São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Esvaziamento do Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha, único do gênero na Europa, ratifica descaso pelas "ciências da cultura" e desvaloriza as imagens interna e externa do país

Naufrágio das identidades

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Ao chegar a Berlim, em começo de dezembro do ano passado, trazia o propósito de expor ao público brasileiro a importância de que se revestia a existência e o funcionamento de um instituto de cultura brasileira. Referia-me ao ICBRA [Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha], fundado em 1995, único órgão a exercer essa função na Europa. Procurei-o onde sabia que devia estar localizado.
Primeiro choque: embora a Knesebeckstr seja uma rua de livrarias, ninguém nele ouvira falar. Consultando um amigo, não só soube que se mudara para um espaço mais modesto como recebi cópia de um abaixo-assinado que encabeçava o professor Berthold Zilly, autor da excelente tradução de "Os Sertões" para o alemão, em que se apelava às autoridades brasileiras para que revissem sua decisão de não mais apoiar financeiramente o instituto. Procurei a embaixada brasileira. Foi-me gentilmente informado que a medida era irrevogável e estava em vigor desde 1º de janeiro, entre outras razões, porque a valorização do euro tornava insuportável a ajuda.
Ademais, alegavam meus interlocutores, sendo o ICBRA uma instituição regida pelo direito privado alemão, a falta de apoio do Ministério das Relações Exteriores não o impedia de receber fundos de instituições privadas... Referiam-se ainda ao esforço desenvolvido pela embaixada no patrocínio de eventos particularizados -em festivais de dança e cinema, na divulgação de partituras de música erudita-, no que pretendem fazer durante a próxima Copa do Mundo [em 2006], para não falar no esforço do próprio governo em escolher entre centenas de projetos os que, no ano em curso, serão apresentados na França. Sendo-lhes alertado que essas são intervenções pontuais, por si incapazes de modificar o desconhecimento generalizado do Brasil, concordavam em que, de fato, não temos uma política cultural estável e efetiva.
Compreendi que manter meu projeto inicial seria chover no molhado. Parto, por isso, do que era o ponto de acordo com os diplomatas: por motivos que sempre terminam sendo de ordem financeira, nunca tivemos nem ameaçamos ter agora uma política cultural de peso. Isso se torna escandaloso, acrescentava-me outro amigo estrangeiro, no momento em que o Brasil aponta como a grande potência latino-americana, podendo tornar-se, nas próximas décadas, caso se efetive o aproveitamento energético de nosso potencial hidrográfico, uma potência mundial. Mudei, pois, minha primeira idéia pela comparação com o que encontro na Alemanha.


Nunca tivemos nem ameaçamos ter uma política cultural de peso

Desde logo devo observar que, depois da unificação das Alemanhas Ocidental e Oriental, não é tranqüila a situação econômica do país. Diariamente, percebo seus diversos sinais: as mudanças em curso no sistema de seguridade social, as propostas, feitas em certas regiões, de tornar a universidade paga, o crescimento do número de desempregados -atualmente, mais de 5 milhões-, as manifestações de neonazistas no Parlamento da Saxônia, as contramanifestações de jovens que, em um pequeno jornal, assinalam que "o mundo precisa de uma nova e justa organização econômica" e que o neofascismo é estimulado pela "grande catástrofe financeira" que prevêem para 2004-5 ("Neue Solidarität", nº 1-12 de janeiro/2005) ou a ameaça de fechamento da Sinfônica de Berlim.

Capital simbólico
Nada disso, entretanto, tem impedido que a Alemanha pós-reunificação deixe de se preocupar com o problema da cultura, mais especificamente com o déficit na "direção das pesquisas no campo das humanidades". "As humanidades", declara a diretora do Centro para a Pesquisa em Literatura, sediado em Berlim, "sofrem a perda crescente de seu "capital simbólico'". O reconhecimento desse estado de coisas, por certo não exclusivo à Alemanha, ao invés de ser empurrado com a barriga, tem levado à direção oposta: o governo pós-unificação acatou uma instituição que já existia na Alemanha Oriental e, reformulando-a, tem mantido em pleno funcionamento seis centros de pesquisa -três em Berlim, dedicados à lingüística, à pesquisa em literatura, ao Oriente moderno, e três noutras cidades, reservados à história cultural.
E isso não sob um formato burocrático. Ao contrário. Assim, em dezembro de 2002, os centros sediados em Berlim patrocinaram um simpósio em que se discutiam as razões e perspectivas desses núcleos de pesquisa. Publicado sob o título de "Perspectivas - A Pesquisa nas Humanidades" ("Perspektiven - Geisteswissenschaftlicher Forschung"), o pequeno livro acolhe a reflexão tanto de estrangeiros não pertencentes a instituições alemãs quanto representantes seus.
Embora não tenha aqui espaço para me estender a respeito, surpreende-me positivamente a abertura crítica sobre a maneira como tais pesquisas eram projetadas. Minha surpresa começa em que o primeiro texto da discussão seja da autoria de um germanista norte-americano, em que se comparam as tradições das "humanities" nos EUA e as "Geisteswissenschaften", na Alemanha. Útil e, em muitos pontos, acertado, o texto é, contudo, prejudicado pelo louvor indiscriminado da prática norte-americana, lamentavelmente comprobadora da arrogância ingênua dos representantes do "império". Por isso, antes destaco o texto de Sigrid Weigel, diretora dos Centros Berlinenses de Literatura e Lingüística.
Nele, aponto, de maneira mais rápida do que deveria, dois pontos: a reorientação a ser dada às "ciências do espírito" deve-se cumprir no sentido de convertê-las em "ciências da cultura". Com efeito, o que vejo aqui feito afasta a suspeita de o que a autora chama de "ciências da cultura" esteja próximo da profissionalização do amadorismo empreendida pelos difundidos "estudos culturais". Uma única prova: a publicação do dicionário enciclopédico "Conceitos Estéticos Fundamentais", que tem por editor principal o co-diretor do "Zentrum für Literaturforschung", o dr. Karlheinz Barck, com a colaboração inclusive de colegas brasileiros, cujo sexto volume está no prelo.
A mudança, acrescenta Weigel, será inconseqüente se não se acompanhar do reconhecimento de que as chamadas "ciências leves" vêm-se caracterizando pelo não questionamento de seus modos de operar e, daí, em aceitarem a divisão do trabalho entre as ciências naturais e técnicas e as ciências da cultura, identificando as primeiras com a inovação e a modernização e reservando às segundas o papel de "preservação da cultura"; ou seja, tornando-as, no momento presente, ociosas.
Por que me demorei, embora superficialmente, em uns poucos dos textos apresentados no "Perspektiven" senão porque representam um exemplo significativo de como certo país repensa seu acervo cultural e procura ajustá-lo a uma época de mudanças e incertezas? O exemplo é fundamental porque, ao falar da ausência de uma política cultural brasileira, estou acentuando que ela se manifesta tanto na frente externa quanto interna. O fechamento do ICBRA berlinense, portanto, não é um acidente. Entre nós, o próprio nome "cultura" ou supõe um pavloviano bocejo ou se confunde com o estímulo do que Adorno chamara de "indústria cultural".
Mas como alertar nossas autoridades de que seu descaso pelas "ciências da cultura" é uma forma de manter nossa marginalidade?
Quem escreve nada espera senão ser ouvido.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


Texto Anterior: + autores: O espelho partido da nação
Próximo Texto: De olhos bem fechados
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.