São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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História contada do ponto de vista dos vencidos ajuda a desmontar mitos sobre a derrota de São Paulo

A revolução de 30 de ponta-cabeça

Reprodução
A rua Líbero Badaró, em São Paulo, durante a revolução de 30


BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Houve um tempo em que era comum dizer que a história é escrita do ponto de vista dos vencedores. Coloco a frase no passado porque, nas últimas décadas, esse viés se alterou pelas mãos de vários historiadores que trataram de acentuar o chamado ponto de vista dos vencidos. A princípio, a noção de vencidos esteve associada aos setores dominados da sociedade ou a heróis -reais ou imaginários- surgidos das classes populares e condenados ao esquecimento pela historiografia oficial. Mas logo a categoria dos "vencidos" passou a incluir um sem-número de grupos sociais e personagens, numa releitura que incluiu, por exemplo, a visão de mundo dos monarquistas, que a Revolução Francesa destronou, ou dos emigrados russos, fugitivos da Revolução de 1917.
Na história do Brasil, há também esse gênero de vencidos, guardadas as diferenças e principalmente as proporções. Um bom exemplo é o dos derrotados pela revolução de outubro de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder. Eles não se confundem com os adversários da República Velha, decepcionados, por esta ou aquela razão, com os rumos tomados pelo Governo Provisório, no pós-30.
Falo dos defensores da antiga ordem, que, ao contrário dos primeiros, aparecem com poucos escritos, na extraordinária produção ensaística dos anos 1930-1937.
Um livro dos mais interessantes, com essa visão, datado do início de 1932, é o de Renato Jardim, figura da elite paulistana, ligado ao Partido Republicano Paulista (PRP) e membro do Tribunal de Contas do Estado. De saída, o título do livro vale por muitas digressões: "A Aventura de Outubro e a Invasão de São Paulo" . A revolução de 30, vista na historiografia como um corte inaugural em nosso processo histórico, é reduzida a um ato irresponsável.
Mais ainda, a metáfora de guerra sintetiza o período entre 1930 e 1932, em que São Paulo esteve nas mãos dos tenentes interventores e quando a cidade conviveu, ou teve de conviver, com as tropas revolucionárias vindas do sul. Essa metáfora traduziu, aliás, o sentimento de muitos paulistas, como se vê, por exemplo, pelo livro de Leven Vampré -"Terra Conquistada"-, escrito antes mesmo da revolução de 1932.
Além do título, vale enfatizar a epígrafe do texto de Jardim, que ocupa toda uma página: "Ave victis"! (salve os vencidos! ), contrapondo-se à locução latina "Vae victis"! (ai dos vencidos!).
Dessa forma, o autor assume expressamente a perspectiva dos derrotados, dos "carcomidos", como se dizia na época, em oposição à geração regeneradora dos vencedores.
Escrito em tom ácido e altamente retórico, o livro é um bom exemplo do gênero "polêmica" que vicejou no Brasil desde o século 19 até anos recentes. Sua repercussão imediata foi grande. A edição esgotou-se em pouco mais de uma semana, e o texto gerou réplicas, protestando contra críticas ao cardeal Leme, aos políticos do Partido Democrático, efêmeros aliados de Vargas etc.

Visão regionalista
Indico aqui os que me parecem ser os pontos mais expressivos do livro. Em primeiro lugar, a visão regionalista, em que São Paulo ganha destaque como modelo de civilização para o restante do Brasil. Por exemplo, diz Jardim que, se os governos do PRP "fossem a orgia, a truculência, o despotismo e a bandalheira", identificadas por seus adversários, São Paulo não teria podido atingir o grau de desenvolvimento econômico que o faz líder da federação e objeto da inveja dos Estados "salvadores".
Depois, há o perfil contrastante entre Washington Luís e Getúlio Vargas, em que se acentuam as múltiplas virtudes do primeiro e os traços extremamente negativos do segundo. Nessas linhas, Washington Luís é o reverso do homem que passou para a história reduzido a uma frase desconstruída em parte -"a questão social é uma questão de polícia"- e Getúlio, "gelatinoso ditador", é, por sua vez, o reverso da edificação mitológica que viria cercar sua figura.
O livro de Jardim vale também como descrição de cenas do cotidiano da cidade, entre 1930 e 1932, vistas sob a ótica de quem assiste ao fim de um mundo no qual estava bem ancorado. Nessas cenas, transparece a crítica aos paulistas que trataram como libertadoras as hostes revolucionárias, para logo arrepender-se amargamente. Assim, a descrição do Triângulo, no centro da cidade, "o predileto trecho da cidade para o "footing" das famílias paulistas", percorrido agora pelos "soldados armados de fuzis, maltrapilhos e sujos, lenço vermelho ao pescoço", acompanhados por rapazes da terra.

Caricato soldado sulino
Ou "a cena carnavalesca" desempenhada por um legionário (referência à Legião Revolucionária tenentista), fardado de cores variegadas e berrantes, chapéu de grandes abas na cabeça e, circundando a copa, o letreiro, em dimensões garrafais, "Legião Bento Gonçalves". Na cena, pois, o herói da Farroupilha gaúcha se transforma em dístico de um caricato soldado sulino.
Ainda, a crítica ao papel de graciosas e respeitáveis, mas ingênuas, senhoritas da sociedade paulista, que, na recém-instituída Casa do Soldado, ou, melhor, casa-salameleque, "entretêm-se horas a fio a servir, ao som da boa música, chá, cigarros e bombons aos invasores". Num relato mais dramático, as depredações praticadas contra a sede do PRP, contra os jornais que apoiavam a antiga situação, contra casas comerciais de legalistas, em meio à fogueira dos móveis jogados na rua e às injúrias de baixo calão. Tudo acompanhado, segundo Jardim, com o olhar de reprovação de alguns estrangeiros prudentemente calados.
Alguém poderia pôr em dúvida o interesse, para os dias de hoje, de um texto sob muitos aspectos ideológico, escrito por uma figura esquecida, como Renato Jardim. Mas, na verdade, ele é um exemplo, entre outros, que reforçam uma constatação mais ampla. Os fatos narrados pelos contemporâneos, mesmo quando apaixonados, assim como as visões diversas dos historiadores formam uma rica tela de aproximações e contrastes que nos convidam a rever mitos ou verdades estabelecidas.

Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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