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Nosso MASP
Renato Mezan e José Arthur Giannotti discutem a crise no museu após roubo dos quadros de Pablo Picasso e Candido Portinari
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
F
oi enorme meu alívio
ao tomar conhecimento de que as telas roubadas do Masp tinham
sido recuperadas. Para
mim era como se peças de minha mobília cultural tivessem
sido roubadas.
A perda financeira pouco significava, mas cada quadro do
acervo tem para mim e para
muitos valor muito especial;
nós que iniciamos nossa vida
cultural nos anos 50, que assistimos à inauguração do museu
na rua Sete de Abril, que freqüentávamos o barzinho, que
aprendemos a ver pintura no
olho da tela, que lá abrimos
nossos horizontes ao cinema.
Além da escola, minha turma
tinha três pontos de apoio: a biblioteca infantil na rua Major
Sertório, a biblioteca Mário de
Andrade e a discoteca da rua
Florêncio de Abreu. Girávamos
em torno deles, cruzando a cidade a pé, embebidos por ela,
esperando dar a ela o melhor
de nossos pensamentos.
Surgiu então o Masp. Pela
primeira vez vimos se formando um caleidoscópio de telas,
cada qual com sua peculiaridade espantosa, mas concretizando uma história da arte que somente conhecíamos por livros.
As instituições são como trilhas na floresta, se não forem
constantemente pisadas e percorridas retornam ao estado
natural. Foi isso que aconteceu
com as nossas fontes urbanas.
A discoteca ficou obsoleta, a biblioteca infantil se espalhou
pela cidade e perdeu empuxo, a
biblioteca Mário de Andrade
entrou em total decadência a
ponto de suas instalações desmoronarem; passa agora por
uma reforma profunda.
E o Masp?
Novas percepções
O roubo dos quadros fez reavivar minha memória. Lembro-me de Bardi mostrando-nos o quadro de Picasso. Positivamente este não contava entre seus pintores preferidos,
mas um retrato da fase azul era
compatível com o espírito geral
da coleção que estava formando. Bardi era o oposto de sua
mulher Lina.
Às vezes chegava ao museu
abraçando um prato florentino
com o maior carinho, mas recebia de Lina um olhar de descaso. Ela só se encantava com
obras modernas, ele só tinha
olho para peças antigas.
O museu era ponto de encontro e cadinho de novas percepções: ali víamos e estudávamos.
Uma vez Bardi nos ofereceu um
curso sobre história da arte, obviamente certo de que iria encontrar um grupo seleto de bugres ignorantes. Foi nossa vez
de lhe dar o troco.
No final do curso cada um de
nós deveria dissertar sobre um
período escolhido no momento. Fui obrigado a falar sobre o
século 1º em Roma e não me saí
bem da empreitada, pois esse
período até hoje não me fascina. Mas ainda hoje vejo Radhá
Abramo contando a história de
uma grande pedra que, rolando, ia selecionando as obras de
arte de que lhe importava falar.
Depois descobrimos a intenção do diretor: estava escolhendo assistentes. Foi assim que
Jorge Wilheim consolidou seu
emprego ali. Até eu fui sondado, mas nada me desviaria de
minha obsessão pela filosofia.
Mesmo quando foi transferido para a avenida Paulista ainda nos fazia história. Veio a
ocupar o terreno de um antigo
Trianon, de onde contemplávamos o crescimento de São Paulo; era nos seus salões que comemorávamos nossas formaturas. Foi destruído para dar
lugar à primeira Bienal. Projeto
arquitetônico de Luiz Saia, naquela época diretor do Patrimônio Histórico de São Paulo.
Era um prédio quadradão, o
chão de ardósia -enorme novidade no momento- tendo na
fachada umas colunas de
amianto. No alto de cada uma
havia uma emenda, sagrada para Saia por causa de seu despojamento, mas que foi recoberta
por uma faixa de fios amarelos,
segundo uma recomendação de
Ciccillo Matarazzo, presidente
da Bienal. Obviamente Saia se
retirou do projeto batendo os
pés. Eles faziam acontecer.
Pronto o lindo prédio projetado por Lina, veio a surpresa
maior. Como cada quadro ficava exposto num suporte de vidro fixado numa barra de concreto posta no chão, todos eles
se davam para nós ao mesmo
tempo. Era como se o museu
imaginário de Malraux se apresentasse, abarcando todos eles
numa visão panorâmica, onde a
conexão plástica sobrepujasse
as relações temporais.
Por certo uma concepção ousada e que nos fazia pensar.
Mas sempre preferi manter
uma relação íntima com cada
quadro, o que era quase impossível na sala de exposição onde
uma tela se encavalava noutra.
Essas historinhas eu conto
para mostrar como o museu é
nosso. Faz parte de nossa história, de nossas vidas. Ora, a falta
de projeto cultural do conselho
deliberativo do Museu de Arte
de São Paulo e o desleixo que
facilitou o roubo das duas peças
mostram claramente como o
museu foi transformado num
depósito de coisas velhas.
Reconheço os enormes obstáculos financeiros que as últimas diretorias tiveram que
vencer para manter de pé a instituição. Porém o maior problema não está aí. Digamos francamente: São Paulo é uma cidade
relativamente rica, tem recursos para manter um museu de
arte de primeira linha.
É possível mobilizá-los se
uma política cultural lhe for
oferecida. O museu não é apenas nosso, mas também nós somos esse museu.
Por isso não vejo outra solução para a atual crise: que a sociedade civil tome conta dele,
substitua uma instituição formada por bons amigos por outra cujas políticas sejam transparentes.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da Universidade de São Paulo e coordenador da
área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do
Mais!
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