São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2000

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Ensaio revê os cem anos em que o homem cometeu as maiores atrocidades de sua história
O pior dos séculos

Steven Pinker
especial para "The NYT Book Review"

A barbárie de modo algum foi exclusividade dos últimos cem anos", diz Jonathan Glover, "mas "ainda" é verdade que a maior parte da história do século 20 foi uma surpresa muito desagradável". Este foi o século de Passchendaele, Dresden, Nanquim, Nagasaki e Ruanda; da "solução final", do gulag, do "grande salto para a frente", do "ano zero" e da limpeza étnica -palavras que representam matanças de milhares ou milhões de pessoas e um sofrimento incompreensível. O progresso tecnológico que inspirou o otimismo dos vitorianos também representou a multiplicação dos efeitos da maldade à moda antiga e da criminalidade imbecil. Glover é um filósofo moral cujo carro-chefe é o dilema moral hipotético (um bonde está descontrolado. Cinco trabalhadores à sua frente não o vêem e serão mortos se ele continuar. Você pode acionar uma alavanca e salvá-los, mas causará a morte de uma pessoa parada no ponto. O que fazer?). Nessa "história moral do século 20", o autor habilmente analisa alguns de seus dilemas morais verdadeiros e terríveis. O bombardeio de civis é justificável se servir para encurtar uma guerra horrível? Deveriam os aliados ter aceitado a oferta de Adolf Eichmann (1906-1962) para trocar 1 milhão de judeus por 10 mil caminhões? Que risco para si mesma e para sua família uma pessoa moral deve assumir para se opor a um regime aterrorizante? Mas, no que se refere às opções feitas por Hitler, Stálin, Mao, Pol Pot, Milosevic e seus asseclas, os dilemas morais são secundários. Glover quer que sua profissão nos ajude a entender como os grandes males podem ocorrer e como podem ser evitados. Isso exige não apenas filosofia, mas também história e psicologia. A maior parte de "Humanity" é história: um relato das principais atrocidades do século. Com detalhes novelescos, Glover descreve as dilacerantes realidades por trás das guerras justas e dos projetos sociais utópicos. As descrições são assustadoras, às vezes insuportáveis. Por mais que você ache que o século foi ruim para os direitos humanos, Glover o convencerá de que foi pior. O seguinte trecho, embora não mencione a morte e o sangue de outros, sintetiza para mim a maneira como os movimentos políticos deste século conseguiram obliterar tudo o que valorizamos na vida: "Um etnólogo francês capturado pelo Khmer Vermelho (...) fez amizade com uma menina de cerca de três anos, cujo pai fora levado provavelmente para a morte. Ele brincava com ela e criou afeto pela menina, mas esta foi obrigada a frequentar aulas de doutrinação. Sua reação sorridente a ele foi substituída pelo silêncio. Certa noite, olhando-o no rosto, a menina experimentou enfiar o dedo entre o tornozelo dele e a corda que o amarrava. Ao ver que conseguia, chamou o guarda para apertar as cordas".

Natureza humana
A história de Glover não é original, é claro, mas sua psicologia, sim, de forma dramática. A visão predominante entre muitos intelectuais é a de que o mal nada tem a ver com a natureza humana e deve ser atribuído às instituições políticas. Numa época em que as cinzas de 35 milhões de vítimas da Segunda Guerra Mundial ainda estavam mornas (ou radioativas), o antropólogo Ashley Montagu pediu que a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) declarasse que "as pesquisas biológicas dão apoio à ética da fraternidade universal". Em 1986 a Unesco e várias sociedades eruditas decidiram que "é cientificamente incorreto dizer que a guerra ou qualquer outro comportamento violento está geneticamente programado na natureza humana". Os cientistas que discordaram dessa opinião adocicada foram boicotados, insultados e comparados aos nazistas. Jonathan Glover não absolve nossa espécie tranquilamente. Ele mostra que os claros padrões de crueldade e frieza surgem repetidamente na história, atravessando épocas, lugares e sistemas políticos. Ele afirma que a natureza humana inclui não só os impulsos destrutivos, mas "recursos morais": impulsos humanos que às vezes contrariam as intenções dos monstros. O rumo da história e nossas esperanças são moldados pelos embates entre esses impulsos em mentes incontáveis. A grande contribuição de "Humanity" é uma dissecação desses motivos. Não se trata, como alguns poderiam temer, de uma tentativa de reduzir a história à psicologia. Glover deixa claro que os motivos são reações à grande comunidade e se manifestam de diversas formas nos diferentes contextos sociais e políticos. Eis alguns dos monstros: o interesse próprio puro e amoral. O sadismo e a emoção do campo de batalha. O tribalismo, que eleva o grupo acima do indivíduo e transforma a inimizade pessoal em disputa, guerra e genocídio. A ideologia, que pode convencer as pessoas de que uma luta entre grupos -"raças" para os nazistas, "classes" para os marxistas- é inevitável e necessária para o progresso.

Simpatia e amor-próprio
Glover vê dois recursos morais equivalentes. As reações humanas -simpatia, empatia e respeito- ocasionalmente se manifestam em pessoas que cometem atos viciosos. Às vezes elas são despertadas pelo intelecto. O navegador britânico na Segunda Guerra que chegou em segurança depois de um bombardeio diz para o piloto: "E os pobres coitados debaixo dessas bombas?". Os soldados entrincheirados dizem: "Nós não queremos matá-los e vocês não querem nos matar, então por que atirar?". Noutras ocasiões, elas são despertadas pelos sinais tangíveis da humanidade do alvo. Um soldado vê um homem que foge segurando as calças. O detalhe corriqueiro transforma o "fascista" em uma "pessoa", e o soldado perde a vontade de atirar. O outro recurso é a identidade moral, o amor-próprio. As pessoas resistem à pressão para prejudicar outras quando ela conflita com o modo como elas querem ver a si mesmas. A identidade moral pode vir da religião, da cultura, de hábitos profissionais, de um humanismo cosmopolita ou às vezes é apenas uma voz insistente dentro de nós. Na análise de Jonathan Glover, os horrores do século ocorreram quando os recursos morais foram deliberada ou acidentalmente desarmados. Repetidamente ele descobre que as atrocidades são acompanhadas de táticas de humilhação e desumanização -apelidos pejorativos, condições degradantes, vestimenta humilhante- que acionam um interruptor mental e reclassificam o outro de "pessoa" para "não-pessoa", tornando tão fácil torturá-lo ou matá-lo quanto ferver uma lagosta viva. A simpatia pode ser desligada pela distância física das vítimas, como num bombardeio aéreo e na guerra por controle remoto. Também pode ser suprimida pela simples força de vontade.

Decência mínima
Assim como a simpatia, o recurso moral da identidade pode ser insidiosamente desgastado. A maioria das pessoas calibra sua consciência segundo um nível de decência mínima esperado das pessoas em seu grupo social ou sua cultura. Quando o nível decai, as pessoas são capazes de cometer crimes horríveis com a confiança de saber que "todo mundo faz isso".
Ao discutir temas de tal gravidade, muitos autores seriam tentados a exibir uma superioridade moral, mas não é o caso de Glover. Embora "Humanity" seja um livro apaixonado, a voz é medida e elegante, os argumentos justos e cuidadosamente pensados. Há também momentos de humor negro. O retrato mordaz do filósofo nazista Martin Heidegger (1889-1976) deveria ser leitura obrigatória para muitos acadêmicos que ainda o levam a sério.
Glover assumiu um assunto temível, que às vezes levou a melhor sobre ele. Os temas vêm e vão de modo imprevisível; argumentos às vezes se dissipam sem solução. Referências literárias importantes em filosofia moral política e em psicologia social e evolucionária mal são citadas. Não importa. É um livro extraordinário: brilhante, assustador e de uma importância única. Gosto de pensar que alguns dos líderes e seguidores de amanhã lerão "Humanity".


Steven Pinker é professor de psicologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e autor de "Como a Mente Funciona" (Cia. das Letras).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Humanity
464 págs., US$ 27,95 de Jonathan Glover. Yale University Press (EUA).

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 285-4033), e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).



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