São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Dois pesquisadores alemães mostram as bases° nazistas da reforma ortográfica realizada no país em 1996
A língua adulterada

Márcio Seligmann-Silva
especial para a Folha

Cada país aprende a seu modo em que medida, muito mais do que uma linguagem da política, também existe uma política da linguagem. No caso da Alemanha isso não poderia ser diferente -muito pelo contrário. Os 12 anos de nazismo deixaram uma marca na língua e cultura alemãs que, ao que parece, ainda vai levar muito tempo para ser superada. E, afinal, quem ousa falar em apagar esse passado, senão os mais conservadores arautos da "normalização", para quem a "República de Berlim" -ou seja, a queda do Muro e a volta da capital para sua antiga sede- significa a restauração da República de Weimar e abre para um "esquecimento" do passado nazista? A "Lingua Tertii Imperii" (língua do Terceiro Reich) já foi denunciada e estudada, entre outros, por Victor Klemperer (nos seus diários e no seu livro "LTI"). A novilíngua que os nazistas criaram -marcada por eufemismos, cinismo e covardia- se expressou do modo mais acabado na linguagem empregada para o genocídio dos judeus: "solução final". Nos campos de concentração era proibida a palavra "cadáver", falava-se apenas em "figuras" para se referir aos corpos. Mas essa estratégia linguística de negar os fatos lançando uma cortina de fumaça sobre eles evidentemente teve um efeito limitado (e fazia parte da política oficial de apagamento dos rastros dos crimes nazistas). Na Alemanha, após mais de meio século da derrocada do regime de Hitler, é raro um dia em que não se tenha uma notícia -uma "descoberta"- com relação àquele período. Sabemos que a memória funciona em ciclos: existem momentos que reforçam o esquecimento (como a época da reconstrução e da Guerra Fria), outros em que a memória jorra com toda sua força (como se lê nos inúmeros relatos testemunhais que são publicados no mundo inteiro, a cada dia, de autoria de sobreviventes de campos de concentração que querem, antes de morrer, "contar tudo", deixar um documento de suas vidas para as próximas gerações). Na linha do politicamente correto é de bom tom agora na Alemanha que as empresas que participaram do morticínio -empregando mão-de-obra escrava- assumam esse passado e indenizem os sobreviventes. Esse movimento de reparação não pode, no entanto, ser confundido com um mecanismo de esquecimento. A memória do trauma não é apagável... Por outro lado, não é menos verdade que atingimos um ponto no trabalho de memória e historiografia da Segunda Guerra que podemos caracterizar -em termos psicanalíticos- como a passagem da fase de repetição (mecânica e involuntária) das suas imagens para uma fase de elaboração e simbolização. Esse processo, vale destacar, é inesgotável. Ele também não deságua no esquecimento, mas antes leva a novas modalidades de escritura da memória e história, criativas e densas, como ocorre na arte de um artista plástico como Anselm Kiefer, na Alemanha, e de um cineasta como Claude Lanzmann, na França. Esse movimento complexo de elaboração do passado nazista não é de modo algum hegemônico. A tendência para o seu apagamento, negação e/ou normalização também se manifesta a todo momento: há um conflito, um embate em torno do registro do passado.

Ironias e piadas
Não deixa de ser sintomático que o debate agora em voga em torno da memória do período nazista tenha como núcleo justamente a questão da "escritura". A polêmica reforma ortográfica realizada em 1996, que enfrentou muita resistência por parte dos nichos mais intelectualizados da sociedade e que foi objeto de ironias e piadas, teve agora seu passado desmascarado: ela tem sua origem nas inúmeras tentativas de reforma ortográfica do período nazista.
Reinhard Markner e Hanno Birken-Bertsch são os responsáveis por um trabalho detalhado e exaustivo que acaba de ser publicado e não deixa dúvida alguma quanto a esse passado obscuro -e que havia sido sistematicamente negado- da reforma ortográfica de 1996.
Não por acaso "Rechtschreibreform und Nationalsozialismus - Ein Kapitel aus der Politischen Geschichte der Deutschen Sprache" (Reforma Ortográfica e Nazismo - Um Capítulo da História Política da Língua Alemã) tem recebido críticas entusiásticas por parte da grande imprensa alemã. O principal jornal alemão, o poderoso e conservador "Frankfurter Allgemeine", já decidira, antes mesmo dessa publicação, em julho, voltar atrás e não seguir mais a reforma ortográfica. Em meio à crescente batalha intelectual que se seguiu a esse fato, o livro de Markner e Birken-Bertsch surge como uma fonte inesgotável e imprescindível de argumentos contra a referida reforma.
Mas, cabe perguntar, existe algo de "nazista" nessa reforma? Como os autores demonstram, ela segue dois pontos centrais das planejadas (e não implementadas) reformas nazistas da ortografia: em primeiro lugar, ela parte da língua falada para determinar a mudança da ortografia; em segundo lugar, o seu método é igual ao nazista: ela foi planejada de modo secreto e depois imposta à sociedade de modo autoritário. Ou seja, essa reforma incorre no duplo erro de não levar em conta os impressionantes avanços da linguística no século 20 e também de compartilhar da ilusão (autoritária) que acredita em uma imposição forçada de uma ortografia -contra o pensamento liberal de um W. Humboldt, para quem "natura non fecit saltus" (sem contar, evidentemente, o terceiro erro fatal: acreditar poder encobrir o seu passado nazista).
Já Wilhelm Grimm -em 1821- advertia em seu texto "Sobre as Ruínas Alemãs" quanto à ilusão de uma reforma ortográfica imposta de modo artificial. Essa reforma de 1996 -assim como a sua base teórica estabelecida durante o período nazista- parte de uma visão pseudo-romântica que identifica o aspecto original (originário) da vida e "alma" de cada "povo" à sua língua falada. A escritura é aí reduzida ao papel de um instrumento que deveria se submeter à oralidade.
No entanto, muito antes de Jacques Derrida o afirmar na sua crítica ao fonocentrismo, o romântico Johann Wilhelm Ritter já sabia que não existe a possibilidade de separar a "escritura" da língua falada. Uma não tem relação instrumental com a outra, mas antes de determinação recíproca. Assim como a linguagem falada não é nem expressão "imediata" da "alma" nem mero instrumento de comunicação, também a "escritura" não é um simples instrumento de "fixação" da oralidade, como os teóricos nazistas o afirmavam.
Entre 1933 e 1945 a valorização da língua falada tinha como núcleo o culto da fala do Führer. Daí a centralidade do rádio dentro do universo de propaganda nazista: a construção da unidade do "povo" dar-se-ia com base na onipresença da voz de Hitler. Preparava-se também uma expansão da língua alemã que deveria se seguir à vitória na guerra. O modelo linguístico centrado na fala opunha-se de modo programático à cultura letrada -que era estigmatizada como sendo "judaica". O predomínio da oralidade na concepção da linguagem também deveria facilitar o aprendizado da escrita.
Na verdade as crianças foram tomadas como paradigma para a reforma ortográfica. A atual reforma -pensada desde o final da Segunda Guerra em parte pelas mesmas pessoas que assessoraram o Ministério da Educação nazista- é criticada justamente devido à sua orientação em favor da facilidade de aprendizado. Afinal aprendemos a escrever apenas durante uma parte muito pequena de nossas vidas. E mais: via de regra lemos muito mais do que escrevemos.
O crítico do "Frankfurter Allgemeine", em meio a vários elogios, fez apenas uma ressalva ao livro recém-lançado, mas que atingiu um ponto que é particularmente delicado. Ele afirmou que na verdade a reforma de 1996 não remonta apenas às tentativas do período nazista, mas também a outras, como a de 1901. Respondendo a essa observação -que toca no tema complexo da famosa singularidade do período nazista-, Reinhard Markner, um dos autores, afirmou: "É verdade que não tratamos de modo mais detalhado dessa tentativa. Mas nosso livro tem como subtítulo "Um Capítulo da História Política da Língua Alemã". Nós não escrevemos a história completa das reformas ortográficas, assim como nós não afirmamos que os nazistas inventaram esse projeto. De resto, eles não inventaram nem a "Autobahn" (auto-estrada) nem o anti-semitismo".


Márcio Seligmann-Silva é professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor de, entre outros, "Ler o Livro do Mundo" (Iluminuras) e organizador, com Arthur Nestrovski, do volume "Catástrofe e Representação" (Escuta).


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