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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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Ponto de fuga

Cantos de Milão

Andrea Tamoni - 15.jan.2003/Associated Press
Ensaio de "O Cavaleiro da Rosa", de Strauss, no teatro Arcimboldi


Jorge Coli
especial para a Folha

O velho Scala fechou-se para reforma durante três anos e deve reabrir para a temporada de 2004. Enquanto isso, as representações de ópera se transferiram para o Teatro degli Arcimboldi, construído na periferia de Milão, na Bicocca, ex-bairro industrial da Pirelli.
Toda essa região foi agora transformada por obra do arquiteto Vittorio Gregotti, com edifícios diversos, entre eles a nova Università degli Studi, e o teatro. É uma arquitetura que recusa achados eloquentes ou extravagâncias. Retoma antes o tom discreto, digno, que parece emanar de toda a cidade, conseguindo, ao mesmo tempo, ser caloroso e ordenado. Arquitetura de metrópole opulenta, feita com excelentes materiais, evitando ostentações.
O teatro de Gregotti acolhe 2.400 pessoas. Grande, distante do centro e sem a aura mítica do Scala setecentista, atrai menos gente e tem sempre lugares de sobra nos espetáculos. Está portanto livre dos "bagarini", cambistas que monopolizavam os ingressos e infernizavam os espectadores na antiga e veneranda casa de espetáculos. Sua acústica é muito boa, embora fosse inverossímil supor que ela chegasse às mesmas sutilezas mágicas da do "verdadeiro" Scala. Duas apresentações raras se sucederam há pouco. Primeiro, "A Raposinha Esperta", de Janacek, dirigida por Andrew Davis, numa produção da Welsh National Opera, que sublinhou, de maneira comovente, o ciclo das estações do ano e a morte da raposa. Depois, a zarzuela "Luisa Fernanda", com elenco espanhol, estrelada por Placido Domingo.

Herança - As zarzuelas formam um gênero característico da Espanha, onde a música se alterna com o teatro falado, como na opereta. "Luisa Fernanda" foi composta por Torroba, em 1932. Domingo assume nela não o papel do tenor, mas o do barítono, em homenagem a seu pai, ilustre intérprete desse personagem. A mãe de Domingo também havia encarnado, em outros tempos, a protagonista. A trama é dilacerada e dolorosa: Domingo, como de hábito, impôs as qualidades de sua voz e sua formidável intensidade cênica.

Outono - Entrar no museu Bagatti Valsecchi, em Milão, é como ler uma página de Proust. Dois irmãos, Fausto e Giuseppe Bagatti Valsecchi, eram aristocratas milaneses riquíssimos. Nos anos de 1880, reformaram o antigo palácio que possuíam, próximo à Via Montenapoleone: hoje, ele se avizinha, de modo coerente, com as vitrinas Gucci, Prada, Boucheron, Valentino ou Dior. Reuniram quadros, esculturas, móveis, objetos, tecidos, tudo centrado no Renascimento, incorporando-os ao quotidiano da casa. Completavam-nos com uma decoração "neo", que parecia muito autêntica na época e da qual emana, agora, um irresistível perfume fim-de-século.
Num quarto de dormir, na parede ao lado da cama, pendura-se um Giovanni Bellini, para um prazer confidencial. Na sala de banhos, o chuveiro e a banheira modernos, mas em "estilo do Quatrocentos", lembram os altares ou os túmulos murais em mármore que se poderiam encontrar nas igrejas florentinas.
Gerido por uma fundação cujo diretor é um descendente da família, o museu foi aberto ao público em 1994. Caso raro de uma apresentação "não atualizada", nele se percebe o passado pelo filtro do passado, obras autênticas e magníficas do Renascimento pelas lentes da sensibilidade finissecular, que soube redescobri-las e amá-las.

Escudo - Poldi Pezzoli foi outro colecionador milanês cuja casa também se tornou um museu, dentre os mais importantes da arte italiana. Ali se encontram a "Lamentação", de Botticelli; o "Retrato de Mulher", de Pollaiolo, que se tornou o símbolo do museu; a "Laguna", de Guardi, um dos mais belos quadros do século 18; a "Fiducia in Dio", de Bartolini, mármore crucial do século 19. O escultor Arnaldo Pomodoro organizou, faz pouco tempo, a sala de armas. Muito cerrados, elmos, peitorais, lanças, armaduras completas acham-se como numa cripta, cuja abóbada sustenta poderosas incrustações metálicas, inventadas pelo artista. A empáfia guerreira e militar foi-se embora, deixando em seu lugar o esqueleto de glórias irrisórias.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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