São Paulo, Domingo, 19 de Dezembro de 1999


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Para o historiador inglês, ainda que Hitler e Stálin tenham provocado um número equivalente de mortes, é impossível comparar a natureza do nazismo e do stalinismo
O mais violento dos séculos

Robert Maggiori
do "Libération", em Londres

Para o historiador Eric Hobsbawm, o nosso "breve século" deve ser mais bárbaro do que todos os anteriores. Paradoxalmente, de acordo com ele, isso talvez seja motivo de esperança, uma vez que, "se a humanidade conseguiu sobreviver ao século 20, será capaz de sobreviver a tudo".
Na entrevista a seguir, o autor de "A Era dos Extremos" fala sobre sua relação com o pensamento marxista, sobre a impossibilidade de se comparar os totalitarismos nazista e stalinista e sobre suas expectativas para o futuro.

Qual é o peso da autobiografia em seu trabalho historiográfico?
Evidentemente existe um fator subjetivo bastante forte, pelo simples fato de que eu vivi, como "espectador engajado", a maior parte deste "século curto". Além disso, um livro como "A Era dos Extremos" foi elaborado menos sobre escritos, documentos ou arquivos do que sobre coisas vistas, conversas, experiências vividas. Acho que isso confere uma dimensão adicional à análise do historiador.
O sr. nasceu no ano da Revolução de Outubro, em 1917.
Mas no Egito, não em Moscou. É verdade que o próprio acaso de meu nascimento pode ilustrar a "era dos impérios", que é o título de um de meus livros. Minha mãe veio de uma família judaica burguesa de Viena. Quando se formou no segundo grau, seus pais lhe presentearam com uma viagem ao Egito. Meu pai, filho de imigrantes, é inglês e vem de família bem mais pobre. Foi obrigado a procurar emprego no Império Britânico -no Egito. Assim, foi lá que meus pais se conheceram, antes da Primeira Guerra. Se casaram na Suíça, mas não puderam retornar nem à Áustria nem à Inglaterra, já que os países estavam em guerra. Por isso voltaram ao Egito, onde nasci. Mais tarde minha mãe sentiu saudades de seu país e nos mudamos para Viena.
Em Viena, já se interessava pela política?
Eu não era muito politizado, mas era impossível fugir da política ou do clima nacionalista, anti-semita. É verdade que eu mesmo não sofri com isso. Na Áustria, eu era inglês e não judeu. Devo ter me declarado socialista ou social-democrata já nessa época. Meu pai morreu em 1929, quando eu tinha 12 anos, e minha mãe, quando eu tinha 14. Fui viver com outra parte da família, radicada em Berlim. Foi em Berlim que assumi posições políticas de fato. Era impossível não o fazer: faltavam poucos anos para a ascensão de Hitler, hora do exílio para mim.
O senhor ingressou no Partido Comunista. Esse engajamento político condicionou seus primeiros trabalhos?
Condicionou simplesmente todo o meu interesse pela história! Na Áustria, na Alemanha e mesmo na Inglaterra, o ensino de história no secundário não era exatamente excitante. Quando eu estava no colégio em Berlim, já me declarava comunista, mas não demonstrava nenhum interesse pela história.
Certo dia um professor me fez algumas perguntas e me disse: "Você é um ignorante. Vá à biblioteca e consulte alguma coisa". E foi na biblioteca que encontrei o "Manifesto do Partido Comunista", de Marx e Engels, e também "Socialismo Utópico, Socialismo Científico", de Engels. São obras que inspiram! Para mim, foi a grande descoberta. Isso provavelmente foi determinante para minha escolha, mais tarde, da história como campo profissional e também para minha fidelidade ao marxismo.
Essa fidelidade ainda se mantém?
No fundo, é uma fidelidade a alguma coisa como a concepção materialista da história, que continuo acreditando ser essencial como base de um trabalho histórico. É verdade que são necessárias algumas modificações. Para determinadas épocas, a idéia de que a dinâmica da história depende sobretudo da mudança da base produtiva provavelmente não é muito útil.
Mas para a era da expansão do capitalismo, de sua conquista do mundo, me parece que ela ainda é a metodologia mais útil e que confere uma ordem de prioridade, por assim dizer, à pesquisa. Quanto ao resto do marxismo, tenho bem mais reservas.
Há coisas geniais na análise de Marx, mas há outras que, a meu ver, não são válidas. Acho que é preciso destituir o marxismo de seu elemento utópico e messiânico. Mas, se o senhor me pergunta se posso me considerar marxista, respondo que sim, levando tudo em conta, simplesmente por fidelidade a um mestre que exerceu um papel enorme no meu trabalho. Mas isso não significa uma fidelidade dogmática a qualquer coisa.
Sua reputação de historiador se consolidou porque o senhor sempre levou em conta fatores "subalternos".
No campo da "grande história", sempre procurei explorar o que acontece "por baixo" dos grandes acontecimentos e das grandes decisões. Não digo que isso tenha vínculos orgânicos com o marxismo, mas com a esquerda sim, na medida em que parece lógico que um homem de esquerda procure enxergar como as pessoas comuns viram a história e o papel que desempenharam nela. Aliás, isso tem uma certa importância histórica, na medida em que, antes da Revolução Francesa, é difícil saber o que é "o povo", ou a que se pode dar o nome de "as massas trabalhadoras". Essas massas não exerceram um papel muito ativo ou muito constante na história. É apenas a partir da sociedade burguesa que passa a ser necessário levar em conta diariamente o que elas pensam, saber como se formam suas maneiras de enxergar o mundo. Foi por isso que procurei introduzir essa nova dimensão no campo convencional da história dos movimentos sociais.
O senhor diria que o século foi dominado por dois totalitarismos equivalentes?
Este século não deixou em momento algum de ser bárbaro, em certo sentido mais do que todos os séculos anteriores. E não existem argumentos para defender a barbárie. O que não aceito, mesmo assim, é atribuir essa barbárie generalizada a um ou outro lado. Tomemos o caso do século 17, que também foi bárbaro. Olhando para aquela época hoje, é justo afirmar que as guerras religiosas, as catástrofes da Guerra dos 30 Anos, das guerras espanholas, das guerras de Luís 14 etc. são responsabilidade ou dos católicos ou dos protestantes -como atribuir toda a responsabilidade a um país, a uma ideologia, ao rei da França, ao papa ou à heresia? Não podemos fazer aqui o que fazem advogados num tribunal. Não é assim que as coisas acontecem e são compreendidas.
Mas é comum afirmar que o século foi dominado por dois totalitarismos, o nazista e o stalinista, traçando uma equivalência entre eles. O que senhor acha disso?
Não podemos isolar Hitler ou Stálin de um século que viu algo como 200 milhões de seres humanos serem mortos. Some-se Hitler, some-se Stálin e ainda resta muita coisa. Evidentemente, é preciso condenar todas as intenções assassinas, todas as políticas que já conduziram a massacres. Mas não é assim que se coloca o verdadeiro perigo.
Quando fazemos uma retrospectiva do século 17, podemos afirmar que todas aquelas guerras só causaram perdas; não serviram para nada. Mas será que algum contemporâneo nosso que tenha participado de todos os grandes acontecimentos do século 20 diria a mesma coisa -ou seja, que todos nossos massacres não serviram para nada? Hoje em dia me é impossível acreditar que a luta contra o fascismo, contra Hitler, não tenha sido necessária ou não tenha valido a pena, ou que, pelo fato de que milhões de pessoas morreram nessa luta, não deveríamos ter tomado parte nela como combatentes. Essa questão da "retrospectiva" é terrível para o historiador.
O senhor não respondeu se é possível "identificar" o nazismo e o stalinismo.
É impossível defender o que aconteceu na URSS na época de Stálin. Apesar disso, o mais importante não é saber se Stálin trucidou mais ou menos pessoas do que Hitler. Por mais que ambos os fenômenos sejam inaceitáveis, a natureza deles não é igual. Existem algumas semelhanças, é verdade: são movimentos antiliberais, antidemocráticos, autoritários, ditatoriais. Mas são ditadores que integram tradições intelectuais diferentes e que tiveram objetivos e finalidades diferentes. O objetivo do comunismo, mesmo do pior comunismo, era universalista. O do fascismo -nacionalista, racista- era excluir da humanidade grande parte dos seres humanos, cujo único erro era existir. O comunismo não foi genocida. É verdade que Stálin deportou populações, mas não o fez com o intuito de eliminá-las por completo pelo simples fato de existirem. O suposto paralelo traçado entre uma guerra contra uma classe e a guerra contra uma raça não faz sentido histórico. É claro que é preciso denunciar as catástrofes provocadas pela Rússia soviética, mas não nos esqueçamos de que o gulag se deveu muito à decisão de industrializar com mão-de-obra forçada. Se fosse preciso construir uma indústria de níquel no Ártico, não seria possível fazê-lo sem empregar trabalho forçado. Hoje, tomando uma distância dos fatos, vemos claramente que o custo humano foi insuportável, tão insuportável quanto a escravatura. Mas não é a mesma coisa que uma política sistemática de genocídio ou exclusão de uma parte da humanidade ideal.
Como o senhor vê o futuro?
Com um olhar ao mesmo tempo otimista e pessimista. Otimista na medida em que acho que, se a humanidade conseguiu sobreviver ao século 20, será capaz de sobreviver a tudo! Hoje há três vezes mais pessoas no mundo que vivem melhor, que não morrem como se morria antes, que têm mais chances na vida etc. Nesse sentido, acredito em alguma coisa como o progresso, apesar de o preço pago por isso no século 20 ter sido muito alto. Mas também sou pessimista porque acho que o capitalismo, a máquina que move o mundo, conduz à destruição de todos os tipos de sociedades, ou de sociabilidades, conhecidas no passado. Os teólogos do livre mercado, formados nas escolas de administração de empresas, nos dizem que todas as motivações antigas estão mortas -os direitos, os deveres, a fidelidade, os vínculos- e que a única coisa que resta é a busca da maximização das vantagens do indivíduo.
A meu ver, nem o capitalismo pode funcionar dessa maneira. Acredito que a possibilidade de restabelecer um certo controle existe; se não for usada, acho que o futuro será bastante sombrio. É muito difícil para alguém de minha geração imaginar uma sociedade baseada na incerteza permanente, na precariedade, na busca do benefício individual e nada mais. Antigamente havia a alternativa: "Socialismo ou barbárie". Bem, não houve socialismo.


Tradução de Clara Allain.


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