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Papagaios e piratas
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
A
fotografia, publicada no dia 10 de janeiro em vários jornais, mostrando a
devolução ao Masp
dos quadros furtados do seu
acervo, merece ser conservada
nos arquivos nacionais.
De preferência com mais
cautela que a dispensada a Picasso e Portinari pelo museu
paulista -pois, se for tratada
com a mesma displicência que
receberam esses artistas, os estudiosos que no futuro tentarem compreender os costumes
e a mentalidade "deste país" se
verão privados de um documento precioso.
A imagem mostra os quadros
guardados por dois policiais; ao
lado deles, uma fileira de senhores engravatados, fitando
com ar solene algum ponto fora do alcance da câmera (talvez
outra objetiva, para a imortalidade?); em torno de uma mesa,
quatro personagens também
endomingados e uma senhora
apenas parcialmente visível
completam o "tableau".
As matérias que acompanham a foto dão notícia do
fausto com que a direção do
Masp recebeu as obras: champanhe, vestidos longos, entrevista coletiva etc. Um aparato
considerável cercou a breve
viagem delas até a avenida Paulista: helicóptero, motociclistas, viaturas, luminosos ligados
-dizem os jornais que uns cem
policiais participaram da "operação". Se estivessem patrulhando as ruas, provavelmente
teriam impedido alguns assaltos e seqüestros-relâmpago.
O ridículo dessas duas cenas
incita a refletir. Embora alguns
não considerem de bom-tom
elogiar a polícia, manda a justiça reconhecer que, desta vez,
ela cumpriu com eficiência sua
função, sem usar métodos violentos e servindo-se dos instrumentos adequados -entre os
quais, como é óbvio, uma boa
dose de discrição.
Por que esse sucesso indiscutível precisa ser transformado
num espetáculo constrangedor? Se a preocupação era com
a segurança dos quadros, não
seria mais prudente devolvê-los num veículo anônimo, como tantos outros que circulam
pela cidade?
É evidente que o objetivo da
"operação" era oferecer aos cidadãos embasbacados uma demonstração de poderio. E o
mais impressionante é que não
faltaram crédulos para saudar
o cortejo quando este chegou
ao museu: atores e espectadores parecem assim unidos num
pacto silencioso que em nada
os enaltece, e que gostaria de
tentar explicitar.
Personagens
O transporte dos quadros
forma o pano de fundo para a
foto, na qual aparecem somente dois policiais. Os personagens retratados formam parte
da direção do museu, cuja incompetência em prover segurança para o patrimônio artístico sob sua guarda está na origem da série de fatos que culmina na cena aqui comentada.
Lembremos que o furto foi
cometido em três minutos, nas
barbas de vigilantes despreparados e que se revezavam no
"rodízio do sono"; mas isso é
como que apagado da memória
e substituído pela euforia do
reencontro, como se Suzanne
Bloch e o lavrador acabassem
de chegar sãos e salvos de alguma aventura que inspirasse
preocupação em seus amigos.
O discurso do presidente do
Masp, de um cinismo inacreditável, faz referência às medidas
de proteção -"semelhantes às
do Louvre"- a serem adotadas
de imediato. Depois de a casa
ter sido arrombada, colocam-se
taramelas eletrônicas -e a empresa que as fornecer terá direito ao seu logo nos corredores
do museu. Sem comentários.
Mas a incúria dá lugar a um
fatalismo de fazer inveja a Jeca
Tatu: "tem coisa que só Deus
pode garantir 100%". Por
exemplo, um sistema eficaz de
segurança -ou será que o Louvre confia ao Todo-Poderoso a
vigilância do seu acervo?
Uma vez ocultadas as causas
reais do roubo, que -insisto- é
apenas o último elo de uma longa cadeia de negligências de conhecimento público, o passo
seguinte é aproveitar-se descaradamente do trabalho alheio,
no caso o da polícia. É a desfaçatez com que isso ocorre que
impressiona -e também o que
nela está implicado, a saber,
que ninguém vai ligar a mínima, pois as coisas são assim.
Alguém cunhou a expressão
"papagaio de pirata" para designar aquelas pessoas que se
esgueiram por trás de alguém
importante com o intuito de ter
sua anônima imagem associada
à do personagem em foco. Aqui,
o papagaio tem até mais destaque que o pirata, reduzido a
dois policiais que pouco ressaltam diante de tantas belas almas postadas no palco. Coisas
da vida.
Mas, se aceitamos que assim
seja, é porque estamos habituados a cenas semelhantes quando se trata da coisa pública -no
caso, não as obras, que pertencem a uma entidade particular,
mas a ação da polícia.
O cortejo imponente é apenas uma variante das cerimônias de inauguração de pontes,
viadutos, centros de saúde, escolas e até chafarizes -tudo o
que dê na vista e possa ser faturado politicamente pela "otoridade" inaugurante, freqüentemente homenageada com faixas que expressam gratidão por
mais aquela demonstração de
"carinho" pelo povo local.
Sabujice, beija-mão, placas
com todos os títulos de quem
entregou a obra completam o
quadro, infelizmente familiar a
todos nós, e que neste ano eleitoral com certeza será repetido
à exaustão. Isso para não mencionar a prática de inaugurar
obras pela metade, ou reinaugurar algumas já "entregues"
pelos predecessores -a exemplo do que faziam alguns faraós
no antigo Egito, que mandavam apagar dos monumentos o
nome de quem os havia construído e substituí-lo pelo seu.
Contra-exemplo
À guisa de exemplo de como
isso nada tem de natural, sendo
apenas expressão de uma mentalidade que vê no poder público uma extensão do mundo privado, no qual o favor e as relações decidem quem será beneficiado (e como), lembro um fato que na época me chamou
muito a atenção.
Era 1978, e a RATP (autarquia de transportes na região
de Paris) acabava de concluir a
ligação entre as estações Luxembourg e Châtelet, uma estupenda obra de engenharia
que passava por baixo do Sena
e, unindo duas linhas até então
desconectadas, fazia do sistema
por ela administrado uma rede
perfeita. Além disso, como as
gares de Paris estão ligadas a
estações do metrô, tornava-se
possível entrar num trem em
Nice e continuar sobre trilhos
até Calais, no extremo oposto
da França -algo sem precedentes, mesmo na Europa.
O que marcou a entrega daquela obra? Nada. Numa bela
manhã, o novo trecho foi aberto, sem fanfarras ou fotos do
prefeito sorridente em um vagão. Cartazes explicavam detalhes da obra: quem quisesse podia admirar o feito técnico que
ela representava "et voilà tout".
Não ocorreria a Jacques Chirac [então prefeito de Paris]
vangloriar-se por ter "oferecido" à população mais uma comodidade em matéria de transporte -e, se o tivesse feito, talvez alguns anos mais tarde não
conseguisse se eleger presidente do seu país.
Para finalizar: nada tenho
contra o desejo muito humano
de ser aplaudido pelo que se
conseguiu realizar. A recuperação das pinturas merece palmas, é claro. Mas, como diria
Pietro Bardi em sua língua materna, "il troppo stroppia" -"o
que é demais estraga". Ao imitar os filmes de ação a que nos
acostumou Hollywood, a polícia serviu de coadjuvante para a
cena de ópera-bufa protagonizada pelos responsáveis pelo
museu -e se expôs ao mesmo
ridículo atroz. Pergunto: era
mesmo necessário?
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
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