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A VIDA MATERIAL DA MÚSICA
Arthur Nestrovski
articulista da Folha
Um exemplo, entre muitos: uma nota
que surge no meio da renda de arpejos da "Serenata" ("Ständchen"), de
Johann Strauss Jr., transcrita por Godowsky, que Nelson Freire toca no disco da coleção "Great Pianists of the 20th Century". Isso
acontece a 1min19s. É um lá, no registro médio,
que fica em suspenso e mantém a música acima do chão, até se completar numa pequena
frase cromática (1min31s).
Desde o início, já estava tudo acima do chão;
agora se abre outro espaço ainda: a música falando de dentro da música, um silêncio que
vem à tona discreta e espantosamente em forma de som.
Momentos como esse servem de emblema
para um entendimento tão natural das coisas
que faz o resultado também soar natural e fácil.
Como se tocar piano, assim como ele toca, fosse algo, não exatamente simples, mas também
não excepcional. À famosa reserva mineira,
corresponde um respeito franco pela atividade
humana, pelo trabalho dedicado e digno de tocar um instrumento. Não há reserva nenhuma
no seu modo de tocar; mas também não há um
instante de exibição.
Há algo de dança nesse seu equilíbrio; uma
confiança física, tão rara e espontânea como a
de Rita Hayworth voando com Fred Astaire,
entre outros artistas por quem ele mesmo tem
confessada paixão. Está presente tanto nos
momentos de maior virtuosismo quanto nos
que, para ele, não são maior desafio; e tanto nas
abstrações quanto nos retratos. O que mais impressiona quando toca Villa-Lobos, por exemplo, é que o "Brasil" não poderia estar mais vivo, mas perdeu completamente as aspas. Sua
versão de "A Prole do Bebê" (gravada em 1974
e relançada em 1997) devolve Villa-Lobos ao
nosso país interior e ensina a ouvir a música
brasileira sem bandeira. No "Prelúdio" das
"Bachiana Brasileira nš 4", a nostalgia livrou-se
de varguismos e pitoresquismos, atingindo
um registro limpo, carregado de sentimento e
defendido do sentimentalismo.
É preciso muita confiança, mesmo, para se
jogar escala abaixo como ele faz no "Finale" da
"Sonata nš 3" de Chopin, em seu premiado disco de 2002. São escalas e escalas, que ele debulha com leveza e precisão. Comparada a ele, até
Martha Argerich (num disco de 35 anos atrás)
soa pouco cuidadosa. Quem mais se aproxima
desse ideal de força e delicadeza é sua admirada precursora, Guiomar Novaes (em versão da
década de 50). Mas o verbo aqui tem sentido literal: é Guiomar, mesmo, quem se aproxima
dele, como se o vetor da história tivesse se invertido, e Nelson Freire fosse um ponto de origem dos que vieram antes, não menos que dos
que vêm e virão depois.
Depois do filme
Nada disso pode ou precisa ser traduzido em imagens. Por isso mesmo, muita gente terá receio de assistir ao filme
de João Moreira Salles. A música é uma de nossas poucas formas de resistência contra a dominação visual; e, agora que todas as artes aspiram à condição de vídeo, até a música tende
a virar trilha sonora de si.
O receio seria saudável, não fosse o histórico
do cineasta, exemplarmente respeitoso, e não
fosse também aquela famosa reserva mineira.
A soma de virtudes resulta numa subtração
-a subtração quase absoluta, nesse filme, de
tudo o que não seja música. Dito de outro modo: a música, aqui, ganha um repertório legítimo de imagens. São como a vida material da
música, âncoras terrenas do sentido.
Fácil de dizer, difícil de mostrar. Traumas familiares, relações pessoais, a rotina dos dias:
nada disso aparece, senão ligeiramente, em pequenas homenagens e sugestões. Nada, por
outro lado, se esconde; tudo converge na presença viva do pianista, na expressão de seu rosto escutando um disco de Guiomar Novaes ou
vendo Rita Hayworth na TV ou ensaiando
com Martha.
Nada se esconde, afinal, porque é disso que
se faz música. E a maior lição desse filme tão
comovente talvez seja a mais antiga: uma coincidência justa entre a música e a vida, naquele
ponto onde as duas se explicam e desaparecem, discreta e espantosamente, uma na outra.
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