UOL


São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Ação e Reação", de Jean Starobinski, traça o itinerário dos dois conceitos e defende que eles são indissociáveis do surgimento da idéia de modernidade

A vida tensa das palavras

João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

As palavras têm sua própria história. E a história das palavras diz muito sobre a mudança das sociedades tanto no plano individual quanto no coletivo. Em "Ação e Reação", Jean Starobinski acompanha a fortuna desse par de conceitos, destacando o segundo termo, cuja tumultuada história fornece um inesperado panorama da aventura da modernidade. À primeira vista, o estudo de Starobinski se enquadra no modelo da história dos conceitos, tão caro à tradição alemã. Por isso, seu método guarda afinidades com obras de referência como a de Leo Spitzer, "Idéias Clássicas e Cristãs sobre a Harmonia do Mundo - Prolegômenos para uma Interpretação da Palavra "Stimmung'", e a de Arthur Lovejoy, "A Grande Cadeia do Ser - Estudo da História de uma Idéia". Ou com livro anterior do próprio Starobinski, "As Máscaras da Civilização" (Companhia das Letras), no qual desvenda os sentidos dessa palavra. Embora tal caracterização seja correta, ela deixa escapar o radicalismo desse novo experimento de Starobinski, que parece combinar as lições da linguística sincrônica de Saussure com a pesquisa diacrônica, característica do método da história das idéias. Ora, o estudo da história das palavras, de sua origem e formação, tradicionalmente é tarefa da etimologia. Muitas vezes vista como mera erudição ou usada como pretexto para herméticas especulações, a etimologia antecipou a abordagem antropológica, como o ensaio de Starobinski esclarece. Afinal, a maior contribuição da antropologia reside na desnaturalização da idéia de cultura, pois a observação de costumes e códigos diferentes revela o caráter arbitrário dos hábitos sociais. As opções de determinada cultura não serão necessariamente endossadas pelas demais. Daí a vocação de a antropologia realizar-se no reconhecimento pleno da alteridade, revelando a diversidade de culturas possíveis. A etimologia antecipou o olhar antropológico, explicitando as diferentes acepções assumidas historicamente pelas palavras, num efeito de estranhamento em relação ao próprio idioma. Tais diferenças obrigam o analista a uma bem-vinda cautela, pois o significado atribuído hoje a uma palavra pode contrariar o de épocas anteriores. Em casos extremos, palavras correntes talvez nem sempre tenham existido. É o caso de "reação", fruto tardio da baixa Idade Média.

Paixões
Assim, o casal "ação e reação" somente formou-se no limiar dos séculos 12 e 13, no seio das disputas escolásticas. No mundo clássico, a paixão designava o ato fundamentalmente passivo de sofrer uma ação sem "reagir".
Nesse casal de conceitos, destacava-se o agente da ação, cujo impulso se encontrava tanto no "primeiro motor" aristotélico, que move o mundo sem por este ser movido, quanto na origem divina, que, naturalmente imune a efeitos externos, movimenta o universo. Ações que desconhecem reações, provocando somente paixões.
O pêndulo começou a inclinar-se no século 13, iluminando a capacidade de oferecer resistência. Ou seja, agir em resposta à ação sofrida: re-agir. Capacidade que levaria ao questionamento da idéia de um móvel necessariamente exterior aos atos do sujeito. Na verdade, o crescimento progressivo da importância do conceito de reação parece indissociável da gestação da idéia do sujeito moderno.
Entretanto, durante aproximadamente três séculos, o novo termo viu-se confinado aos "fenômenos da natureza, sem nenhuma aplicação ao mundo humano". Reação, nessa época, era propriedade da mecânica, parte da física que estuda o comportamento de sistemas submetidos à ação de uma ou mais forças. Diderot, porém, desempenhou um papel decisivo na transferência do termo da física newtoniana para o que denominava "física experimental".
Rápida tradução: passagem do reino abstrato de fórmulas matemáticas para o universo concreto de fenômenos da natureza. Dos fenômenos naturais ao corpo humano bastou um pulo, pois as reações físico-químicas favoreciam o comércio entre as áreas, marcando a hegemonia da química em detrimento da mecânica. Daí, na passagem do século 19 ao 20, a palavra fecundou os domínios recentes da psiquiatria e da psicanálise.
Um salto mais audacioso conduziu à vida social, concebida na vizinhança da Revolução Francesa como organismo coletivo, composto por uma miríade de ações e reações. Em breve, o conceito empolgou poetas e escritores, interessados no vitalismo associado à idéia de reações contínuas e criadoras. O termo ganhou ainda um matiz particular, oposto ao progresso, originando o sentido pejorativo de "reação", de "reacionário", no particular idioma da política.
Por isso, as aventuras do casal de conceitos permitem "falar de um hiperativismo contemporâneo". O avesso da reação, mais do que apenas a ação sobre o elemento que agiu em primeiro lugar, é a imagem do sujeito moderno. Sujeito definido por agir e, sobretudo, reagir, sabendo como fazer coisas com palavras.
Destaque-se, por fim, a radicalidade do experimento de Starobinski. É como se um princípio básico de Saussure fosse aplicado à história das idéias. Aprendemos que os fonemas não têm valor em si, tornando-se significativos pelo contraste com outros fonemas. Ora, o conceito de reação adquire pleno vigor quando oposto ao de ação. Ao mesmo tempo, o método diacrônico da história das idéias contamina e enriquece a abordagem sincrônica da linguística saussuriana. Promove-se, assim, uma instância de "ação e reação" entre as duas abordagens.
Tal possibilidade já se encontrava latente em "As Máscaras da Civilização", pois não se compreende o conceito francês de "civilização" sem seu par de inspiração alemã, "cultura". Entretanto em "Ação e Reação" o método encontra pleno desenvolvimento. Talvez por ser a forma mais oportuna de reagir à química do próprio tema.


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago).

Ação e Reação
420 págs., R$ 40,00 de Jean Starobinski. Trad. de Simone Perelson. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).


Texto Anterior: Medo e pecado são temas de outro título
Próximo Texto: Ponto de fuga: As asas do desejo
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.