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+ Inédito
Leia texto do escritor suíço de língua alemã Robert Walser, que está no novo número
da revista "Inimigo Rumor"
CARTA DE UM POETA
A UM SENHOR
ROBERT WALSER
Meu mui prezado
senhor, com
respeito à sua
carta, que eu
encontrei hoje
à noite sobre a mesa, por meio
da qual o senhor me solicita
que lhe indique hora e lugar em
que possa conhecer-me, devo
responder que não sei exatamente o que lhe dizer. Acodem-me este e aquele pensamento, pois sou uma pessoa, o senhor precisa sabê-lo, com a
qual não vale a pena travar conhecimento.
Sou extraordinariamente
descortês e, quanto a bons modos, tenho-os tanto quanto nada. Conceder-lhe a oportunidade de me ver significa fazê-lo
conhecido de alguém que corta
a aba de seu chapéu de feltro
com a tesoura, de forma a emprestar-lhe uma aparência selvagem. O senhor gostaria de ter
diante de seus olhos um tipo
assim esquisito?
A sua amável carta alegrou-me sobremaneira. O senhor,
contudo, errou no endereço.
Não sou aquele que merece receber esse tipo de cortesia. Peço-lhe: abandone imediatamente o desejo de me conhecer. A gentileza não combina
comigo. Eu teria de retribuí-la;
e exatamente isso eu gostaria
de evitar, pois sei que a conduta
cortês e bem-educada não me
cabem. E também não gosto de
ser gentil; isso me entedia.
Suponho que o senhor tenha
uma mulher, que sua mulher
seja elegante, e que na casa dos
senhores haja algo como um
salão. Alguém que se utiliza de
expressões tão finas e tão belas
quanto as suas tem um salão.
Eu, contudo, somente sou alguém na rua, no mato e no
campo, na taberna e em meu
próprio quarto; num salão, eu
me apresentaria como um parvo. Jamais estive num salão
-tenho medo de salões; e, como homem em pleno uso da razão, devo evitar o que me atemoriza.
Casa velha
Como o senhor vê, sou sincero. O senhor é provavelmente
um homem de posses e se expressa com palavras opulentas.
Eu, ao contrário, sou pobre e
tudo o que digo soa a pobreza.
Das duas uma: ou o senhor
iria me aborrecer com os seus
modos, ou eu iria aborrecê-lo
com os meus. O senhor não faz
idéia do quão sinceramente eu
aprecio e prefiro a situação em
que vivo. Mesmo pobre como
sou, até hoje não me ocorreu de
me queixar da vida; pelo contrário: valorizo a tal ponto o que
está à minha volta que sempre
me esforço zelosamente por
protegê-lo.
Moro numa casa velha e desordenada, numa espécie de
ruína. Ela, no entanto, me faz
feliz. A visão da gente pobre e
de casas depauperadas torna-me feliz. Fico a pensar em quão
poucos motivos o senhor tem
para compreender isto. Preciso
ter à minha volta um determinado peso e uma certa quantidade de abandono, degradação
e desunião. Caso contrário, a
respiração se me torna penosa.
Sou o que sou
A vida seria uma tortura se eu
tivesse de ser fino, esmerado e
elegante. A elegância é minha
inimiga, e eu prefiro passar três
dias sem nada comer a me
enredar na temerária operação
de fazer uma vênia.
Prezado senhor, desse modo
fala não o orgulho, mas uma
pronunciada sensibilidade para a harmonia e a comodidade.
Por que eu deveria ser o que
não sou e não ser o que sou? Isso seria estúpido. Quando sou o
que sou, estou contente comigo
mesmo; e então tudo reverbera,
tudo está bem à minha volta.
Veja o senhor, tudo se passa
assim: um casaco novo é o bastante para tornar-me descontente e infeliz; compreenda,
portanto, que eu odeio tudo
aquilo que é belo, novo e refinado, e aprecio tudo o que é velho,
surrado e gasto.
Não gosto de parasitas em
particular; não gostaria de comer os bichos assim de repente,
mas eles não me perturbam. Na
casa em que moro, há uma porção de parasitas, e no entanto
eu gosto de morar aqui. A casa
tem o aspecto de uma casa de
ladrões. Quando tudo no mundo for novo e estiver em ordem,
então eu não vou querer viver,
eu vou me matar.
Tenho um receio semelhante
quando tenho de pensar que
preciso conhecer um homem
distinto e instruído. Ao temer
que eu vá apenas perturbá-lo e
não venha a representar-lhe
nenhuma utilidade nem entretenimento, um outro temor se
aviva, qual seja (para falar aberta e francamente), o de que o
senhor venha a me perturbar e
não possa ser simpático e agradável comigo.
Há uma alma na condição de
cada pessoa; o senhor deve sabê-lo imediatamente, e eu devo
imediatamente informá-lo:
prezo muito o que eu sou, tão
insuficiente e pobre quanto eu
possa ser. Tomo toda inveja por
estupidez. A inveja é uma espécie de loucura.
Respeite cada um a situação
em que se encontra: assim cada
um estará servido.
Temo ainda a influência que
o senhor poderia exercer sobre
mim, ou seja, receio o supérfluo
trabalho interior que haveria
de ser realizado para defender-me de sua influência.
Sobre mim paira o céu
Por isso, não corro atrás de
novas relações pessoais, não
posso correr atrás delas. Conhecer uma nova pessoa: isso
demanda no mínimo um quê
de trabalho, e eu acabo de me
permitir dizer-lhe que eu aprecio o conforto. O que o senhor
há de pensar de mim? E no entanto a questão me é indiferente. Eu quero que isso me seja indiferente.
Não desejo tampouco pedir-lhe desculpas por estas palavras. Isso seria retórico. Sempre se é indelicado quando se diz a verdade. Amo as estrelas, e
a Lua é minha amiga secreta.
Sobre mim paira o céu. Tanto
tempo quanto eu viva, não desaprenderei jamais de olhar para ele. Encontro-me na Terra:
este é o meu ponto de vista. As
horas troçam de mim e eu troço
delas. Não posso imaginar um
colóquio mais aprazível. O dia e
a noite são a minha companhia.
Privo da confiança do entardecer e do amanhecer. E com
isso saúda-o cordialmente o
pobre jovem poeta.
Tradução de Tércio Redondo .
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