São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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Ponto de fuga

O coelho de Bayreuth

Joege Coli
especial para a Folha

O que pode ser uma apresentação de ópera, hoje? Espetáculo que crie intuições imprevistas, capazes de estimular e desvendar. Uma audiência conservadora grita, há 30 anos, contra as liberdades de tantas montagens que proporcionaram à ópera uma percepção inteligente e moderna. A questão é antes saber se os conceitos, as intenções, funcionam no palco. É isso que conta para o prazer, para o entendimento, e não critérios exteriores, preconcebidos.
Uma carta, com várias assinaturas dos "solistas do Festival de Bayreuth", traduzida em três línguas, ampliada, transformada em cartaz, foi exposta em muitos exemplares no saguão do teatro. Ela prevenia o público contra "os ataques, difamações e calúnias" que a nova produção de "Parsifal" vinha sofrendo e pedia isenção no julgamento. É que há em Bayreuth como no Municipal do Rio, muitos escandalizados, viúvos e viúvas de Wagner, prontos no gatilho da indignação.
O templo que o grande compositor construiu para suas próprias óperas abriga rituais imutáveis: as fanfarras de chamada, as salsichas dos intervalos, os smokings e vestidos longos às 4h da tarde, a abertura e o final, sempre nos mesmos dias.
Seu caráter mítico é alimentado pela dificuldade em conseguir ingresso, cuja espera média é de oito anos. O edifício foi concebido para "Parsifal", sacrossanta, ópera destinada a ser representada apenas ali, numa liturgia sem aplausos. Foi justamente ela que a montagem de Cristoph Schlingensief buscou renovar com, em meio a um rol sem fim de coisas, um coelho podre.

Espanador - Schlingensief e Wolfgang Wagner, o diretor do Festival de Bayreuth, brigaram. Só se comunicavam por intermédio de seus advogados. O protagonista Endrik Wottrich (voz e interpretação estupendas: Wottrich faz parte da auspiciosa safra atual do jovem canto wagneriano) e Schlingensief trocaram insultos. Tudo estava em efervescência diante desse novo "Parsifal", mas o público, preparado, se comportou bem, vaiando só no fim.
É fato que a execução musical, de grande beleza, ajudou. Foi em 1966 que Pierre Boulez dirigiu pela primeira vez no Festival de Bayreuth, e sua estréia foi com "Parsifal". Foi, ele também, vaiado por romper com as convenções estáticas de execução que se impuseram a essa música, inventando cesuras, acelerações, brilhos intensos, num discurso aventuroso e veloz (três horas e 38 minutos, recorde diante das três horas e 44 minutos de Krauss, em 1953; muito aquém da dilatação surpreendente de Toscanini em 1931: quatro horas e 48 minutos. A primeira versão de Boulez foi editada em CD pela DG). Agora, beirando os 80 anos, volta não muito mais lento (três horas e 45 minutos), mas comportado, compassado, analítico, elegíaco, com sonoridades etéreas, em que o espírito de Debussy por vezes emerge. Tal regência e cantores esplêndidos acalmaram um pouco os ânimos.

Cartola - Schlingensief recusa a compaixão cristã e ariana, a luz única de "Parsifal". Põe no palco uma humanidade diversificada e exóticos rituais religiosos. Alguns cenários -todos eram apocalípticos e caóticos- lembravam Veneza, onde Wagner morreu, outros citaram o próprio teatro de Bayreuth. "Parsifal" deixou de ser a descoberta de verdades purificadoras para enfeixar cruzamentos de crenças.
"Parsifal" é a ópera das feridas, das mutilações, dos apodrecimentos, dos moribundos e dos mortos. Em cena, multiplicaram-se projeções de filmes: células orgânicas, imensas; insetos, animais, humanos; além do coelho, em tela enorme, que nasce, vive e é mostrado apodrecendo no último ato. Nada da parafernália wagneriana, nada de cisnes, esse totem romântico do compositor. A vida como materialidade biológica e inquietante, povoada de vítimas, cujo sentido escapa, mas que, no final se abre em sentimento de esperança.

Caos - Schlingensief submergiu sob suas idéias e invenções. Ele não mostrou a articulação teatral clara de Chéreau ou de Gerald Thomas. O espetáculo, escuro, saturado, muitas vezes desaparecia em si mesmo. Outras, levantava-se com força fenomenal. Em todo caso, era teatro vivo, ópera que pulsa e que se arrisca.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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