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Ensaio revê os cem anos em que o homem cometeu as maiores atrocidades de sua história
O pior dos séculos
Steven Pinker
especial para "The NYT Book Review"
A
barbárie de modo algum foi exclusividade dos últimos cem
anos", diz Jonathan Glover,
"mas "ainda" é verdade que a
maior parte da história do século 20 foi
uma surpresa muito desagradável". Este
foi o século de Passchendaele, Dresden,
Nanquim, Nagasaki e Ruanda; da "solução final", do gulag, do "grande salto para a frente", do "ano zero" e da limpeza
étnica -palavras que representam matanças de milhares ou milhões de pessoas e um sofrimento incompreensível.
O progresso tecnológico que inspirou o
otimismo dos vitorianos também representou a multiplicação dos efeitos da
maldade à moda antiga e da criminalidade imbecil.
Glover é um filósofo moral cujo carro-chefe é o dilema moral hipotético (um
bonde está descontrolado. Cinco trabalhadores à sua frente não o vêem e serão
mortos se ele continuar. Você pode acionar uma alavanca e salvá-los, mas causará a morte de uma pessoa parada no
ponto. O que fazer?). Nessa "história moral do século 20", o autor habilmente
analisa alguns de seus dilemas morais
verdadeiros e terríveis. O bombardeio de
civis é justificável se servir para encurtar
uma guerra horrível? Deveriam os aliados ter aceitado a oferta de Adolf Eichmann (1906-1962) para trocar 1 milhão
de judeus por 10 mil caminhões? Que risco para si mesma e para sua família uma
pessoa moral deve assumir para se opor
a um regime aterrorizante?
Mas, no que se refere às opções feitas
por Hitler, Stálin, Mao, Pol Pot, Milosevic e seus asseclas, os dilemas morais são
secundários. Glover quer que sua profissão nos ajude a entender como os grandes males podem ocorrer e como podem
ser evitados. Isso exige não apenas filosofia, mas também história e psicologia.
A maior parte de "Humanity" é história: um relato das principais atrocidades
do século. Com detalhes novelescos, Glover descreve as dilacerantes realidades
por trás das guerras justas e dos projetos
sociais utópicos. As descrições são assustadoras, às vezes insuportáveis. Por mais
que você ache que o século foi ruim para
os direitos humanos, Glover o convencerá de que foi pior. O seguinte trecho, embora não mencione a morte e o sangue
de outros, sintetiza para mim a maneira
como os movimentos políticos deste século conseguiram obliterar tudo o que
valorizamos na vida:
"Um etnólogo francês capturado pelo
Khmer Vermelho (...) fez amizade com
uma menina de cerca de três anos, cujo
pai fora levado provavelmente para a
morte. Ele brincava com ela e criou afeto
pela menina, mas esta foi obrigada a frequentar aulas de doutrinação. Sua reação sorridente a ele foi substituída pelo
silêncio. Certa noite, olhando-o no rosto,
a menina experimentou enfiar o dedo
entre o tornozelo dele e a corda que o
amarrava. Ao ver que conseguia, chamou o guarda para apertar as cordas".
Natureza humana
A história de
Glover não é original, é claro, mas sua
psicologia, sim, de forma dramática. A
visão predominante entre muitos intelectuais é a de que o mal nada tem a ver
com a natureza humana e deve ser atribuído às instituições políticas. Numa
época em que as cinzas de 35 milhões de
vítimas da Segunda Guerra Mundial ainda estavam mornas (ou radioativas), o
antropólogo Ashley Montagu pediu que
a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura)
declarasse que "as pesquisas biológicas
dão apoio à ética da fraternidade universal". Em 1986 a Unesco e várias sociedades eruditas decidiram que "é cientificamente incorreto dizer que a guerra ou
qualquer outro comportamento violento está geneticamente programado na
natureza humana". Os cientistas que discordaram dessa opinião adocicada foram boicotados, insultados e comparados aos nazistas.
Jonathan Glover não
absolve nossa espécie
tranquilamente. Ele mostra que os claros padrões
de crueldade e frieza surgem repetidamente na
história, atravessando
épocas, lugares e sistemas
políticos. Ele afirma que a
natureza humana inclui
não só os impulsos destrutivos, mas "recursos morais": impulsos humanos que às vezes contrariam as
intenções dos monstros. O rumo da história e nossas esperanças são moldados
pelos embates entre esses impulsos em
mentes incontáveis.
A grande contribuição de "Humanity"
é uma dissecação desses motivos. Não se
trata, como alguns poderiam temer, de
uma tentativa de reduzir a história à psicologia. Glover deixa claro que os motivos são reações à grande comunidade e
se manifestam de diversas formas nos diferentes contextos sociais e políticos.
Eis alguns dos monstros: o interesse
próprio puro e amoral. O sadismo e a
emoção do campo de batalha. O tribalismo, que eleva o grupo acima do indivíduo e transforma a inimizade pessoal em
disputa, guerra e genocídio. A ideologia,
que pode convencer as pessoas de que
uma luta entre grupos -"raças" para os
nazistas, "classes" para os marxistas- é
inevitável e necessária para o progresso.
Simpatia e amor-próprio
Glover
vê dois recursos morais equivalentes. As
reações humanas -simpatia, empatia e
respeito- ocasionalmente se manifestam em pessoas que cometem atos viciosos. Às vezes elas são despertadas pelo
intelecto. O navegador britânico na Segunda Guerra que chegou em segurança
depois de um bombardeio diz para o piloto: "E os pobres coitados debaixo dessas bombas?". Os soldados entrincheirados dizem: "Nós não queremos matá-los
e vocês não querem nos matar, então por
que atirar?". Noutras ocasiões, elas são
despertadas pelos sinais tangíveis da humanidade do alvo. Um soldado vê um
homem que foge segurando as calças. O
detalhe corriqueiro transforma o "fascista" em uma "pessoa", e o soldado perde a
vontade de atirar.
O outro recurso é a
identidade moral, o
amor-próprio. As pessoas
resistem à pressão para
prejudicar outras quando
ela conflita com o modo
como elas querem ver a si
mesmas. A identidade
moral pode vir da religião, da cultura, de hábitos profissionais, de um
humanismo cosmopolita ou às vezes é
apenas uma voz insistente dentro de nós.
Na análise de Jonathan Glover, os horrores do século ocorreram quando os recursos morais foram deliberada ou acidentalmente desarmados. Repetidamente ele descobre que as atrocidades
são acompanhadas de táticas de humilhação e desumanização -apelidos pejorativos, condições degradantes, vestimenta humilhante- que acionam um
interruptor mental e reclassificam o outro de "pessoa" para "não-pessoa", tornando tão fácil torturá-lo ou matá-lo
quanto ferver uma lagosta viva.
A simpatia pode ser desligada pela distância física das vítimas, como num
bombardeio aéreo e na guerra por controle remoto. Também pode ser suprimida pela simples força de vontade.
Decência mínima
Assim como a
simpatia, o recurso moral da identidade
pode ser insidiosamente desgastado. A
maioria das pessoas calibra sua consciência segundo um nível de decência
mínima esperado das pessoas em seu
grupo social ou sua cultura. Quando o
nível decai, as pessoas são capazes de cometer crimes horríveis com a confiança
de saber que "todo mundo faz isso".
Ao discutir temas de tal gravidade,
muitos autores seriam tentados a exibir
uma superioridade moral, mas não é o
caso de Glover. Embora "Humanity" seja um livro apaixonado, a voz é medida e
elegante, os argumentos justos e cuidadosamente pensados. Há também momentos de humor negro. O retrato mordaz do filósofo nazista Martin Heidegger
(1889-1976) deveria ser leitura obrigatória para muitos acadêmicos que ainda o
levam a sério.
Glover assumiu um assunto temível,
que às vezes levou a melhor sobre ele. Os
temas vêm e vão de modo imprevisível;
argumentos às vezes se dissipam sem solução. Referências literárias importantes
em filosofia moral política e em psicologia social e evolucionária mal são citadas.
Não importa. É um livro extraordinário:
brilhante, assustador e de uma importância única. Gosto de pensar que alguns
dos líderes e seguidores de amanhã lerão
"Humanity".
Steven Pinker é professor de psicologia no MIT
(Massachusetts Institute of Technology) e autor de
"Como a Mente Funciona" (Cia. das Letras).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Humanity
464 págs., US$ 27,95
de Jonathan Glover. Yale University Press (EUA).
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria
Cultura (tel. 0/xx/11/ 285-4033), e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).
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