão de cineastas parceiros da Globofilmes
foram homenageados ao longo da novela. A primeira que
colocou um diretor de cinema fazendo o papel de galã.
Um Marcos Palmeira romântico e preocupado com as
coisas do Brasil.
Com um arquinho na cabeça e alguns roteiros institucionais sobre as belezas da Amazônia e do Maranhão nas
mãos, pela primeira vez a Globo mimava o cinema brasileiro, dando-lhe todas as honras na ficção. Pela primeira
vez, o drama da atriz principal, Malu Mader, era um drama empresarial-cultural, de uma trabalhadora da indústria imaterial, uma produtora de bens simbólicos.
Capitalismo flexível
Também é interessante analisar as reportagens especiais do Jornal Nacional desde o final de 2003 que elegeram o Brasil profundo e a indústria
da cultura como tema: "festa junina, sertão feliz, Brasil bonito", por um lado, e a campanha "Identidade Brasil", série de reportagens sob o mote "é a cultura que faz a cara do
Brasil" com os temas: "Brasil com S", "Produção Cultural,
Identidade Cultural, Um Grande Negócio", "O Que É Cultura?" e "Cultura na TV".
Temas de fato relevantes e reveladores que poderiam estar em qualquer programa de cultura governamental, não
viessem acompanhados de um profundo viés institucional que apresenta uma única empresa de televisão como a
repositária e espelho dessa identidade e alma nacional,
agente de integração regional e criadora da imagem nacional de exportação. Não está em questão aqui a competência empresarial nem a capacidade de produzir conteúdos
e programas de qualidade das Organizações Globo.
O que está em questão aqui é um modelo de produção,
ligado ao capitalismo monopolista industrial, que está se
esgotando diante do novo modelo do capitalismo rizomático, de fluxos, nômade e flexível, capaz de se reinventar
continuamente e se aliar a novos atores, inclusive ao produtor de conteúdo independente.
O aniversário de Ana Maria Braga e de Tony Ramos ou
de Regina Duarte e Renato Aragão, sua vida privada, são
apresentados como marcos da cultura nacional. E o são,
dirá alguém, mesmo se reduzem o "conteúdo brasileiro" e
a "identidade nacional" (expressão já por si só problemática, pedindo revisão e plural urgente) a um só agente produtor e a um "star system" global.
Tudo é Brasil! Diríamos, homenageando um criador de
conteúdo brasileiro que nunca foi exibido na Globo, o cineasta Rogério Sganzerla. Sim, tudo é Brasil, mas de fato
uma única empresa de televisão brasileira tornou-se "a cara" do Brasil, ao realizar uma globalização interna, monocultura, modelo empresarial e estético que triunfou em diferentes mídias: televisão, rádio, disco, vídeo, internet, cinema. Além de exportar "essa cara" como a cara oficial do
Brasil no exterior. Mídia-Estado se confundindo de forma
problemática.
A explicação para seu domínio do mercado interno, encontramos na fonte, numa das reportagens da série "Identidade Brasil", é no mínimo curiosa: "Mas acontece também uma espécie de exportação interna, dentro do Brasil.
Pouca gente pode viajar por todo o Brasil. Então, muitos
brasileiros descobrem o Brasil na tela: sotaques, paisagens,
festas. A cultura".
Vantagens e perdas
A televisão como turismo cultural dos pobres? Sempre desvinculando produção simbólica de mercado econômico e político, esse discurso passa
longe de qualquer explicação histórica, mercadológica, ou
fazendo referência à trajetória da empresa que durante décadas teve todas as vantagens corporativas, em todos os
governos, desde sua implantação como braço ideológico
do regime militar e base material para o projeto bem-sucedido de integração nacional via redes nacionais de televisão, até sua entrada polêmica no mercado do cinema nacional, com a Globo Filmes.
Nesse ponto, mais polêmicas, apesar de ter alavancado
um "cinema popular brasileiro", o "blockbuster" nacional,
capaz de -com sua linguagem decalcada das próprias novelas e séries e capitalizando a popularidade de seus autores- fazer frente à hegemonia do cinema norte-americano, o ganho simbólico vem junto com vantagens não obtidas por praticamente nenhum produtor independente
brasileiro. Combinação ainda mais estranha encontramos
na estética de de algumas produções da Globo Filmes, como "Olga" ou "Cazuza", fundindo o imaginário rebelde
com a estética hollywoodiana da higienização e da glamourização. Como é possível fazer um filme sobre líderes
comunistas sem falar a palavra comunismo ou fazer um
filme sobre um contestador como Cazuza sem falar a palavra homossexualismo?
Figurante chique
É possível uma síntese feliz entre
globalização e "globolização"? No final de "Celebridade",
Gilberto Gil, negro, tropicalista, odara, defensor do nomadismo digital e do software livre e de todos os hibridismos,
no comando do projeto de maior impacto na cultura brasileira desde o Estado Novo (a Ancinav), não se fez de rogado e, convidado, entrou em cena nos capítulos finais da
novela. Ministro da Cultura e figurante chique no Sobradinho nacional-popular, celebrando a tal identidade nacional, entre artistas e cineastas (parceiros da Globofilmes)
homenageados. O "happy end" da cultura popular midiática celebrada no subúrbio cenográfico, no Andaraí cepecista? Bem, pelo menos a novela da Ancinav ainda não acabou e seu final ainda está em aberto.
O conteúdo brasileiro será nosso? Mas produzido por
quem? Vamos receber mais novela, mais compacto de futebol, mas ensaios sensuais de atrizes, ou também net-arte,
videoarte brasileira, jogos inteligentes, na tela do celular
com conteúdo nacionalizado? E, como contrapartida, vamos ver o cinema brasileiro que desenvolveu realmente
uma linguagem própria, singular, não-fossilizada, no horário nobre, na televisão aberta? Se todo brasileiro tem direito de querer ser presidente do Brasil e um brasileiro pobre quis, furou o bloqueio e chegou lá, talvez não seja preciso esperar mais 500 anos para essa outra revolução acontecer. Dá até novela mexicana.
Ivana Bentes é professora e pesquisadora de cinema e audiovisual, coordenadora-adjunta da pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participa das redes de ativismo Universidade Nômade, Universidade Aberta e Revista Global.
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