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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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+ música

Neil Young relança o renegado "On the Beach" (1974), e Brian Wilson anuncia que, pela primeira vez, irá tocar em turnê as músicas do álbum "Smile" (1966)

A transformação do pop em arte

Associated Press
Os Beach Boys em foto de 1966, ano em que gravaram "Smile"


André Barcinski
free-lance para a Folha

Duas notícias sacudiram o mundo do rock nas últimas semanas: a primeira foi o lançamento em CD de "On the Beach", disco gravado em 1974 por Neil Young. A segunda foi o anúncio, feito por Brian Wilson, ex-líder do grupo Beach Boys, de que planeja sair em turnê no fim do ano e tocar na íntegra o álbum "Smile", gravado em 1966 e nunca lançado. São notícias aparentemente banais, mas que, para qualquer pessoa antenada com o rock nos últimos 40 anos, vêm jogar luz sobre duas das obras mais discutidas e menos ouvidas da música pop. Produzidos durante os ápices criativos de Neil Young e Brian Wilson, "On the Beach" e "Smile" acabaram renegados por seus criadores. Young fez de tudo para enterrar o disco: negava-se a falar dele em entrevistas e não permitiu seu lançamento em CD. Já Brian Wilson foi mais longe, confiscando as fitas originais e até destruindo parte delas, num acesso de paranóia e loucura. Os episódios entraram para o cânone das grandes excentricidades do rock e tornaram-se símbolos de uma era regada a drogas, egos inflados e talentos extraordinários. Neil Young, por exemplo, não estava nada bem quando entrou em estúdio para gravar "On the Beach". Os dois anos anteriores haviam sido uma montanha-russa, alternando momentos de grande alegria com algumas tragédias pessoais. Logo depois de conquistar o mundo com o disco "Harvest" (1972), ele perdeu um grande amigo por overdose (o guitarrista Danny Whitten) e descobriu que o filho sofria de paralisia cerebral. A música de Young passou a refletir sua vida tumultuada. Os arranjos delicados de "Harvest" ficaram para trás, substituídos por um minimalismo extremo e letras de uma melancolia profunda. Entre 73 e 75, ele lançou três discos -a "trilogia do desespero", como chamavam os fãs: "Time Fades Away" (73), "On the Beach" (74) e "Tonight's the Night" (75). Dos três, "On the Beach" era o mais desesperançado: Young cantava sobre "junkies", almas perdidas e solidão; "Revolution Blues" falava de seus encontros com Charles Manson [acusado da morte da atriz Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski], enquanto "Ambulance Blues" destruía Richard Nixon: "Nunca conheci um homem/ que contasse tantas mentiras". O disco é um dos melhores de sua carreira e foi, no geral, bem recebido pelos críticos. O único que parece não ter gostado foi o próprio Young -talvez o álbum lhe trouxesse recordações muito amargas. O fato é que "On the Beach" saiu rapidamente de catálogo e se tornou uma raridade entre colecionadores de vinil (especialmente depois que Kurt Cobain, do Nirvana, citou o LP como uma de suas grandes influências). A história de Brian Wilson e "Smile" é ainda mais estranha. Wilson concebeu o disco como uma resposta a "Rubber Soul", dos Beatles. "Vou fazer uma sinfonia adolescente para Deus", disse ele na ocasião. "Smile" seria um disco temático, com músicas ligadas por pequenos interlúdios -ou "sentimentos" ("feelings"), como ele os chamava. Era um conceito novo para a época. Em 1966, a indústria fonográfica ainda não havia absorvido o conceito de LP. Um "long play" era simplesmente uma coleção de compactos. Foram os Beatles, com "Rubber Soul" (1965), que mostraram ser possível fazer um LP coeso, em que o "todo" fosse mais importante do que uma ou outra música isolada.

A invenção do LP
Mas, se os Beatles "inventaram" o LP, foi Brian Wilson, com seu "Pet Sounds" (1966), que transformou a música pop em arte. Nunca o pop soara tão experimental e sublime. Wilson inovou as técnicas de estúdio, usou instrumentos eruditos (harpas, violinos) e criou músicas que fugiam do padrão simplório da época, limitado a refrãos pegajosos e letras banais. Várias faixas de "Pet Sounds" não tinham refrão e exibiam mudanças rítmicas totalmente inovadoras, além de arranjos orquestrais que lhe valeram o apelido de "Bebê Mozart".
Os Beatles eram os únicos capazes de enfrentá-lo de igual para igual. E essa rivalidade amigável gerou alguns dos maiores momentos do rock. Paul McCartney ouviu "Pet Sounds" e ficou tão chocado que, em resposta, compôs "Here, There and Everywhere". McCartney chegou a dizer que "God Only Knows" era "a música mais linda de todos os tempos". Se "Pet Sounds" inspirou os Beatles, estes também desafiaram Brian Wilson a se superar, e a prova de fogo seria "Smile". Só havia um problema: sua cabeça.
Anos e anos de abuso por parte do pai, um sádico chamado Murray, haviam mexido com Brian. Os socos do pai o haviam deixado surdo de um ouvido, e as cicatrizes psicológicas nunca sararam. Brian desenvolveu uma timidez doentia e uma paranóia que beirava a loucura. As histórias são infinitas: Brian gritando com a tela de cinema, certo de que os atores do filme o estavam ameaçando; Brian trancado no quarto, aos prantos, recusando-se a sair para cumprimentar Paul McCartney, porque tinha ouvido músicas dos Beatles, que, acreditava, nunca conseguiria superar.
As gravações de "Smile" são pontuadas por diversas histórias semelhantes: Brian exigiu que os músicos da orquestra usassem chapéus de bombeiro para tocar a faixa "Fire" e cancelou várias sessões por ter sentido "vibrações negativas" no estúdio. A quantidade bárbara de ácido que estava tomando na época também não ajudava em nada sua condição psicológica. As excentricidades só não conseguiam macular a beleza de suas músicas: o maestro Leonard Bernstein ouviu "Surf's Up" e disse ser "a peça mais brilhante da música contemporânea".
Quando parecia que "Smile" finalmente seria completado, Brian Wilson começou a surtar: primeiro foram as reclamações dos outros membros da banda, que, acostumados com as canções tatibitate sobre carros, garotas e o sol da Califórnia, que haviam feito a fama do grupo, não conseguiam assimilar as melodias intrincadas de Brian e as letras enigmáticas de seu parceiro, Van Dyke Parks. Do outro lado do Atlântico, vinham notícias ainda mais preocupantes: os Beatles trabalhavam num disco novo, "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".
A insegurança tomou conta de Brian Wilson: seu comportamento passou de excêntrico a insano. Quando um incêndio monstruoso destruiu quarteirões inteiros de Los Angeles, ele culpou a música "Fire" e supostamente queimou várias fitas das gravações. Depois de quase 18 meses de trabalho, Brian Wilson desistiu: "Smile" era um disco amaldiçoado e, se dependesse dele, nunca seria lançado.
Felizmente, algum material das gravações acabou aparecendo em outros discos (a clássica "Heroes and Villains" foi lançada em 1967; "Surf's Up", em 1971). Em 1993, metade de "Smile" finalmente veio a público, na caixa de CDs "Good Vibrations". Mas a outra metade -incluindo a "Suíte dos Elementos", uma peça instrumental- nunca foi lançada. Quem sabe agora, 37 anos depois, Brian Wilson consiga finalmente superar a maldição de "Smile"? Estamos torcendo.


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