São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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Contrastes e confrontos

"Imagem e Persuasão" traz ensaios de Argan sobre a arte barroca

MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO

O barroco é difícil. Que clareza se pode esperar de um conceito sob o qual são incluídos artistas tão diversos como Rembrandt e Velázquez, Rubens e Poussin, Bernini e Borromini? Segundo o historiador e crítico de arte Giulio Carlo Argan, só podemos solucionar tal dificuldade se considerarmos o barroco não como um estilo, mas como uma situação -um problema comum ao qual cada artista deu uma resposta singular. Investigar essas respostas constitui o objetivo de "Imagem e Persuasão -Ensaios sobre o Barroco".
Esse problema comum foi o surgimento do Estado absolutista, "a grande criação política do século 17". Em contraste com o Renascimento, produto típico das pequenas cidades-Estado italianas, o barroco prosperou sob as grandes estruturas burocráticas criadas para assegurar a extração de uma renda fundiária dos camponeses após o fim da servidão de gleba. Tal racionalização do Estado estava portanto subordinada a uma finalidade não-racional: a manutenção da ordem feudal. A questão posta tanto aos artistas católicos como aos protestantes consistia em legitimar um regime irracional utilizando as técnicas racionais legadas pelo classicismo -um conflito que se manifestou na arte como uma tensão entre matéria e forma, que se tornou mais pesada e volumosa.
Ora, se a retórica barroca configurava suas imagens como discursos destinados a persuadir as massas, é legítimo perguntar qual era o objetivo dessa persuasão: "O que importa não é persuadir a isto ou aquilo, mas simplesmente persuadir". É absurdo assim "reduzir toda a temática barroca às teses religiosas da Contra-Reforma", já que o tema amiúde servia apenas para que o artista exercitasse sua técnica de convencimento.
Como assinala Argan, "o século 17 é exatamente o século em que o desenvolvimento da arte se dá no contraste de tendências". Essas tendências se distribuíam numa escala que contrapunha os artistas voltados para o individual (Caravaggio) àqueles voltados para o universal (Carracci). A mesma oposição se expressava na arquitetura no antagonismo entre Borromini (que comprime o espaço) e Bernini (que o expande). Esses dois pólos não esgotam, porém, a riqueza estética do período, analisada em ensaios sutis e eruditos.
Argan em geral estrutura seus estudos confrontando as realizações de um artista com as de seus contemporâneos, expondo de forma minuciosa os dilemas enfrentados por cada um e as respectivas soluções. Ele observa, por exemplo, que Frans Hals "é o inventor de uma caricatura feita de cores, e não de traços", uma espécie de "retrato em superfície" que tem o seu "oposto no retrato profundo de Rembrandt". O primeiro é um pintor de grupos alegres, ao passo que Rembrandt é um pintor de solitários preocupado em fixar uma experiência vivida. Enquanto para Caravaggio a morte é simplesmente a saída do mundo dos vivos, "para Rembrandt, a morte é a consumição cotidiana da vida, o nosso sofrimento e destruição no atrito com os outros, a chegada, enfim, à condição de solidão".
A forma-ensaio permite que ele estude em detalhe os processos criativos, pois Argan está preocupado em entender a história da arte da perspectiva do produtor -ou seja, como uma sucessão de problemas concretos e soluções individuais, que se cristalizam nas obras de arte.
Nisso ele se opõe aos teóricos que assumem a perspectiva de um contemplador atual, que, considerando todas as obras do passado como dados (e não como produtos de sujeitos determinados), pode enquadrá-las em classes segundo critérios de semelhança, separando claramente um estilo do outro. Um exemplo é o do antropólogo Claude Lévi-Strauss, para quem o barroco seria apenas "a sobrevivência, formal e amaneirada, de uma ordem social decadente ou terminada": ele seria, "no plano estético, o seu eco moribundo".
O problema desse último método é que ele desconsidera o fato de que os objetos estéticos constituem os resultados de decisões de indivíduos reais, deixando assim na sombra os motivos que impeliram cada artista a criar uma obra e não outra.


Imagem e Persuasão
632 págs., R$ 74,00 de Giulio Carlo Argan. Trad. Maurício Santana Dias. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3707-3500).



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