São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Canal francês transmite até dezembro as gravações do julgamento do criminoso de guerra e estabelece um marco na história da mídia
O processo de Klaus Barbie

Elogio da televisão

Reprodução
Imagem feita por Wilhelm Schneider; um dos primeiros negativos coloridos da Alemanha (1935)


POR LUIZ FELIPE DE ALEN CASTRO

Na altura em que as reportagens sobre a eleição presidencial nos EUA põem a nu os equívocos da TV na cobertura da história imediata, a iniciativa do canal francês Histoire de apresentar o processo do criminoso de guerra nazista Klaus Barbie, realizado em 1987, constitui um duplo acontecimento na elaboração da história contemporânea (1). De saída, convém notar que nenhum processo desse escopo terá ainda sido mostrado na curta existência da televisão. A filmagem de julgamentos nos tribunais de júri não é frequente, e sua transmissão na TV, mais excepcional ainda. O único caso de projeção direta foi o julgamento por homicídio do ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson, transmitido ao vivo da Califórnia pelo canal Court TV, em 1995. No registro dos crimes de guerra as imagens são bastante parcas. O processo de Tóquio, julgando os criminosos de guerra japoneses depois da Segunda Guerra, não foi nem sequer filmado. Do Tribunal de Nurembergue (1945-1946) -em que os acusados eram os chefes da Alemanha nazista e em que foram definidos os conceitos jurídicos de "crime de guerra" e "genocídio"-, só existem 11 horas filmadas. Embora não tenha sido transmitido ao vivo, o processo do oficial nazista Eichmann, no tribunal de Jerusalém (1961), foi filmado nas suas 500 horas de duração. Contudo um terço das bobinas está desaparecido. Nessas circunstâncias, a programação na TV francesa de 70 das 185 horas filmadas ao longo do processo de Barbie, transcorrido em Lyon no ano de 1987, constitui um marco na história da mídia.

Casos diferentes
Bem entendido, a importância do fato decorre da dimensão do crime na história política contemporânea: o caso Klaus Barbie não tem nada em comum com o caso O.J. Simpson.
Nascido na Alemanha em 1913, Barbie aderiu ao Partido Nazista em 1937. Na Segunda Guerra, prestou seus sinistros serviços na Holanda até ser transferido para Lyon, na França, onde foi o chefe da seção "luta anticomunista, anti-sabotagem e antijudaica" da Gestapo, a polícia secreta nazista (1942-1944). No final da guerra, Barbie refugiou-se na Alemanha Ocidental, onde foi engajado pelos serviços secretos americanos na luta contra os comunistas e a influência da URSS.
Apesar dos pedidos de extradição dos magistrados franceses, as autoridades americanas na Alemanha se recusaram a entregar Barbie e organizaram sua fuga para a Bolívia. Condenado à morte à revelia pela Justiça francesa em 1952 e 1954, Barbie, transformado em próspero empresário sul-americano, recebeu em 1957 a nacionalidade boliviana, com o nome de Klaus Altmann.
Dois dos inúmeros atos de barbárie -torturas, execuções, deportações e pilhagens- que cometeu na França guardaram um destaque particular. A prisão e tortura até a morte de Jean Moulin (junho de 1943), chefe da Resistência francesa, e a deportação para os campos de extermínio nazistas de 41 crianças judias e cinco de seus professores que as escondiam, no vilarejo de Izieu, perto de Lyon (abril de 1944).
O primeiro desses crimes, ao lado de muitos outros, fora julgado nas primeiras condenações francesas. Consequentemente, já estava prescrito quando Barbie compareceu diante do tribunal de Lyon em 1987, quatro anos depois de sua extradição da Bolívia. O segundo crime citado, a deportação das crianças judias, assim como alguns outros, notadamente a deportação para Auschwitz e a morte, 15 dias antes do final da guerra, de 600 judeus e resistentes franceses, não haviam sido citados nos julgamentos dos anos 50. Não se encontravam, assim, prescritos e podiam ser incluídos na acusação de "crime contra a humanidade".
Na realidade, a partir dos anos 60, com o retorno do general De Gaulle ao poder e a consciência crescente do Holocausto, o direito francês evoluiu. Integrado à jurisprudência francesa desde 1964, o crime contra a humanidade contém algumas características jurídicas específicas.
Além da imprescritibilidade, esse crime define uma retroatividade que atinge os "atos inumanos e perseguições cometidos em nome de um Estado praticando uma política de hegemonia ideológica, de maneira sistemática, não somente contra pessoas em razão de sua filiação a uma comunidade racial ou religiosa, mas também contra adversários dessa política, qualquer que seja a forma de sua oposição". A última parte da definição concerne os crimes cometidos contra os resistentes que combatiam os nazistas.
Depois de Barbie, os franceses Touvier e Papon, asseclas dos nazistas durante a ocupação, foram julgados por crime contra humanidade, crime que está incorporado ao novo Código Penal da França, em vigor desde 1994.
Desse modo, o telespectador que assiste o processo de Lyon, agora, 13 anos depois depois dos fatos, está instruído pelos debates suscitados depois do julgamento e dos processos de Touvier e Papon. Há uma clivagem básica que separa os nazistas e seus asseclas até agora julgados: a diferença entre o tipo de funcionário que organiza os crimes de massa como um burocrata do extermínio, como Eichmann -cuja personalidade anódina levou Hannah Arendt a analisar a "banalidade do Mal"-, e o torturador psicopata, como Barbie, tomado de uma sanha criminosa que o levava a executar pessoalmente as torturas. Touvier estava mais próximo de Barbie, enquanto Papon, cumprindo sua pena à perpetuidade, se parece mais com Eichmann.


Tudo se situa a léguas dos julgamentos da Justiça americana popularizados no mundo inteiro por Hollywood; nada de jogo de cena ou de provas inesperadas


Resta que Touvier e Papon são franceses, funcionários do governo legal de Vichy que colaborou com os ocupantes nazistas. Seus julgamentos, também filmados, desencadearão debates delicados na França, caso venham a ser apresentados na TV. Ao lado dos fatos heróicos da Resistência e da dor das vítimas, virão de novo à tona os compromissos e as covardias que marcaram a ocupação alemã na França. Mais grave ainda, será inevitavelmente questionada a atitude da direita francesa, que integrou Papon às suas fileiras no pós-guerra, e de um ex-campeão da esquerda, François Mitterrand, cujas ambiguidades sobre o assunto são hoje notórias. Assim o processo de Barbie poderia aparecer aos telespectadores franceses como o ato de acusação de um ser essencialmente boçal. De um bode expiatório perfeito: nazista alemão, invasor, torturador sádico, assassino de crianças e do herói mítico da Resistência. Graças às discussões, à excelência dos jornalistas, juristas e historiadores que organizam e comentam as emissões, não tem sido assim. Graças ainda ao poder das imagens, as impressões recolhidas das audiências mostradas na TV são bem mais complexas e difíceis de ser definidas. Antes de projetar as audiências, a série -formada de 37 emissões de duas horas e meia levadas ao ar diariamente, em diferentes horários, desde o último dia 30 de outubro até de 2 dezembro- mostrou um documentário situando a história de Barbie. Em seguida, um dos promotores-assistentes que participaram do julgamento explicou os aspectos processuais das primeiras audiências. Assiste-se à lenta montagem da máquina judiciária: identificação das testemunhas, dos advogados, do réu, juramento dos membros do júri, qualificação das acusações. Logo fica claro que tudo se situa a léguas dos julgamentos da Justiça americana popularizados no mundo inteiro por Hollywood. Nada de jogo de cena, de provas inesperadas, de jurados embasbacados pela charla dos advogados. Progressivamente, surgem os chiados dos microfones mal-regulados, as hesitações dos dois tradutores que ladeiam Barbie, o cansaço dos jurados, os cacoetes de uns e de outros. Implacável, a televisão mostra que a realidade filmada não tem nada a ver com um filme. Mais de 30 anos depois de seus crimes, Barbie usa os recursos do direito -covardemente recusados às suas vítimas- para fugir às suas responsabilidades. Alega que está detido ilegalmente em Lyon, sequestrado da Bolívia, sua nova pátria. No entanto, ao ser interrogado pelo presidente do tribunal sobre uma de suas condecorações militares, ele dispara a falar com indisfarçável orgulho de todas as medalhas e honrarias que recebeu na polícia nazista. Mais tarde, enrola-se quando pretende explicar por que o "ideal nazista" havia sido traído por Hitler. Questionado pelo magistrado, evitou dizer a quais "ideais" se referia e se recolheu ao seu mutismo. Pouco depois, faz outra declaração sobre o seu "sequestro" e pede para voltar à prisão de Lyon. Da terceira audiência em diante, ele se recusará, em acordo com seu advogado, a comparecer a seu julgamento.

A falta do torturador
O processo prossegue seu ritmo sem a presença do réu. Algumas das testemunhas de acusação, vítimas de Barbie que tiveram a sorte de sobreviver, lamentaram não poder encarar o torturador durante o processo. Quando descrevem as condições de sua prisão e as violências perpetradas por Barbie, as testemunhas multiplicam expressões de espanto -"incrível", "inacreditável", "inverossímil"-, como se não pudessem exprimir a dimensão exata do terror.
Uma militante da Resistência, Irene Fremion-Clair, com 21 anos na época de sua prisão, emudece e não consegue descrever o estado físico em que ficou seu chefe de grupo depois de ter sido torturado por Barbie. Outra testemunha chora copiosamente ao narrar as carroças carregadas de cadáveres de mulheres no campo de Ravensbrück, para onde fora deportada por Barbie.
Além dos assassinatos e da exterminação pelo gás, a sujeira, a disenteria e o tifo ajudavam a destruir os prisioneiros. Elie Nahmias, preso por Barbie, conta como o torturador açoitava pessoalmente suas vítimas. Em seguida, Nahmias, homem de 61 anos ainda vigoroso em 1987, se lança numa narrativa do seu itinerário até Auschwitz.
O presidente quer interrompê-lo para questioná-lo sobre pontos que implicam diretamente o réu, mas Elie Nahmias não pára de falar. Conta a história dos 40 soldados soviéticos que tentaram fugir do campo. Recapturados e amarrados na forca, chutaram o banco sobre o qual estavam, matando-se antes que os nazistas os enforcassem. Um deles ainda teve tempo de gritar para Nahmias: "Você contará o que viu aqui".
Elie Nahmias pôde contar, está aliviado, o presidente do tribunal reinicia então seu interrogatório.
Primeiro homem a ser julgado por crime contra a humanidade desde que o mundo é mundo, Barbie foi condenado à prisão perpétua e morreu na prisão de Lyon, em 1991. Na aurora do novo milênio, seu processo aparece nos aparelhos de televisão dos lares franceses, projetando imagens da abjeção, da miséria, da covardia e da dignidade humanas. Imagens de todos nós.

Nota
1.Além dos artigos publicados pela imprensa francesa, há um excelente dossiê sobre o assunto no site www.histoire.fr


Luiz Felipe de Alencastro é professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul" (Companhia das Letras).



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