São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Para os republicanos de 1817, em Pernambuco, o mimetismo revolucionário operou como compensação pelas limitações à ação revolucionária
O mimetismo revolucionário

Evaldo Cabral de Mello

S abemos que as revoluções adoram se imitar. Já não me recordo que historiador escreveu que as chances de Luís 16 escapar da guilhotina teriam sido melhores caso os ingleses não houvessem, cerca de 150 anos antes, executado Carlos 1º. A França, aliás, gastou boa parte do seu século 19 arremedando em 1830 como em 1848 ou em 1871 a grande revolução de 1789. Os bolcheviques julgavam-se a reencarnação dos jacobinos. Já no Brasil o fenômeno do mimetismo revolucionário não é de observação tão fácil. O que deveria ter sido nossa revolução nacional, a Independência, foi, na realidade, uma contra-revolução comandada do Rio por um príncipe e empreitada por uma elite de altos funcionários públicos ameaçada na sua própria existência pelas cortes de Lisboa. Nessa contra-revolução emancipacionista não sobraria, portanto, muito espaço para a imitação dos modelos revolucionários da Revolução Francesa ou da Revolução Americana, de modo que nosso jacobinismo não passará de espasmos inconsequentes, então e depois, na tardia versão florianista. Se quisermos observar o fenômeno do mimetismo revolucionário, cumpre retroceder de alguns anos ao movimento republicano de 1817 em Pernambuco, muito embora, como veremos, ele tampouco achou-se inteiramente à vontade para seguir nos passos de tão ilustres paradigmas. Oliveira Lima pretenderá que, em 17, a influência da grande revolução foi maior que a da independência americana ou a das colônias espanholas. Tollenare, o comerciante francês que então se encontrava no Recife e que privou da amizade do padre João Ribeiro antes e depois de deflagrado o movimento, descreveu-o como "um homem de idéias extremadas", que "estava alucinado pela leitura dos nossos filósofos do século 18", sobretudo Condorcet (1743-1794). Na sua casa, antes de 6 de março, Tollenare promovera reuniões com indivíduos desejosos de conhecer "o estado das artes, das ciências e da filosofia na França", sem que, contudo, se tivessem externado "conceitos que pudessem me fazer supor intenções sediciosas". Tollenare aproveitara-se, aliás, dessas ocasiões para ressaltar os males dos regimes revolucionários e as vantagens que seu país então estava tirando da restauração bourbônica. Daí que, sabedor dessas opiniões moderadas, o próprio governador Caetano Pinto lhas mandasse agradecer. Outra testemunha de 17 chegaria ao extremo, que teria agradado a um sociólogo como Gabriel Tarde (1843-1904), de julgar que "o espírito da imitação foi o principal móbil de toda a desordem", de que as demais causas que ele apontava haviam sido apenas acessórias.

O peso do exemplo
Contudo, no plano da organização constitucional, o exemplo da Revolução Americana devia necessariamente pesar mais que o da francesa. O mesmo Tollenare depararia na sala de sessões do governo provisório com as Constituições francesas de 1791, 1793 e 1795, sendo que a última, a Constituição termidoriana, agradava especialmente aos seus membros. O francês acreditava, porém, que as reticências se explicavam pelo problema de como integrar a população de cor no sistema representativo. Na verdade, havia outro motivo que escapou à sua argúcia. As Constituições revolucionárias da França continham todas um elemento capaz de alienar as simpatias dos membros da junta pernambucana e de seus conselheiros: a concepção unitária com que a grande revolução pretendia liquidar os particularismos regionais identificados até então com o poder da aristocracia. Nesse sentido, era o federalismo da Constituição americana que se impunha naturalmente à sua preferência. Nos primeiros dias do movimento, já o cônsul inglês informava ao "Foreign Office" que se tencionava organizar o novo regime de acordo com "o modelo dos Estados Unidos da América", isto é, segundo o figurino federativo. "Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará devem formar uma só república, devendo-se edificar uma cidade central para capital", escrevia o padre João Ribeiro. A brevidade da insurreição não deu tempo ao processo constituinte, que ficou truncado, sem que se concluísse nem sequer a primeira etapa. O governo revolucionário tivera duas alternativas. A primeira consistia, como sustentará o ex-revolucionário monsenhor Muniz Tavares, em seguir o exemplo das 13 colônias norte-americanas, convocando imediatamente um corpo constituinte e legislativo, à maneira do Congresso Continental norte-americano, de modo a formar "uma liga federal", para prover a segurança externa. Destarte, como nos Estados Unidos, o processo constituinte teria caminhado paralelamente tanto ao nível das ex-colônias, transformadas em Estados, quanto entre elas, reunidas primeiro em confederação e posteriormente em federação. A essa primeira opção corresponderia o projeto, cujo texto é ignorado, redigido por Pereira Caldas, mas cuja existência se conhece pela defesa do próprio Caldas perante a Alçada. Acusado pelo dicionarista Morais Silva de elaborar projeto de lei constitucional, esclarecia Caldas havê-lo efetivamente mostrado a Morais, sem que tivesse sido oficialmente encarregado da tarefa. Ocorrera apenas que, confidenciando-lhe certo membro da junta a esperança de que Caldas fosse o Benjamin Franklin de 17, ele lhe retrucara não dispor da sabedoria do americano, ocasião em que lhe fora mostrado o "Livro das Constituições" que o mesmo Franklin compusera para as colônias da América inglesa. O governo provisório optou, contudo, pela segunda alternativa mais prudente, do projeto de lei orgânica de 29 de março de 1817, atribuído a frei Caneca, mas na realidade da lavra de Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Tratava-se aqui exclusivamente do estabelecimento de uma Constituição pernambucana, a ser aprovada por assembléia a ser convocada tão logo obtida a adesão de todas as comarcas da capitania. Até a vigência da Carta Magna, o governo provisório enfeixaria os poderes Executivo e Legislativo. Como assinalou Oliveira Lima, a lei de 29 de março forma "apenas um conjunto de disposições constitucionais transitórias", representando no máximo as bases da futura Constituição provincial. A junta provisória deve ter calculado que, distando a revolução de estar firmada em Pernambuco, pois as comarcas do sertão e a de Alagoas opunham-lhe resistência, e à espera de que a nova situação também se consolidasse nas três capitanias ao norte, conviria dar tempo ao tempo. A convocação da Constituinte pernambucana, a eleição dos deputados e sua reunião no Recife poderiam levar até um ano, e a discussão e votação do texto, até três. Tal estimativa explica que a lei orgânica vigeria até a entrada em vigor da Constituição, mas que, no caso de qualquer dos prazos não ser cumprido, o governo provisório ficaria automaticamente dissolvido, entrando "o povo no exercício da soberania para o delegar a quem melhor cumpra os fins da sua delegação".

Roma e Estados Unidos
Afinal de contas, como Roma e Pavia, tampouco os Estados Unidos se haviam feito num dia, mesmo quando se leva em conta que as colônias americanas dispunham de uma experiência de governo representativo graças às assembléias coloniais (o que não era o caso no Brasil, onde o poder local era apenas exercido pelas Câmaras Municipais dispersas no seu isolamento rural); e que, antes de 1763, a administração do Império Britânico, como era agora o caso do Reino Unido, podia ser considerada federal de fato, embora não de jure, razão, aliás, pela qual os "founding fathers" (pais fundadores) pensaram inicialmente não em termos de independência, mas de uma Constituição federal para o Império Britânico.
Os homens de 17, com os olhos voltados para o norte do continente, se bem não dispensassem a cenografia revolucionária da França, deviam estar conscientes das delongas verificadas entre os que eles chamavam "ingleses americanos". O primeiro Congresso Continental reuniu-se em setembro de 1774, a declaração de independência data de julho de 1776 e o Massachusetts, malgrado contar com Congresso próprio desde outubro de 1774, somente seis anos depois aprovara sua Constituição estadual. A primeira Constituição americana, os "Articles of Confederation" (Artigos da Confederação), começou a ser discutida em julho de 1776, sendo adotada em novembro de 1777, para entrar em vigor em março de 1781. Por sua vez, a elaboração da Constituição federal só se concluiu em setembro de 1787 e sua ratificação teve ainda de esperar dois anos. O fato de que os Estados Unidos fossem a única nação de quem os revolucionários de 17 podiam razoavelmente esperar auxílio material e político, a Inglaterra sendo suspeita devido à sua velha aliança com os Braganças, e a França, pela restauração dos Bourbons, explica igualmente a preferência pelos "ingleses americanos". Na sua história do movimento, acentuava Muniz Tavares que a influência americana se devia à "gloriosa fortuna" de que gozavam, "a sua segurança e ordem legal", que os faziam especialmente atraentes aos "pernambucanos que anelavam o melhoramento da pátria". É que, "ainda não bem versados no estudo da política (mas a reflexão agora é a do revolucionário convertido tardiamente à causa da ordem), eles imaginavam que qualquer instituição caracterizada útil era aplicável a todos os povos, sem se lembrar que com facilidade se pode transplantar a lei, mas não o espírito da nação; não pensavam que no Brasil existia um trono e ocupado por um rei naturalmente bom, circunstância que muito diversificava a posição respectiva", isto é, que muito nos diferenciaria da grande república do norte. Por conseguinte, a revolução equivocava-se quando julgava obter o apoio norte-americano sem levar em consideração que "o espírito desta nação é mercantil; os mercantes são avaros; o seu governo é tanto livre quanto prudente". Mas, se a independência americana tinha com o que atrair o punhado de elitistas que discutiam fórmulas constitucionais incompreensíveis para a esmagadora maioria dos seus concidadãos, a cenografia da grande revolução era passível de inflamar imaginações brasileiras, por ser bem mais rica e atraente que a da sua pragmática antecessora, marcada pela secura emocional e pela carência do senso de espetáculo desses anglo-americanos. Foi assim que Domingos José Martins e sua mulher incitaram as senhoras da sociedade a se descartarem dos seus barrocos estilos de penteado lusitano, que não condiziam com a "austeridade republicana", sugerindo-lhes que "fizessem cortar os seus cabelos" à maneira de Tito, ressuscitada pela grande revolução na sua busca de precedentes romanos. A moda pegou; e, após o fracasso da República, os agentes da coroa ainda tiveram de reprimi-la. O próprio suicídio do padre João Ribeiro parece um gesto sugerido pelos modelos estóicos da Antiguidade clássica requentados pela Revolução Francesa, não sendo em todo caso de inspiração cristã.


No Brasil, o que deveria ter sido nossa revolução nacional, a Independência, foi, na realidade, uma contra-revolução comandada do Rio por um príncipe e empreitada por uma elite de altos funcionários públicos ameaçada pelas cortes de Lisboa


Robespierre pernambucano
Cabe mencionar também a inclinação a estabelecer comparações desvanecedoras entre os homens da hora e os personagens franceses, como o lusitano a quem, devido ao radicalismo das medidas que propunha contra seus compatriotas, foi dado o apelido de "o Robespierre de Pernambuco".
Entre os oficiais, Pedroso e Teotônio Jorge copiaram os comportamentos da época do Terror, ordenando fuzilamentos, sem conhecimento do governo provisório, com o argumento de que "as revoluções se sustentam de sangue". O velho campo do Erário, rebatizado de campo da Honra, tornou-se o equivalente funcional do Campo de Marte parisiense, de vez que ali se realizavam as festividades revolucionárias, a primeira vez em que se conferiu conotação cívica às designações de logradouros públicos, numa cidade cujas ruas ainda se chamavam prosaica e lusitanamente de beco das Miudinhas ou de corredor do Bispo.
O governo também proscreveu, por considerá-los servis, certos costumes patriarcais que acentuavam as distâncias entre classes ou entre avós, pais e filhos. Assim é que o castiço tratamento de vossa mercê foi substituído pelo de vós; e que em lugar de senhor se dizia patriota. Muniz Tavares, que publicou sua história da revolução quando seu conterrâneo, o regente Araújo Lima, dera ao regime a guinada conservadora de 1837, considerará retrospectivamente que semelhante política representara um imperdoável equívoco, pois, se "a igualdade em presença da lei é base da prosperidade de um Estado, em presença das pessoas é o germe da anarquia e dissolução social"; e, se os franceses haviam adotado o "tu" num momento de paroxismo revolucionário, logo o suprimiriam, sem que, portanto, se tornassem menos livres. Naturalmente proibidas foram a Cruz da Ordem de Cristo e outras condecorações; e, quando os oficiais mais graduados do Exército arrancaram as armas reais que decoravam suas barretinas, a tropa imitou espontânea e entusiasticamente o exemplo.
Escusado assinalar que a intoxicação ideológica com os precedentes franceses antedatou de muito a eclosão do movimento revolucionário. Basta lembrar a esse respeito que a residência recifense de um dos seus corifeus, o Cabugá, que como representante da república pernambucana seguirá para os Estados Unidos, onde se deixará ficar mesmo após a anistia de 1821, se achava não só ornada, diz o padre Dias Martins, que a frequentou, "com delicados painéis em que se viam retratados os varões mais insignes das Revoluções Francesa e Inglesa", mas continha, "nas suas estantes, os livros que mais encausticamente referiam os princípios e vantagens da liberdade". "A consultar uns e outros (aduz o cronista) concorriam personagens de toda a jerarquia", os quais eram ademais "regalados com profusos e delicados banquetes".
Para muitos dos republicanos de 17, o mimetismo revolucionário também terá operado como uma compensação pelo fato de existirem limitações muito concretas à ação revolucionária, ao menos aquela de que eles se haviam impregnado mediante a leitura da história da grande revolução.
Não se podia reeditar em Pernambuco o "beau geste" da Assembléia Nacional ao reconhecer os direitos políticos dos africanos de São Domingos, a aspiração de igualdade democrática sendo incompatível com uma sociedade escravocrata, de cujo excedente os revolucionários também viviam, embora essa incompatibilidade tenda a ser exagerada, como indica o precedente norte-americano entre a independência e a Guerra de Secessão. Tampouco se podia contrafazer a convenção no tocante às relações entre o Estado e a Igreja, de vez que da liderança de 17 participava conspicuamente a elite saída do seminário de Olinda. Em matéria religiosa, 17 não foi apenas conformista, mas buscou ativamente mobilizar o sentimento católico de uma população previsivelmente desconfiada dos protestos de ortodoxia religiosa de um regime que abolira a figura do rei.
Nem havia aristocracia local, no sentido jurídico da palavra, encarnada em títulos de nobreza, a ser combatida em nome de um Terceiro Estado que englobava quase todo mundo, à exceção dos escravos. É certo que, como observava Muniz Tavares, "três ou quatro casas (isto é, famílias) em vão aspiravam à homenagem por velha tradição", mas, se aduza, seus varões estavam certamente ao lado da revolução, como o morgado do Cabo, os Cavalcanti de Albuquerque ou os Carneiro da Cunha. Por fim, as grandes fortunas não sobreviviam ao longo prazo, de vez que eram logo devoradas pelas regras sucessórias.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil -Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


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