São Paulo, domingo, 20 de abril de 2008

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+ Inédito

Leia texto do escritor suíço de língua alemã Robert Walser, que está no novo número da revista "Inimigo Rumor"

CARTA DE UM POETA A UM SENHOR

ROBERT WALSER

Meu mui prezado senhor, com respeito à sua carta, que eu encontrei hoje à noite sobre a mesa, por meio da qual o senhor me solicita que lhe indique hora e lugar em que possa conhecer-me, devo responder que não sei exatamente o que lhe dizer. Acodem-me este e aquele pensamento, pois sou uma pessoa, o senhor precisa sabê-lo, com a qual não vale a pena travar conhecimento.
Sou extraordinariamente descortês e, quanto a bons modos, tenho-os tanto quanto nada. Conceder-lhe a oportunidade de me ver significa fazê-lo conhecido de alguém que corta a aba de seu chapéu de feltro com a tesoura, de forma a emprestar-lhe uma aparência selvagem. O senhor gostaria de ter diante de seus olhos um tipo assim esquisito? A sua amável carta alegrou-me sobremaneira. O senhor, contudo, errou no endereço.
Não sou aquele que merece receber esse tipo de cortesia. Peço-lhe: abandone imediatamente o desejo de me conhecer. A gentileza não combina comigo. Eu teria de retribuí-la; e exatamente isso eu gostaria de evitar, pois sei que a conduta cortês e bem-educada não me cabem. E também não gosto de ser gentil; isso me entedia.
Suponho que o senhor tenha uma mulher, que sua mulher seja elegante, e que na casa dos senhores haja algo como um salão. Alguém que se utiliza de expressões tão finas e tão belas quanto as suas tem um salão.
Eu, contudo, somente sou alguém na rua, no mato e no campo, na taberna e em meu próprio quarto; num salão, eu me apresentaria como um parvo. Jamais estive num salão -tenho medo de salões; e, como homem em pleno uso da razão, devo evitar o que me atemoriza.

Casa velha
Como o senhor vê, sou sincero. O senhor é provavelmente um homem de posses e se expressa com palavras opulentas. Eu, ao contrário, sou pobre e tudo o que digo soa a pobreza.
Das duas uma: ou o senhor iria me aborrecer com os seus modos, ou eu iria aborrecê-lo com os meus. O senhor não faz idéia do quão sinceramente eu aprecio e prefiro a situação em que vivo. Mesmo pobre como sou, até hoje não me ocorreu de me queixar da vida; pelo contrário: valorizo a tal ponto o que está à minha volta que sempre me esforço zelosamente por protegê-lo.
Moro numa casa velha e desordenada, numa espécie de ruína. Ela, no entanto, me faz feliz. A visão da gente pobre e de casas depauperadas torna-me feliz. Fico a pensar em quão poucos motivos o senhor tem para compreender isto. Preciso ter à minha volta um determinado peso e uma certa quantidade de abandono, degradação e desunião. Caso contrário, a respiração se me torna penosa.

Sou o que sou
A vida seria uma tortura se eu tivesse de ser fino, esmerado e elegante. A elegância é minha inimiga, e eu prefiro passar três dias sem nada comer a me enredar na temerária operação de fazer uma vênia.
Prezado senhor, desse modo fala não o orgulho, mas uma pronunciada sensibilidade para a harmonia e a comodidade. Por que eu deveria ser o que não sou e não ser o que sou? Isso seria estúpido. Quando sou o que sou, estou contente comigo mesmo; e então tudo reverbera, tudo está bem à minha volta.
Veja o senhor, tudo se passa assim: um casaco novo é o bastante para tornar-me descontente e infeliz; compreenda, portanto, que eu odeio tudo aquilo que é belo, novo e refinado, e aprecio tudo o que é velho, surrado e gasto.
Não gosto de parasitas em particular; não gostaria de comer os bichos assim de repente, mas eles não me perturbam. Na casa em que moro, há uma porção de parasitas, e no entanto eu gosto de morar aqui. A casa tem o aspecto de uma casa de ladrões. Quando tudo no mundo for novo e estiver em ordem, então eu não vou querer viver, eu vou me matar.
Tenho um receio semelhante quando tenho de pensar que preciso conhecer um homem distinto e instruído. Ao temer que eu vá apenas perturbá-lo e não venha a representar-lhe nenhuma utilidade nem entretenimento, um outro temor se aviva, qual seja (para falar aberta e francamente), o de que o senhor venha a me perturbar e não possa ser simpático e agradável comigo.
Há uma alma na condição de cada pessoa; o senhor deve sabê-lo imediatamente, e eu devo imediatamente informá-lo: prezo muito o que eu sou, tão insuficiente e pobre quanto eu possa ser. Tomo toda inveja por estupidez. A inveja é uma espécie de loucura. Respeite cada um a situação em que se encontra: assim cada um estará servido.
Temo ainda a influência que o senhor poderia exercer sobre mim, ou seja, receio o supérfluo trabalho interior que haveria de ser realizado para defender-me de sua influência.

Sobre mim paira o céu
Por isso, não corro atrás de novas relações pessoais, não posso correr atrás delas. Conhecer uma nova pessoa: isso demanda no mínimo um quê de trabalho, e eu acabo de me permitir dizer-lhe que eu aprecio o conforto. O que o senhor há de pensar de mim? E no entanto a questão me é indiferente. Eu quero que isso me seja indiferente.
Não desejo tampouco pedir-lhe desculpas por estas palavras. Isso seria retórico. Sempre se é indelicado quando se diz a verdade. Amo as estrelas, e a Lua é minha amiga secreta.
Sobre mim paira o céu. Tanto tempo quanto eu viva, não desaprenderei jamais de olhar para ele. Encontro-me na Terra: este é o meu ponto de vista. As horas troçam de mim e eu troço delas. Não posso imaginar um colóquio mais aprazível. O dia e a noite são a minha companhia. Privo da confiança do entardecer e do amanhecer. E com isso saúda-o cordialmente o pobre jovem poeta.


Tradução de Tércio Redondo .


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