São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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Contos de Rubem Fonseca trazem uma reunião de horrores articulados de maneira previsível

Excrescência e lugar-comum

Alcir Pécora
especial para a Folha

O novo livro de Rubem Fonseca, "Secreções, Excreções e Desatinos", reúne 14 contos com temas relativos a hábitos vulgares ou comportamentos bizarros diante de produções corpóreas ou práticas que suscitam graus maiores ou menores de repugnância física e social: fezes, caspas, canibalismo, pústulas de tumor, virose, câncer, odores do hálito, de suor ou de lixo, urina, cera de ouvido, esperma, mênstruo, gazes, além de manias ou manifestações de recalques variados, como espancamentos por praticante de artes marciais, indignação de nacionalista, sentimento de insignificância, gagueira, insônia e gulodice compulsiva.
A lista contempla, pois, três tipos principais de coisas repulsivas: dejetos corpóreos, manifestações de doenças e boçalidades típicas, com larga predominância do primeiro deles.
Do ponto de vista dos subgêneros exercitados nos contos, eles se dividem entre os de suspense policial, dois deles próximos do thriller de terror, e os de comédia de costume, em versão determinada pelo humor negro ou escabroso. Os narradores, com duas exceções, são de primeira pessoa, o que submete as narrativas a cortes subjetivos e parciais, amplificados em delírios psicóticos, por parte de quem padece ou produz os atos nojentos ou inconvenientes. Não por acaso, os narradores ocupam lugares com pontos de vista bem peculiares na situação: em sua maioria, são assassinos ou enamorados, quando não são ambas as coisas.
Assim, fica fácil perceber que, na sequência dos acontecimentos narrados, os vícios, manias ou doenças associam-se invariavelmente a casos amorosos, bem resolvidos ou felizes na metade deles, catastróficos ou desastrados na outra metade. Quando se trata de relacionar os vícios com o gozo próprio de quem os possui, os casos de sucesso sobem um pouco além da média. Quando tais hábitos ou manifestações bizarras são do parceiro ou antagonista, a situação dramática mais frequente é a de que a aceitação deles pode conduzir a desfechos favoráveis: beijar o tumor da amada ou possuí-la prazerosamente com distúrbios hormonais parece ser argumento sedutor e irresistível para que ela aquiesça doravante às exigências do amante.
Há, entretanto, uma relação que se estabelece, em todos os contos, com exceção de um deles, entre o fenômeno repulsivo e a vida cotidiana: apenas ele resiste à banalidade implacável, à insignificância anódina e medíocre da existência.
O vicioso, horrível ou doentio, como na velha lição libertina contra os erros da educação cristã e burguesa hipócrita, é proposto como o único acontecimento excitante, o único estímulo para atos de eficácia afetiva, capazes de alimentar alguma expectativa de futuro.
O mais permanece, menos que vivo, em meio a um presente desolado, devastado não pelos cheiros ou pela náusea, mas pela tranquilidade da vida mesquinha onde nada acontece. O nojento é excitante, aliás, no seu sentido sexual básico, pois, como disse antes, as narrativas de excrescências e manias correm de modo a cruzar com as dos casos amorosos e a determinar o desfecho deles com atos brutais e decisivos. Se nem sempre se resolvem prazerosamente, são sempre o núcleo das ações empenhadas do narrador.
Por outro lado, se tal excitação dos vícios e bizarrias faz vibrar de sensualidade as pequenas formas de vida que tendem, fora daí, ao banal, ela não tem poder para criar-lhes um antídoto duradouro. Uma vez efetuada em sexo ou brutalidade sensual, a sua persistência termina por saciar o desejo amoroso e tende novamente ao tédio. Se o imundo ou chocante traduz um acontecimento, um ato de reconhecimento humano em meio ao vazio, a sua continuidade tende a se voltar contra ele e a esvaziar esse breve estímulo vital e voluntarista; apaziguado o horror fecundante, o amor novamente é impossível.
Disse que havia uma única situação na qual nem sequer o ato repugnante era capaz de romper a banalidade da vida: pois trata-se daquela em que as personagens querem se curar deliberadamente de seu mal, representando-o como objeto de psicologia e não de conquista ou de ação violenta. Nos contos de Rubem Fonseca, o estupro pode eventualmente curar; a tentativa de resolver discursivamente a doença ou a brutalidade, jamais.
Essa talvez seja a formulação mais dura a recolher do conjunto dos contos, mas ela em geral não chega a se produzir nessa radicalidade. Todo o horror anunciado, fezes, urina, mênstruo, sangue quente, maus odores ou versões criminosas dele, assassinatos, estupros, canibalismo, mandingas, no mais das vezes são articulados de maneira previsível e pouco inspirada: o vidente que enxerga a própria morte; o assassinato da amante ocasional; a conquista amorosa pelo desdém e, inversamente, a recusa da amada pela manifestação de interesse do amante; a conquista por meio de leituras e explicações constrangedoras de poesia; o detetive penalizado com a mulher que trai o marido cliente; a descrição cientificizante dos odores e secreções; as frases conscientes das frases banais dos maus romances policiais, nem por isso menos ruins; o casal antigo que se odeia e tantas outras situações e escolhas estilísticas fáceis exalam, sobretudo, cansaço, senão mesmo má vontade em contar, em forma de narrativa tensa, o que, afinal, já se conhece de sobra como resumo ou circunstância de um sem-número de outros contos, romances, roteiros.
Aliás, talvez o mais justo com as possibilidades ainda abertas nessa reunião de contos fosse mesmo encará-la como uma recolha precipitada de esquemas de tramas, de sugestões abreviadas de lugares-comuns adequados para fornecer argumentos a roteiros que, talvez, no cinema, ainda venham a dar horror ou ofender, a agradar ou entreter, quem sabe até a instruir sobre os piores horrores e os mais humanos do horror homem. Tal como está, contudo, a aplicar-se ao livro o critério único de valor proposto nele, não chega a cheirar nem a feder.


Secreções, Excreções e Desatinos
142 págs., R$ 21,00
de Rubem Fonseca. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3846-0801).



Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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