São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A origem da fórmula Terceira Via é pouco ilustre: foi empregada pelo fascismo para indicar um projeto que se pretendia equidistante do liberalismo e do comunismo
Fantasia da Terceita Via

Reuters - 30.nov.99
Policiais lançam gás lacrimogênio durante manifestação contra a 3ª Conferência Ministerial da OMC, em Seattle (EUA)


MARILENA CHAUI

Leitores de jornais e telespectadores devem estar um tanto perplexos. De fato, no intervalo de 15 dias puderam presenciar um fenômeno desconcertante, qual seja, a passagem da confraria progressista de Florença à guerra de Seattle (e não apenas a guerra das ruas, entre manifestantes e Guarda Nacional, mas a guerra interna entre os participantes do evento). Que se passou entre a pastoral da Terceira Via e a belicosidade da Rodada do Milênio? Sabe-se que, para muita gente, a política contemporânea se reduz à marquetagem. Foi um golpe de mestre de grande marqueteiro realizar uma reunião de cúpula sobre a Terceira Via em Florença. Como escapar da simbolização evidente? Foi em Florença, dirigindo-se ao ocupante "della Signoria", que Maquiavel consolidou a Renascença política e deu origem ao pensamento político moderno com a figura do Príncipe Novo. Nada mais adequado, portanto, aos que pretendem propor o projeto político do próximo século do que fazê-lo na terra de Maquiavel. Todavia o motivo simbólico foi duplo: além desse primeiro, a escolha de Florença visou também neutralizar o encontro dos partidos socialistas europeus, realizado em Milão em abril deste ano, do qual emergiu um Manifesto Europeu Socialista, responsável pelas derrotas eleitorais de Blair e Schroeder nas eleições européias de junho de 1999.

Prosa e verso
O lirismo prevaleceu na cerimônia florentina de 21 de novembro de 1999. Falou-se em valores: valor da vida humana, valor do meio ambiente, valor da família, valor do indivíduo consciente e responsável, valor da ética e da liberdade, valor da justiça social, valor da ciência e sobretudo valor da cultura (ou do multiculturalismo). A pregação de valores conseguiu a proeza de não falar uma única vez do valor propriamente dito, isto é, do capital e da relação capital-trabalho. Aliás, no vocabulário da Terceira Via, o conceito de trabalho desapareceu, ficando em seu lugar ora o termo "emprego", ora o termo "mercado". Isso explica um dos pontos altos alcançados pela edificação pastoral de 21 de novembro: Blair, secundado por Clinton, declarou que os oficiantes da Terceira Via desejam uma economia de mercado e não desejam os valores da sociedade de mercado. Uma frase, como disse várias vezes Marx (exímio analista de fraseologias), faz sentido quando colocada em seu contexto. Qual o contexto em que a frase "economia de mercado sem sociedade de mercado" faz sentido? Exatamente no contexto de um projeto que pretende, no dizer de um de seus idealizadores, Anthony Giddens, fazer uma economia de centro e uma política de esquerda, ou seja, manter o núcleo duro da materialidade capitalista, acrescido dos valores socialistas: o bolo é o mercado; a cobertura confeitada são os valores socialistas. Ora, já vimos essa peça antes (na primeira vez como tragédia, na segunda como farsa e agora, enfim, como chanchada): enquanto a burguesia fala suas frases em prosa, os intelectuais ditos progressistas declamam a glosa em verso. A fraseologia poética de Florença só faz sentido porque os que de verdade mandam no mundo falam em prosa. A prosa foi falada em Seattle. Não admira, portanto, que tenhamos passado da polifonia de Florença à música atonal e dissonante do minimalismo de Seattle. Fomos levados dos valores ao valor.

A expressão Terceira Via
Parece haver um problema de paternidade no ressurgimento da expressão Terceira Via: alguns pensam que foi usada pela primeira vez por Clinton, outros acham que foi introduzida nos discursos de Tony Blair por conselho de seu mentor, o sociólogo Anthony Giddens, que, segundo os jornais brasileiros, deixou de ser apenas o guru de Blair para tornar-se leitura obrigatória dos assessores de FHC.
A origem dessa fórmula, como reconhecem seus atuais proponentes, é pouco ilustre: foi empregada pelo fascismo para indicar um projeto e um programa econômico, social e político que se pretendia equidistante do liberalismo e do socialismo/comunismo. Reapareceu nos anos 40 nos discursos de Perón e consolidou o peronismo. Em outras palavras, outrora como agora, a idéia de Terceira Via tem a pretensão de colocar-se além da direita liberal e da esquerda socialista-comunista. Os fascistas, de fato, foram muito além. O peronismo, nem tanto. E os atuais proponentes da Terceira Via simplesmente ficam entre ambas, imaginando que ultrapassaram a contradição de ambas.
Mas se, apesar da história infamante da expressão, ela é agora retomada é porque, antes do fascismo, ela era o pressuposto tácito da social-democracia.
De fato, o núcleo duro do pensamento social-democrata, desde Bernstein, é que o socialismo (ou a propriedade coletiva dos meios de produção) pode ser e deve ser alcançado por reformas progressivas impostas ao capitalismo (ou a propriedade privada dos meios de produção), e não por meio de uma revolução. Entre o capitalismo e a revolução intercala-se um terceiro caminho, o da reforma, que humaniza o capitalismo e acumula forças para passar pacificamente ao socialismo.
Esse pressuposto tornou-se realidade quando a social-democracia passou a operar com as idéias econômicas e políticas de Keynes e estabeleceu uma distinção entre economia liberal de mercado e economia planejada sob a direção do Estado. Com essa idéia, a social-democracia poderia demarcar sua diferença diante do fascismo e do comunismo soviético.
De fato, o fascismo imaginara o planejamento econômico como obra de um Estado policial-militar que propunha a política de colaboração das classes por meio da organização corporativa da sociedade, isto é, da distribuição das classes em corporações da agricultura, industria, comércio e trabalho, cujas relações eram definidas e mediadas pelo Estado.
Por seu turno, o comunismo soviético propunha o planejamento econômico também como obra de um Estado forte e totalitário, na medida em que se fazia presente em todas as esferas da sociedade por meio da burocracia do Partido Comunista e do Serviço Secreto e que: 1) se apresentava como o representante da classe trabalhadora; 2) identificava a idéia de propriedade coletiva dos meios de produção com a propriedade estatal dos meios de produção, por meio da nacionalização da agricultura, indústria e comércio; e 3) impusera a coletivização do trabalho, mas não a da riqueza social.
Diferenciando-se dos dois modelos totalitários, a social-democracia, fortemente sustentada por uma base sindical poderosa e ativa, propôs o que viria a ser chamado de Estado de Bem-Estar, no qual o planejamento da economia tinha o Estado como parceiro econômico (na qualidade de definidor de políticas econômicas e sociais) e de regulador das forças do mercado, de maneira a conduzi-las pacífica e progressivamente rumo ao socialismo. Assim, entre a direita reacionária e/ou conservadora liberal e a esquerda revolucionária e/ou totalitária, a social-democracia era a terceira via.
O projeto da economia planejada só foi possível enquanto a acumulação e reprodução do capital se faziam sob a condução do modelo fordista (as grandes fábricas, organizadas em linhas de montagem, com controle de todo o processo produtivo, desde a matéria-prima até a distribuição dos produtos, e sindicatos fortes) e do processo de trabalho taylorista (ou a "gerência científica", encarregada de dividir as classes sociais entre dirigentes, que sabem, e executantes, que não sabem).
Duas crises simultâneas puseram por terra a economia planejada: de um lado, a crise geral do capitalismo nos anos 70 (estagflação, crise do petróleo), e, de outro, a crise do Estado de Bem-Estar (ou a "crise fiscal" do Estado). Essas crises levaram a uma mudança fundamental no modo de acumulação do capital (conhecida como acumulação flexível), que destruiu o modelo fordista-taylorista e abriu o caminho para o que ficaria conhecido como neoliberalismo ou o "fundamentalismo do mercado". A social-democracia parecia ter seus dias contados e só recolhia derrotas eleitorais em toda parte.
Os desastres sociais do neoliberalismo (desemprego, tragédias ecológicas, violência urbana, terrorismo, narcotráfico, desigualdades sociais levadas ao extremo, miséria) e a presença de movimentos sociais por direitos (feminismo, ecologia, direitos civis das minorias, lutas pela redução da jornada de trabalho e pelo emprego) trouxeram a social-democracia de volta. Mas com nova roupagem e o manto da Terceira Via como afirmação explícita.

As eleições britânicas
Assim, a expressão Terceira Via retornou na década de 90, na Inglaterra, com um sentido puramente eleitoral, isto é, o de oferecer uma nova cara ao Partido Trabalhista inglês, fustigado durante 20 anos pelo thatcherismo que, então, agonizava. Politicamente, o eleitorado britânico se via fragmentado e desestruturado pelos excessos do fundamentalismo neoliberal e pela passividade e envelhecimento da social-democracia. Essa situação criava espaço para um vasto contingente de eleitores insatisfeitos com ambos os lados e aos quais era preciso dirigir um discurso eleitoral convincente, que reunisse numa só as idéias de pragmatismo e de modernidade e incluísse os direitos sociais sob o nome de "valores de esquerda". Essa tarefa eleitoral foi facilitada pela queda do Muro de Berlim. De fato, num primeiro momento, a social-democracia não podia comemorar a queda do Muro porque o que se seguiu imediatamente a ela não foi o que os social-democratas esperavam. Que esperavam eles? Que Gorbatchev pusesse a social-democracia em ação na URSS.

O Novo Trabalhismo
O fracasso de Gorbatchev e o rumo tomado pela destruição da URSS, deixaram os social-democratas desarvorados, e tão desarvorados quanto o restante das esquerdas com a desestruturação da classe trabalhadora sob os efeitos do neoliberalismo. Todavia, passado o primeiro impacto, o Novo Trabalhismo inglês transformou a perplexidade em arma: em lugar de considerar que a URSS fora derrotada pelo capitalismo, passou a considerar que fora vencida por não adotar uma Terceira Via, reunindo racionalidade, realismo, modernidade e progresso. A derrota da URSS e o esgotamento do thatcherismo tornaram-se, eleitoralmente, a prova da correção de uma social-democracia renovada.

Único horizonte
Foi possível, então, começar a afirmar que a economia de mercado é criativa, modernizadora e único horizonte histórico do século 21. Tal afirmação partia de três idéias principais:
1) a divisão direita/esquerda não tem sentido, porque só tem sentido numa sociedade bipolar, isto é, na sociedade da Guerra Fria;
2) a divisão direita/esquerda deixa a esquerda cega para os benefícios materiais do capitalismo e a direita cega para a grandeza dos valores socialistas;
3) a reunião desses benefícios e dessa grandeza para formar um novo consenso tem como condição desvincular a idéia de justiça social da idéia de igualdade social e afirmar a prioridade da iniciativa individual como instrumento de progresso coletivo contra o postulado obsoleto de propriedade coletiva dos meios de produção.

Os defensores da Terceira Via confundem a política da Guerra Fria com a divisão de classes posta pelo capitalismo e, como a primeira acabou, acham que a segunda também deve ter acabado


Esse foi o conteúdo eleitoral do chamado Novo Trabalhismo, cujo sucesso desencadeou a teorização posterior da idéia de Terceira Via, que tem como pressuposto básico a harmonia essencial entre o capitalismo (a sociedade de mercado pragmática, criativa, inovadora) e a democracia (os valores da justiça e da individualidade), pois ambos se fundam na prática da competição e desprezam a busca covarde da segurança a qualquer preço (isto é, o Estado de Bem-Estar, agora, e a propriedade coletiva dos meios de produção, amanhã).

O catecismo
A Terceira Via não pretende ser uma simples plataforma eleitoral, mas uma teoria da sociedade e da política contemporâneas, com o fito de organizar a ação política do próximo século.
Em 21 de fevereiro passado, o Mais! publicou um artigo de Anthony Giddens ("A Terceira Via em Cinco Dimensões") que resumia os principais dogmas do catecismo da Terceira Via como proposta de centro-esquerda (em seu livro "A Terceira Via", Ed. Record, o autor admite que esses dois termos são usados como uma concessão ao vocabulário político corrente, uma vez que esquerda, direita e centro, segundo ele, perderam sentido).
Quais são afinal os cinco dogmas da Terceira Via?
a) Política: trata-se de "modernizar o centro", com a aceitação da idéia de justiça social e a rejeição da "política de classes" e da igualdade econômica, procurando apoio em todas as classes sociais e assegurando que o governo seja uma das condições para a expansão e o desenvolvimento da liberdade individual.
b) Economia: trata-se de criar uma "economia mista" que equilibre regulação e desregulação, levando em conta os aspectos não-econômicos da vida social. Cabe ao Estado preservar a competição, quando ameaçada pelo monopólio, mas preservar o monopólio, quando ameaçado pela competição; criar bases institucionais para os mercados, uma vez que estes dependem de grande acumulação de capital que não pode ser feita diretamente pelo mercado; proteger contra a intromissão indesejada do mercado os bens públicos e culturais, assim como proteger as condições físicas e contratuais dos empregados, "já que os trabalhadores não são uma mercadoria como outra qualquer"; saber enfrentar as catástrofes engendradas pelo mercado, estimulando a criação de "empresas responsáveis".
c) Governo: com o fim da Guerra Fria e da "sociedade bipolar", os Estados já não possuem inimigos. Enfrentam problemas. O principal problema para o Estado democrático é o de sua legitimidade, e esta só será reconquistada com uma reforma administrativa que torne o Estado um administrador tão competente como uma grande empresa. Por outro lado, do ponto de vista da democracia, o principal problema é o de não ser suficientemente democrática. O novo Estado democrático precisa democratizar-se e o fará operando por delegação de poder, referendos, plebiscitos, democracia direta nas localidades, transparência nos negócios públicos, em suma, por aumento da participação política com a estratégia de renovação e de incentivo à formação de comunidades solidárias, voltadas sobretudo para os problemas da criminalidade e da desagregação urbana.
d) Nação: tal como pensada e instituída nos séculos passados, a nação não tem sentido no mundo da globalização, mas isso não significa que ela não tenha sentido nenhum. Trata-se, pois, de reinventar a nação num mundo cosmopolita como "força estabilizadora e freio à fragmentação" e como "condição do possível desaparecimento das guerras de grandes proporções entre os Estados". Uma nação moderna moderniza (sic!) sua identidade e tem segurança suficiente em sua soberania para não temer o cosmopolitismo do próximo milênio.
e) Bem-Estar Social: trata-se de corrigir os excessos e efeitos perversos do Estado-Providência (burocracia, comodismo, passividade, safadeza) e reformar o Estado de Bem-Estar, tendo como agentes os indivíduos e outros órgãos, que não o Estado, criadores de riqueza. A reforma reorientará o investimento social do Estado, estabelecendo um equilíbrio entre risco, seguridade e responsabilidade (individual e coletiva) e tendo como pilar o seguinte princípio: "Investir em capital humano e não pagar diretamente os benefícios".
Esse curioso princípio é desenvolvido no livro de Giddens como a substituição da expressão "Estado do Bem-Estar" por "Sociedade do Bem-Estar": o Estado faz parcerias com empresas, sobretudo as do terceiro setor (ou serviços), para a criação de empregos e se desobriga do salário-desemprego; o Estado faz parcerias com empresas de saúde e se desobriga da saúde pública gratuita; o Estado faz parcerias com empresas de educação e se desobriga da educação pública gratuita etc. O Estado, por meio das parcerias, "investe no capital humano" (com empregos, saúde, educação) e se desobriga de pagar diretamente os benefícios, coibindo a preguiça, a ignorância, a doença, a imundície, a safadeza e outros males sociais.
O que significam os cinco dogmas desse catecismo?
Pelo primeiro, como será exaustivamente repetido pelos defensores da Terceira Via, trata-se de abolir da sociedade e da política o conceito de luta de classes, tido como obsoleto com o fim da sociedade bipolar. Em outras palavras, confunde-se a geopolítica da Guerra Fria com a divisão de classes posta pelo capitalismo e, por conseguinte, como a primeira acabou, a segunda também deve ter acabado! Eis porque, nem no artigo publicado pelo Mais! nem em seu livro, Giddens nos explica o que são classes sociais, o que é justiça social e o que é liberdade individual. No livro, a modernização do centro significa forçar a direita a admitir que o Estado tem obrigações sociais, ainda que mínimas.
Pelo segundo, a Terceira Via mantém a prática neoliberal da opção preferencial do investimento dos fundos públicos para o capital, e não para o trabalho, e acrescenta duas pitadas social-democratas, isto é, para lembrar que a mercadoria humana é distinta da mercadoria não-humana e inserir as empresas no universo da responsabilidade moral.

Auto-organização
Pelo terceiro, não se estabelece nenhuma relação entre os dogmas (a), (b) e (c). Com efeito, com os valores políticos propostos e com a economia "mista" proposta, a Terceira Via não encontra aí uma das principais causas dos obstáculos à democracia e, em lugar de tomar esta última como espaço da criação e conservação de direitos e como legitimidade do trabalho das contradições sociopolíticas, a reduz à proteção comunitária dos indivíduos contra os problemas urbanos e a delinquência. E as comunidades não são vistas como pólos de auto-organização social, nem como contrapoderes sociais contra o domínio estatal puro, nem muito menos como formas de expressão das classes sociais e dos grupos, e sim como estratégia estatal para transferência de responsabilidades, estratégia que se apoia na suposição de que as comunidades são aspectos do multiculturalismo e da necessidade do renascimento do espírito cívico! Pelo quarto, nenhuma palavra é dita sobre a diferença entre nação e Estado-nação; também nada é dito sobre a necessidade do capitalismo, em sua fase de consolidação, em possuir enclaves territoriais sob a forma de Estados nacionais e a desaparição dessa necessidade econômica no capitalismo contemporâneo; nenhuma palavra sobre o que poderia ser algo como uma "identidade nacional", quando sabemos que as nações modernas são instituições, isto é, construções históricas determinadas por decretos estatais exigindo a unidade legal e linguística e a defesa das fronteiras. Em suma, assim como existem o raio, o trovão, o rio e a floresta, também existe naturalmente a nação, cabendo apenas modernizar sua identidade. Pelo último dogma, a função da Sociedade de Bem-Estar é dupla: em primeiro lugar, excluir, sem danos aparentes, a idéia de um vínculo necessário entre justiça social e igualdade socioeconômica; em segundo lugar, e como consequência, desobrigar o Estado de lidar com o problema da exclusão e da inclusão de ricos e pobres, pois a exclusão de ambos desestabiliza os governos e a inclusão de ambos é impossível.

Equívoco de base
Traduzindo: excluída a luta de classes e a igualdade socioeconômica, o Estado não precisa enfrentar o perigoso problema da distribuição da renda e pode resolver suas dificuldades pela privatização dos direitos sociais, transformados em serviços sociais regidos pela lógica do mercado. Qual o equívoco de base que compromete a coerência desse ideário? A suposição de que a sociedade de mercado é uma entidade operatória à qual se acrescentam ou se retiram valores, segundo as circunstâncias. Em outras palavras, essa sociedade não é percebida como uma formação social determinada pelo modo de produção capitalista que a regula, legitima e conserva por meio da política e da ideologia. É porque a classe dominante dessa sociedade afirma que o mercado é o lugar de criação e expressão da liberdade individual, que nele são criadas as condições para pensar a igualdade como igualdade de oportunidades e que a justiça social deve ser definida como merecimento nos ganhos e nas perdas pelo comportamento mais eficaz para operar com as regras mercantis, é por afirmações desse tipo (repetidas e interiorizadas pela sociedade inteira) que o modo de produção capitalista não é uma operação econômica à qual se agregam idéias e valores. Ela é uma estruturação da ação e do pensamento dos sujeitos sociais e políticos, e não se pode pretender (como, aliás, sempre pretendeu a social-democracia) que seja possível jogar a água do banho sem jogar a criança junto.

Espetáculo para massas
A crermos no catecismo da Terceira Via, a nação é um dado cultural e não econômico-político, de sorte que a questão da soberania do Estado-nação não pode mais ser tratada como soberania política e como regulação econômica.
Assim sendo, a "globalização" impõe a criação de novas instituições internacionais que se encarreguem das políticas econômicas, sociais e militares que, outrora, estavam a cargo do falecido Estado nacional. Assim, do lado da economia, surgem o Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio), a Comunidade Econômica Européia, o Pacto Andino, o Mercosul, a Organização da Unidade Africana, o Grula etc. A elas cabem as questões do mercado, do desemprego, dos direitos sociais, que devem ser reguladas por um superorganismo, a OMC (Organização Mundial do Comércio). Devem surgir também instituições internacionais que se encarreguem da ecologia, do narcotráfico, do terrorismo e das guerras (tanto internas como externas), uma vez que a Otan (aliança militar ocidental, liderada pelos EUA) e a ONU não parecem suficientes e, sobretudo, são, de fato, desprovidas de poder autônomo.
Qual é, então, o lugar e qual é o papel do Estado-nação? Instituir governos que sejam negociadores dos interesses da comunidade nacional e não pretendam ser representantes do poder nacional ou da soberania nacional, expressões que o capital despojou de significado e de função. Se a nação é a comunidade cultural (língua, religião, costumes), não cabe tratá-la como sociedade, isto é, como divisão interna de classes, como oposição entre grandes e pequenos, como contradição entre ricos e pobres.
Destarte, com o deslocamento da política para o campo internacional, o que é exatamente a política local? De um lado, ela é inócua e irrelevante, pois as questões fundamentais da sociedade não passam por ela -nela se consolida periodicamente o consenso quanto aos interesses que serão internacionalmente negociados.
De outro lado, ela é um espetáculo destinado ao imaginário das massas: diante das incertezas econômicas e políticas, o que passa a valer é a personalidade do político (sua aparência na televisão, sua voz no rádio, sua foto nos jornais, seus hábitos sexuais, sua vida moral, seus amigos).
Cristaliza-se, assim, a ideologia pós-moderna do efêmero, volátil e intimista que destrói as idéias e práticas republicanas e democráticas. Ora, o esvaziamento local da política e o fortalecimento internacional das negociações não produzem o resultado esperado. A guerra de Seattle, tanto dentro como fora da OMC, indica que a contradição entre interesses nacionais é uma contradição de poder e entre poderes locais, regionais e nacionais. Indica, portanto, contradição entre a internacionalização da economia e as formas assumidas pela luta de classes no plano nacional e internacional. É notável ver que a luta entre excluídos e incluídos, que parecia acontecer apenas no campo social nacional, ressurja com força máxima em Seattle, como se viu na divisão espacial das salas dos grupos de discussão, na questão dos subsídios e das tarifas protecionistas e nas cláusulas trabalhistas.
Poderia ser diferente? Como uma ideologia que confunde liberdade com competição, justiça social com desigualdade, argúcia para explorar e dominar com democracia poderia pretender introduzir na barbárie capitalista o consenso e a concórdia, a justiça e a paz? Aliás, desde quando, afora no lirismo poético da Terceira Via, a prosa capitalista teve tais objetivos?


Marilena Chaui é professora do departamento de filosofia da USP, autora de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), entre outros.


Texto Anterior: Quem são
Próximo Texto: + Brasil 500 d.c. - Bento Prado Jr.: Um convite à falsificação
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.