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Para os republicanos de 1817, em Pernambuco, o mimetismo revolucionário operou como compensação pelas limitações à ação revolucionária
O mimetismo revolucionário
Evaldo Cabral de Mello
S
abemos que as revoluções adoram se imitar. Já não me recordo
que historiador escreveu que as
chances de Luís 16 escapar da guilhotina teriam sido melhores caso os ingleses não houvessem, cerca de 150 anos
antes, executado Carlos 1º. A França,
aliás, gastou boa parte do seu século 19
arremedando em 1830 como em 1848 ou
em 1871 a grande revolução de 1789. Os
bolcheviques julgavam-se a reencarnação dos jacobinos. Já no Brasil o fenômeno do mimetismo revolucionário não é
de observação tão fácil. O que deveria ter
sido nossa revolução nacional, a Independência, foi, na realidade, uma contra-revolução comandada do Rio por um
príncipe e empreitada por uma elite de
altos funcionários públicos ameaçada na
sua própria existência pelas cortes de
Lisboa.
Nessa contra-revolução emancipacionista não sobraria, portanto, muito espaço para a imitação dos modelos revolucionários da Revolução Francesa ou da
Revolução Americana, de modo que
nosso jacobinismo não passará de espasmos inconsequentes, então e depois, na
tardia versão florianista.
Se quisermos observar o fenômeno do
mimetismo revolucionário, cumpre retroceder de alguns anos ao movimento
republicano de 1817 em Pernambuco,
muito embora, como veremos, ele tampouco achou-se inteiramente à vontade
para seguir nos passos de tão ilustres paradigmas. Oliveira Lima pretenderá que,
em 17, a influência da grande revolução
foi maior que a da independência americana ou a das colônias espanholas.
Tollenare, o comerciante francês que
então se encontrava no Recife e que privou da amizade do padre João Ribeiro
antes e depois de deflagrado o movimento, descreveu-o como "um homem de
idéias extremadas", que "estava alucinado pela leitura dos nossos filósofos do século 18", sobretudo Condorcet (1743-1794). Na sua casa, antes de 6 de março,
Tollenare promovera reuniões com indivíduos desejosos de conhecer "o estado
das artes, das ciências e da filosofia na
França", sem que, contudo, se tivessem
externado "conceitos que pudessem me
fazer supor intenções sediciosas".
Tollenare aproveitara-se, aliás, dessas
ocasiões para ressaltar os males dos regimes revolucionários e as vantagens que
seu país então estava tirando da restauração bourbônica. Daí que, sabedor dessas opiniões moderadas, o próprio governador Caetano Pinto lhas mandasse
agradecer. Outra testemunha de 17 chegaria ao extremo, que teria agradado a
um sociólogo como Gabriel Tarde (1843-1904), de julgar que "o espírito da imitação foi o principal móbil de toda a desordem", de que as demais causas que ele
apontava haviam sido apenas acessórias.
O peso do exemplo
Contudo, no
plano da organização constitucional, o
exemplo da Revolução Americana devia
necessariamente pesar mais que o da
francesa. O mesmo Tollenare depararia
na sala de sessões do governo provisório
com as Constituições francesas de 1791,
1793 e 1795, sendo que a última, a Constituição termidoriana, agradava especialmente aos seus membros. O francês
acreditava, porém, que as reticências se
explicavam pelo problema de como integrar a população de cor no sistema representativo. Na verdade, havia outro
motivo que escapou à sua argúcia. As
Constituições revolucionárias da França
continham todas um elemento capaz de
alienar as simpatias dos membros da
junta pernambucana e de seus conselheiros: a concepção unitária com que a
grande revolução pretendia liquidar os
particularismos regionais identificados
até então com o poder da aristocracia.
Nesse sentido, era o federalismo da
Constituição americana que se impunha
naturalmente à sua preferência. Nos primeiros dias do movimento, já o cônsul
inglês informava ao "Foreign Office" que
se tencionava organizar o novo regime
de acordo com "o modelo dos Estados
Unidos da América", isto é, segundo o figurino federativo. "Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará devem formar
uma só república, devendo-se edificar
uma cidade central para capital", escrevia o padre João Ribeiro.
A brevidade da insurreição não deu
tempo ao processo constituinte, que ficou truncado, sem que se concluísse
nem sequer a primeira etapa. O governo
revolucionário tivera duas alternativas.
A primeira consistia, como sustentará o
ex-revolucionário monsenhor Muniz
Tavares, em seguir o exemplo das 13 colônias norte-americanas, convocando
imediatamente um corpo constituinte e
legislativo, à maneira do Congresso Continental norte-americano, de modo a
formar "uma liga federal", para prover a
segurança externa. Destarte, como nos
Estados Unidos, o processo constituinte
teria caminhado paralelamente tanto ao
nível das ex-colônias, transformadas em
Estados, quanto entre elas, reunidas primeiro em confederação e posteriormente em federação.
A essa primeira opção corresponderia
o projeto, cujo texto é ignorado, redigido
por Pereira Caldas, mas cuja existência
se conhece pela defesa do próprio Caldas
perante a Alçada. Acusado pelo dicionarista Morais Silva de elaborar projeto de
lei constitucional, esclarecia Caldas havê-lo efetivamente mostrado a Morais,
sem que tivesse sido oficialmente encarregado da tarefa. Ocorrera apenas que,
confidenciando-lhe certo membro da
junta a esperança de que Caldas fosse o
Benjamin Franklin de 17, ele lhe retrucara não dispor da sabedoria do americano, ocasião em que lhe fora mostrado o
"Livro das Constituições" que o mesmo
Franklin compusera para as colônias da
América inglesa.
O governo provisório optou, contudo,
pela segunda alternativa mais prudente,
do projeto de lei orgânica de 29 de março
de 1817, atribuído a frei Caneca, mas na
realidade da lavra de Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Tratava-se aqui exclusivamente do estabelecimento de uma
Constituição pernambucana, a ser aprovada por assembléia a ser convocada tão
logo obtida a adesão de todas as comarcas da capitania. Até a vigência da Carta
Magna, o governo provisório enfeixaria
os poderes Executivo e Legislativo. Como assinalou Oliveira Lima, a lei de 29 de
março forma "apenas um conjunto de
disposições constitucionais transitórias", representando no máximo as bases
da futura Constituição provincial.
A junta provisória deve ter calculado
que, distando a revolução de estar firmada em Pernambuco, pois as comarcas do
sertão e a de Alagoas opunham-lhe resistência, e à espera de que a nova situação
também se consolidasse nas três capitanias ao norte, conviria dar tempo ao
tempo. A convocação da Constituinte
pernambucana, a eleição dos deputados
e sua reunião no Recife poderiam levar
até um ano, e a discussão e votação do
texto, até três. Tal estimativa explica que
a lei orgânica vigeria até a entrada em vigor da Constituição, mas que, no caso de
qualquer dos prazos não ser cumprido, o
governo provisório ficaria automaticamente dissolvido, entrando "o povo no
exercício da soberania para o delegar a
quem melhor cumpra os fins da sua delegação".
Roma e Estados Unidos
Afinal de
contas, como Roma e Pavia, tampouco
os Estados Unidos se haviam feito num
dia, mesmo quando se leva em conta que
as colônias americanas dispunham de
uma experiência de governo representativo graças às assembléias coloniais (o
que não era o caso no Brasil, onde o poder local era apenas exercido pelas Câmaras Municipais dispersas no seu isolamento rural); e que, antes de 1763, a administração do Império Britânico, como
era agora o caso do Reino Unido, podia
ser considerada federal de fato, embora
não de jure, razão, aliás, pela qual os
"founding fathers" (pais fundadores)
pensaram inicialmente não em termos
de independência, mas de uma Constituição federal para o Império Britânico.
Os homens de 17, com os olhos voltados para o norte do continente, se bem
não dispensassem a cenografia revolucionária da França, deviam estar conscientes das delongas verificadas entre os que eles chamavam "ingleses americanos". O primeiro Congresso Continental
reuniu-se em setembro de 1774, a declaração de independência data de julho de
1776 e o Massachusetts, malgrado contar
com Congresso próprio desde outubro
de 1774, somente seis anos depois aprovara sua Constituição estadual. A primeira Constituição americana, os "Articles of Confederation" (Artigos da Confederação), começou a ser discutida em
julho de 1776, sendo adotada em novembro de 1777, para entrar em vigor em
março de 1781. Por sua vez, a elaboração
da Constituição federal só se concluiu
em setembro de 1787 e sua ratificação teve ainda de esperar dois anos.
O fato de que os Estados Unidos fossem a única nação de quem os revolucionários de 17 podiam razoavelmente esperar auxílio material e político, a Inglaterra sendo suspeita devido à sua velha
aliança com os Braganças, e a França, pela restauração dos Bourbons, explica
igualmente a preferência pelos "ingleses
americanos". Na sua história do movimento, acentuava Muniz Tavares que a
influência americana se devia à "gloriosa
fortuna" de que gozavam, "a sua segurança e ordem legal", que os faziam especialmente atraentes aos "pernambucanos que anelavam o melhoramento da
pátria". É que, "ainda não bem versados
no estudo da política (mas a reflexão
agora é a do revolucionário convertido
tardiamente à causa da ordem), eles imaginavam que qualquer instituição caracterizada útil era aplicável a todos os povos, sem se lembrar que com facilidade
se pode transplantar a lei, mas não o espírito da nação; não pensavam que no
Brasil existia um trono e ocupado por
um rei naturalmente bom, circunstância
que muito diversificava a posição respectiva", isto é, que muito nos diferenciaria
da grande república do norte. Por conseguinte, a revolução equivocava-se quando julgava obter o apoio norte-americano sem levar em consideração que "o espírito desta nação é mercantil; os mercantes são avaros; o seu governo é tanto
livre quanto prudente".
Mas, se a independência americana tinha com o que atrair o punhado de elitistas que discutiam fórmulas constitucionais incompreensíveis para a esmagadora maioria dos seus concidadãos, a cenografia da grande revolução era passível
de inflamar imaginações brasileiras, por
ser bem mais rica e atraente que a da sua
pragmática antecessora, marcada pela
secura emocional e pela carência do senso de espetáculo desses anglo-americanos. Foi assim que Domingos José Martins e sua mulher incitaram as senhoras
da sociedade a se descartarem dos seus
barrocos estilos de penteado lusitano,
que não condiziam com a "austeridade
republicana", sugerindo-lhes que "fizessem cortar os seus cabelos" à maneira de
Tito, ressuscitada pela grande revolução
na sua busca de precedentes romanos.
A moda pegou; e, após o fracasso da
República, os agentes da coroa ainda tiveram de reprimi-la. O próprio suicídio
do padre João Ribeiro parece um gesto
sugerido pelos modelos estóicos da Antiguidade clássica requentados pela Revolução Francesa, não sendo em todo caso
de inspiração cristã.
No Brasil, o que deveria ter sido nossa revolução nacional, a Independência, foi,
na realidade, uma contra-revolução comandada do Rio
por um príncipe
e empreitada por
uma elite de
altos funcionários
públicos ameaçada
pelas cortes de Lisboa
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Robespierre pernambucano
Cabe mencionar também a inclinação a estabelecer comparações desvanecedoras
entre os homens da hora e os personagens franceses, como o lusitano a quem,
devido ao radicalismo das medidas que
propunha contra seus compatriotas, foi
dado o apelido de "o Robespierre de Pernambuco".
Entre os oficiais, Pedroso e Teotônio
Jorge copiaram os comportamentos da
época do Terror, ordenando fuzilamentos, sem conhecimento do governo provisório, com o argumento de que "as revoluções se sustentam de sangue". O velho campo do Erário, rebatizado de campo da Honra, tornou-se o equivalente
funcional do Campo de Marte parisiense, de vez que ali se realizavam as festividades revolucionárias, a primeira vez em
que se conferiu conotação cívica às designações de logradouros públicos, numa cidade cujas ruas ainda se chamavam
prosaica e lusitanamente de beco das
Miudinhas ou de corredor do Bispo.
O governo também proscreveu, por
considerá-los servis, certos costumes patriarcais que acentuavam as distâncias
entre classes ou entre avós, pais e filhos.
Assim é que o castiço tratamento de vossa mercê foi substituído pelo de vós; e
que em lugar de senhor se dizia patriota.
Muniz Tavares, que publicou sua história da revolução quando seu conterrâneo, o regente Araújo Lima, dera ao regime a guinada conservadora de 1837, considerará retrospectivamente que semelhante política representara um imperdoável equívoco, pois, se "a igualdade
em presença da lei é base da prosperidade de um Estado, em presença das pessoas é o germe da anarquia e dissolução
social"; e, se os franceses haviam adotado o "tu" num momento de paroxismo
revolucionário, logo o suprimiriam, sem
que, portanto, se tornassem menos livres. Naturalmente proibidas foram a
Cruz da Ordem de Cristo e outras condecorações; e, quando os oficiais mais graduados do Exército arrancaram as armas
reais que decoravam suas barretinas, a
tropa imitou espontânea e entusiasticamente o exemplo.
Escusado assinalar que a intoxicação
ideológica com os precedentes franceses
antedatou de muito a eclosão do movimento revolucionário. Basta lembrar a
esse respeito que a residência recifense
de um dos seus corifeus, o Cabugá, que
como representante da república pernambucana seguirá para os Estados Unidos, onde se deixará ficar mesmo após a
anistia de 1821, se achava não só ornada,
diz o padre Dias Martins, que a frequentou, "com delicados painéis em que se
viam retratados os varões mais insignes
das Revoluções Francesa e Inglesa", mas
continha, "nas suas estantes, os livros
que mais encausticamente referiam os
princípios e vantagens da liberdade". "A
consultar uns e outros (aduz o cronista)
concorriam personagens de toda a jerarquia", os quais eram ademais "regalados
com profusos e delicados banquetes".
Para muitos dos republicanos de 17, o
mimetismo revolucionário também terá
operado como uma compensação pelo
fato de existirem limitações muito concretas à ação revolucionária, ao menos
aquela de que eles se haviam impregnado mediante a leitura da história da grande revolução.
Não se podia reeditar em Pernambuco
o "beau geste" da Assembléia Nacional
ao reconhecer os direitos políticos dos
africanos de São Domingos, a aspiração
de igualdade democrática sendo incompatível com uma sociedade escravocrata,
de cujo excedente os revolucionários
também viviam, embora essa incompatibilidade tenda a ser exagerada, como
indica o precedente norte-americano entre a independência e a Guerra de Secessão. Tampouco se podia contrafazer a
convenção no tocante às relações entre o
Estado e a Igreja, de vez que da liderança
de 17 participava conspicuamente a elite
saída do seminário de Olinda. Em matéria religiosa, 17 não foi apenas conformista, mas buscou ativamente mobilizar
o sentimento católico de uma população
previsivelmente desconfiada dos protestos de ortodoxia religiosa de um regime
que abolira a figura do rei.
Nem havia aristocracia local, no sentido jurídico da palavra, encarnada em títulos de nobreza, a ser combatida em nome de um Terceiro Estado que englobava quase todo mundo, à exceção dos escravos. É certo que, como observava Muniz Tavares, "três ou quatro casas (isto é,
famílias) em vão aspiravam à homenagem por velha tradição", mas, se aduza,
seus varões estavam certamente ao lado
da revolução, como o morgado do Cabo,
os Cavalcanti de Albuquerque ou os Carneiro da Cunha. Por fim, as grandes fortunas não sobreviviam ao longo prazo,
de vez que eram logo devoradas pelas regras sucessórias.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de,
entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil
-Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.
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