São Paulo, domingo, 20 de julho de 1997.



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FILOSOFIA
A sedução da teologia negativa

Este século talvez seja o mais apto desde o Renascimento a perceber a beleza de uma linguagem que esbarrou no inominável


JEAN-CLAUDE BERNADET
especial para a Folha

"The gentleman in the carriage was not handsome but neither was he particularly bad-looking; he was neither too fat nor too thin; he could not be said to be old, but he was not too young either." (*)
Gogol, "Almas Mortas"

1. Por volta de 1991, estivemos em São Tomé das Letras, procuramos um senhor de uns 50 anos que, se estou bem lembrado, chamava-se Tatá. Era dono de dois restaurantes. Eu não o conhecia, mas ele ainda gozava de certa fama, tinha aparecido em revistas como "O Cruzeiro" ou "Manchete", talvez até mesmo na televisão. Era célebre por ter visto e entrado em contato com extraterrestres.
A expectativa era de um encontro exótico. Após ter afirmado que não queria mais falar do assunto (e, de fato, durante a nossa conversa, apareceu um jornalista a quem recusou a entrevista solicitada), provavelmente por nos achar simpáticos e porque juramos que não éramos jornalistas, conversou conosco. Relatou muito brevemente suas experiências, sobretudo o fato de ter visto um disco voador cujas partes inferior e superior lhe apareceram simultaneamente, o que seria impossível no quadro de uma percepção humana normal, já que estava na Terra e o disco estava acima dele. Mas o sr. Tatá deteve-se principalmente sobre a razão pela qual não mais queria falar do assunto. Não era tanto que estivesse cansado de dar entrevistas, era que ele não podia falar. Então, nos explicou que os extraterrestres não são humanos, enquanto ele só podia falar uma linguagem humana; sendo assim, suas palavras não podiam se referir aos extraterrestres. Um extraterrestre, por não ser humano, seu espaço, seu tempo não podem ser designados ou comentados por uma linguagem que é exclusivamente humana. Saí dessa conversa transtornado, com a impressão de que São Tomé das Letras era, de fato, um importante centro de teologia e filosofia.
Para o sr. Tatá, há um ponto em que a nossa linguagem pára.
2. A teologia negativa postula que Deus é invisível, incognoscível e não pode ser nomeado. Apenas algumas citações apoiarão esta afirmação:
O Pseudo-Dionísio, o Areopagita (1), um dos principais representantes da teologia negativa, fala d' "Aquele que está além de qualquer essência e qualquer saber", d' "Aquele que escapa a qualquer conhecimento" (2). Referindo-se à "visão" de Moisés, escreve que "Moisés penetra na Treva verdadeiramente mística do desconhecimento, é aí que ele faz calar qualquer conhecimento positivo".
Nicolau de Cusa (1400-1464), um dos últimos grandes teólogos negativos, afirma que "é claro que tudo o que nós sabemos do verdadeiro (isto é, de Deus) é que sabemos que é impossível compreendê-lo tal como ele é exatamente" (3).
O poeta barroco (?) alemão Angelus Silesius (1624-1677) não inova em nada na matéria, mas seus curtos poemas colocam em termos densos, concisos e afetivos o essencial (ou o que me parece tal) da teologia negativa, pelo menos tal como foi praticada num de seus momentos áureos por teólogos e místicos renanos do fim da Idade Média, particularmente por Mestre Eckhart (c. 1260-1328), de que Angelus Silesius foi um grande leitor:
"O que Deus é, ninguém sabe". "O único objeto do meu amor, ignoro o que ele é." (4)
3. A teologia negativa não pode falar de Deus, no entanto ela fala. Inclusive, para nós, a teologia o que é senão um corpus de textos? E ela não tem outro objeto de fala, a não ser Deus. Está presa nesta morsa. O que está extraordinariamente expresso pela "Cantata da Nudez", de Tauler, discípulo de Mestre Eckhart: o místico se reduziu a nada, para desaparecer e encontrar sua noite, isto é, Deus. E Tauler escreve:
"Or, je n'ai pu le taire et j'ai dû l'avouer:
Je suis réduit à rien".
Sendo reduzido a nada, ele não poderia evidentemente dizê-lo. E exatamente na estrofe seguinte, Tauler escreve:
"Depuis que me voilà perdu dans cet abîme,
J'ai cessé de parler, je suis muet..." (5).
4. A incognoscibilidade de Deus tem profundas repercussões na linguagem. A começar pelo fato de que Deus não pode ser nomeado, sendo, por definição, acima da linguagem. No entanto, os textos têm como finalidade, na medida do possível, falar de Deus, o que é impossível. A essa impossibilidade de falar e de designar o seu objeto, a linguagem reage.
4.1. Uma primeira reação consiste em tentar elevar-se tanto quanto possível em direção ao objeto inatingível. Então, a linguagem se incha, ela se hipertrofia, trabalha o superlativo e o oxímoro.
O primeiro capítulo da "Teologia Mística" do Pseudo-Dionísio, que ele apresenta como uma prece, é um magnífico exemplo desse esforço da linguagem: "Trindade supra-essencial e mais que divina e mais que boa (...), conduza-nos não apenas além de qualquer luz, mas inclusive além do desconhecimento até o cimo mais elevado das Escrituras místicas. (...) A Treva (isto é, Deus) mais que luminosa do Silêncio (...) (esta Treva) brilha da luz mais brilhante no seio da mais negra escuridão, (...) (ela) enche de esplendores mais belos que a beleza as inteligências que sabem fechar os olhos (...)".
O próprio nome de Deus vê-se atingido. Chamá-lo de Deus é encontrar um substantivo que o designe, é se apropriar dele com uma palavra, fechá-lo numa palavra. E Deus está acima desta como de qualquer outra palavra. Talvez escolher um nome impronunciável, como a Torá, mas esta não é a opção de teologia negativa. O Pseudo-Dionísio prefere criar um neologismo significando que Deus está acima da palavra Deus, que Deus é mais que Deus: "Hypertheos".
O caráter hiperbólico e contraditório desta linguagem foi apontado por Leonardo Boff: "O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário humano. Daí se entenda o porquê dos superlativos, das hipérboles, das combinações de termos contraditórios. (...) Assim, se lê expressões como supra-essencial, supra-eminente, superinfinito, hipercósmico, superdivino. Ou, então, paradoxos como douta ignorância, sóbria ebriedade e outros deste jaez" (6).
O caráter hiperbólico pode provocar engulhos em tradutores. Maurice de Gandillac justifica sua tradução francesa do Pseudo-Dionísio: o francês suporta mal os neologismos, alguns deles levariam o leitor a uma "ginástica cansativa", enquanto outros, como supermundano ou arquipaternidade "o fariam sorrir". Assim, Gandillac aceitou uma parte do vocabulário, como supra-essencial e, "mais raramente", supraceleste, mas rejeitou "deliberadamente tanto supramundano (7) como hipercósmico" e preferiu "alongar o texto e falar do que não é deste mundo ou do que não é daqui da Terra. São igualmente perífrases que correspondem em nossa tradução a adjetivos tais como suprabom ou supraluminoso; dizemos, em geral: 'é pouco demais chamá-lo de bom ou de luminoso'. Que tenhamos razão ou não, basta que o leitor conheça o procedimento". Em realidade, não basta, porque, perdendo suas hipérboles, o texto perde seu tensionamento. Essa matéria textual, por assim dizer, abarrocada, expressa simultaneamente o esforço desmedido da linguagem para falar de Deus, a sua impossibilidade e o seu fracasso.
Não é na hipérbole que o texto se expressa, ele se expressa é no fracasso da hipérbole.
4.2. Essa impossibilidade de alcançar Deus combinada com o esforço constantemente reiterado para alcançá-lo leva a linguagem a um mecanismo de repetição, como aríete batendo contra uma porta que não se abre. O Pseudo-Dionísio: "Dizemos agora que esta Causa (Deus) não tem nem alma nem inteligência; que ela não possui nem imaginação, nem opinião, nem razão, nem inteligência; que ela não pode se expressar nem conceber, que ela não tem nem número, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem desigualdade, nem similitude, nem dissimilitude; que ela não fica imóvel nem se move; que ela não fica calma nem possui potência; que ela não é nem potência, nem luz; que ela não vive nem é vida; que ela não é nem essência, nem perpetuidade, nem tempo; que não se pode apreendê-la pela inteligência; que ela não é nem ciência, nem verdade, nem realeza, nem sabedoria, nem um, nem unidade, nem deidade, nem bem, nem espírito no sentido em que podemos compreendê-lo; nem filiação, nem paternidade, nem nada do que é acessível ao nosso conhecimento nem ao conhecimento de ser algum; que ela não é nada que pertença ao não-ser, mas também nada que pertença ao ser (...)". Numa certa altura, o texto pára, mas poderia continuar ou ter parado antes.
Essa mecânica repetitiva durará séculos. Angelus Silesius, embora busque a concisão, a ela não escapou:
"O que Deus é, ninguém sabe. Ele não é nem luz, nem espírito,
Nem beatitude, nem unidade, nem o que chamamos de deidade,
Nem sabedoria, nem inteligência, nem amor, nem vontade, nem bondade.
Nem coisa, nem, aliás, não-coisa, nem essência, nem afeto (...)".
É belo e trágico, porque, por mais que este texto (e quantos outros!) se tensione em direção a Deus, ele não deu um passo para frente, pois Deus continua inefável e inatingível pela linguagem.
Já que Deus é inefável e inatingível pela linguagem, não há o que dizer -para dizê-lo de forma curta e grossa.
5. A teologia negativa vivencia intensamente os limites da linguagem. Isto não é uma percepção atual, os próprios teólogos tiveram consciência desse fenômeno.
5.1. Uma forma de reação a esta impossibilidade da linguagem em alcançar Deus pode consistir na criação do que chamaria de linguagem paralela. Penso, mas não estou certo, devido à extrema dificuldade de compreensão de alguns textos (pelo menos, para mim), que esta é uma das operações feitas por Nicolau de Cusa em "A Douta Ignorância". Valendo-se de Pitágoras, De Cusa afirma "já que nenhum caminho está aberto para aceder às coisas divinas, que poderemos agora escolher os signos matemáticos por causa de sua incorruptível certeza", propondo-se a "explorar" o "máximo simples" (Deus) "por meio dos símbolos".
A partir daí, De Cusa constrói um sistema geométrico baseado na reta infinita, no triângulo, no círculo e na esfera, em que a linha é um triângulo, o triângulo, um círculo. Deixo a demonstração geométrica bastante simples, e passo à conclusão: "Agora que é manifesto que a reta infinita é, em ato, todas estas figuras (isto é, o triângulo, o círculo e a esfera) a um grau infinito, vemos por transposição, do mesmo modo, como o máximo ele-mesmo (isto é, Deus) é, em ato, no ponto mais alto de tudo o que está em potência na simplicidade absoluta" (grifo meu). As palavras que destaquei me parecem manifestar que o sistema assim construído é analógico e funciona por um mecanismo do tipo: assim como. Assim, elaborou-se uma linguagem paralela, e a conexão do sistema geométrico com o máximo é feita não por uma qualidade intrínseca quer do sistema quer do máximo, mas por uma afirmação do teólogo. Não vejo a "corda" que relaciona os dois termos, afora a afirmação "é manifesto".
O esforço empreendido por Nicolau de Cusa para superar a debilidade da linguagem esbarra numa similitude afirmada, mas que não manifesta uma necessidade de nenhum dos termos símeis. Penso que o sistema geométrico de Nicolau de Cusa não lhe permite ultrapassar afirmações feitas em "A Visão de Deus": "Bendito seja, Senhor (...), que me apascentas e alimentas com o leite das comparações até me concederes um alimento mais forte (...), és o Deus escondido, infinito. A infinidade, porém, é incompreensível, seja qual for o modo de compreensão" (8).
5.2. Por não poder falar do que ela fala, a linguagem da teologia negativa tende a ser pobre e repetitiva. Ela aponta para a impossibilidade de falar. Isto, o Pseudo-Dionísio, que percebe as consequências da inefabilidade e incompreensibilidade de Deus sobre seus textos, o expressa claramente quando relaciona a "Teologia Mística" com outras obras de sua autoria. A "Teologia Simbólica" "era necessariamente mais volumosa que 'Esboços Teológicos' ou que os 'Nomes Divinos'±", pois os "símbolos exigem mais palavras do que o resto". "De fato, mais alto nos elevamos e mais nossas palavras tornam-se concisas, pois os inteligíveis apresentam-se de forma mais e mais sinótica. Agora, então, que vamos penetrar na Treva que está além do inteligível, não vai se tratar nem mais de concisão, mas antes de uma cessação total da palavra e do pensamento (...), na última etapa da ascensão estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao inefável".
Ou bem se tem um duplo, cuja conexão com Deus pode ser afirmada, mas não verificada, é o que penso ocorrer com Nicolau de Cusa. Ou bem se tem o silêncio.
6. O que se destaca da linguagem da teologia negativa é a sua impotência diante do incognoscível, a sua tarefa negativa, isto é, não conseguir falar do que ela quer falar. Mas a leitura dos textos permite encontrar uma força nos traços mesmos desta impotência.
A hipertrofia pode nos transmitir uma sensação de resistência da linguagem. Diante da sua impossibilidade de atingir o objeto a que ela se propõe, ao invés de silenciar, ela duplica os seus esforços. Como tais esforços permanecem vãos, o que ela acaba exibindo são os seus esforços. Neste sentido, ela se apresenta como em luta constante contra os seus limites.
Nas citações acima do Pseudo-Dionísio e de Angelus Silesius, encontramos uma procissão de negações que sugerem um movimento inverso ao da hipertrofia. Enquanto essa gera um excesso, as negações -menos, sempre menos- acabam criando um território (? -não num sentido espacial) ou um tempo (?) que não é preenchível.
Ficando no nível dos textos (e não da experiência mística), é para nós quase impossível conceber... nada. Da Vinci: a natureza tem horror ao vazio. E nós também. Mesmo o nada, a nossa tendência é tentar nomeá-lo (nada), defini-lo, conceituá-lo, isto é, transformá-lo num objeto linguístico, num objeto de pensamento, vale dizer, transformá-lo em alguma coisa. Acontece que essas sequências negativas descartam qualquer objeto que queiramos pôr no lugar, porque lhe será aposta a negação "nem". Esse território (?), donde a linguagem rechaça qualquer coisa que queiramos colocar, propicia, pelo menos poeticamente falando, intuições -que não são comentáveis, já que o simples fato de tentar comentá-las implicaria, de alguma forma, em preenchê-lo, enquanto a linguagem se desmancha para esvaziá-lo. Textos como estes do Pseudo-Dionísio ou de Angelus Silesius, lidos com concentração, lentamente e em voz baixa, provocam uma espécie de vertigem que nos encaminha para a intuição do nada.
De modo que a linguagem, na própria manifestação de sua impotência, nos sugere com força a possibilidade de intuirmos uma das afirmações básicas da teologia negativa, a saber, Deus é nada (proposição exatamente sinônima de Deus é tudo).
Afirmações como Deus é nada foram, às vezes, interpretadas como matizadas de ateísmo, e consideradas com máxima desconfiança pelo pensamento dogmático. Nada mais errôneo, pois o tensionamento da linguagem contra os seus limites é a manifestação de seu desejo de Deus, e esse nada, que ela nos leva a intuir, nos oferece a possibilidade de intuir a possibilidade de uma via, não mediatizada (sem linguagem), em direção a Deus.
A linguagem nos encaminha para Deus ou para o silêncio (o que, no quadro da teologia negativa, dá na mesma), não tanto pelas suas afirmações neste sentido, mas pelo seu próprio mecanismo.
7. Como vimos no início deste texto, seria errôneo pensar que essa linguagem, que esbarra nos seus limites e manifesta sua impotência diante do inominável e do indizível, seja um traço exclusivo da teologia negativa, que teria se esgotado após a eclosão da teologia renana do fim da Idade Média e início do Renascimento, com ecos tardios, como é o caso de Angelus Silesius. Possivelmente seja o nosso século o mais apto desde o Renascimento a perceber, ou mesmo a vivenciar, a beleza e a tragicidade desse esbarro.
Falei da beleza e tragicidade dessa linguagem. Beleza fica por conta da intensa emoção que sinto ao ler esses textos radicais, e por causa de sua radicalidade. Tragicidade, que remete ao impasse da linguagem diante do incognoscível, vai na esteira de Clément Rosset.
Na "Lógica do Pior" (9), Rosset escreve: "O trágico começa (ou começaria) quando não há (ou quando não houvesse) mais nada a dizer nem a pensar. Nesse sentido, o trágico recobre bem adequadamente o conceito de pane: ele designa um discurso detido, um pensamento imobilizado. (...) É trágico o que deixa mudo todo discurso, o que se furta a toda tentativa de interpretação. (...) O trágico é, então, o silêncio. (...) O trágico é isso que não se pensa (não há leis do trágico), mas também isso a partir do que todos os pensamentos são -em um certo nível- revogados. Ele designa assim, num certo sentido, a impossibilidade da filosofia. Acrescentar-se-á: talvez uma de suas mais intensas razões de ser".
A alteração que se deveria fazer para adequar o trágico de Rosset à teologia negativa é extirpar a idéia de pane. Esta, de fato, sugere um defeito do sistema, que pode ser consertado, enquanto na teologia negativa é inerente ao discurso a impossibilidade de falar do incognoscível, como é inerente ao incognoscível ser falado. Neste sentido, a teologia negativa é mais trágica do que a tragicidade que Rosset sugere neste texto. De qualquer forma, ele não está longe de teologia negativa.
Em "L'Objet Singulier" (10), Rosset trabalha uma "ontologia do real" que, distanciada de Platão, apóia-se no singular. Chega assim a uma ontologia "cuja particularidade é não se apoiar nem no pensamento de seu ser nem no de sua unidade, mas tão-somente sobre a consideração de sua singularidade. Apoio que pode, sem dúvida, aparecer para sempre duvidoso, já que a consideração sobre a qual se fundamenta tal ontologia é obscura no seu princípio: consideração de um real que, enquanto singular, não poderia nunca ser visto nem descrito. Nada há a responder a essa objeção, deve-se, ao contrário, confirmar constantemente a sua legitimidade. A ontologia do real é uma ontologia negativa, comparável aos sistemas que a história da filosofia reconheceu como teologias negativas, como os de Dionísio, o Areopagita, de Mestre Eckhart e de Nicolau de Cusa, dos quais ela não difere senão pela circunstância de que aplica ao real os atributos que os teólogos negativos costumam atribuir a Deus. Afora esta única porém importante diferença, a ontologia do real vai ao encontro dos princípios da teologia negativa, convencida de que não se pode ver senão pela cegueira, conhecer senão pelo não-conhecimento, compreender senão pela desrazão, para retomar os termos de uma célebre fórmula de Eckhart" (grifos no original). Circunstância de fato importante, porque este pensamento, sem deus, ficará também sem mundo.
8. Jacques Derrida tampouco ficou indiferente à teologia negativa, que, em "Salvo o Nome" (11), ele comenta a partir de Angelus Silesius. Ele a percebe como um corpo de textos, destaca ser ela uma linguagem que põe os seus limites à prova e se volta sobre si mesma, num duplo movimento de "esquivamento e transbordamento".
Insiste sobre o movimento da teologia negativa em "direção do outro absoluto" (grifo meu) e pergunta-se se "a extrema tensão de um desejo" na busca do outro absoluto não leva a teologia negativa a "renunciar a seu próprio impulso, ao seu próprio movimento de apropriação". Podemos nos perguntar se estas afirmações de Derrida não correspondem, com um vocabulário moderno, a colocações feitas por Mestre Eckhart.
Uma afirmação de Derrida, cheia de volutas e contradições, tenta captar o aspecto da teologia negativa de que trata este texto: "Como se fosse preciso ao mesmo tempo salvar o nome e tudo salvar, exceto o nome, salvo o nome (nas duas acepções da expressão; grifo no original), como se fosse preciso perder o nome para salvar aquilo que porta o nome, ou aquilo na direção do qual se dirige por meio do nome".
Dos filósofos franceses atuais, Derrida é provavelmente aquele cuja obra tem mais condições de dialogar com a teologia negativa. Mas não penso que ela seja um problema para seu trabalho. Ele pode pensar a respeito, ela não coloca seu pensamento em xeque.
9. Para Wittgenstein, a teologia negativa é um problema no centro de seu sistema. Tal afirmação pode parecer gratuita, já que Ludwig Wittgenstein nunca se referiu à teologia negativa, pelo menos explicitamente (até onde vão os meus conhecimentos). Talvez o fato de ele não a ter comentado lhe dê um lugar inesperado na sua obra.
9.1. Gostaria inicialmente de voltar às minhas dificuldades em entender Nicolau de Cusa. O sistema apresentado no "Tractatus Logico-Philosophicus" (12) afirma que "os elementos da figuração estando uns em relação aos outros de um modo determinado, isto representa as coisas estando umas em relação às outras (...)" (2.15). Ou seja, é como se tivéssemos um quadro (este é o termo usado na tradução francesa para significar o "figuração" da tradução brasileira) (13) cujas partes mantêm entre si relações análogas às mantidas pelas coisas do mundo. Assim, a figuração pode se estender à realidade, isto é, atingi-la (2.1511). A analogia não se dá no nível dos elementos, mas no nível da forma da representação (2.17). E, afirmação chave, "para reconhecer se uma figuração é verdadeira ou falsa devemos compará-la com a realidade" (2.223), já que "não podemos reconhecer apenas pela figuração se ela é verdadeira ou falsa" (2.224).
Ora, para que esse sistema, em que a figuração pode atingir a realidade e em que é possível afirmar a veracidade ou falsidade da figuração, funcione, é necessário fazer também a seguinte afirmação: "Um estado de coisas é pensável significa: podemos construir-nos uma figuração dele" (3.001), ou seja, é necessário que o mundo seja pensável para que se possa representá-lo. O sistema geométrico construído por Nicolau de Cusa me parece semelhante ao de Wittgenstein, menos em dois pontos: o estado de coisas é pensável, e podemos comparar a figuração com a realidade. Essas duas operações não são possíveis na teologia de De Cusa, o que leva seu sistema ao paralelismo. Wittgenstein pode usar o mundo como referencial, Nicolau de Cusa não pode.
Aliás, pergunto-me se, no pensamento de Wittgenstein, a relação entre a proposição e o mundo, a qual permite aferir a veracidade da primeira, não teria nunca sido objeto de nenhuma dúvida. Ray Monk (14) relata que Wittgenstein teria lido "uma reportagem sobre um processo em Paris envolvendo um acidente de carro. No tribunal, uma das partes havia representado um modelo do acidente e ocorreu-lhe, então, que o modelo poderia muito bem representar, ou figurar, o acidente, dada a correspondência entre as suas partes (casas, carros e pessoas em miniatura) e as coisas reais (casas, carros e pessoas). Ocorreu-lhe ainda que, nessa analogia, poder-se-ia dizer que uma proposição serve de modelo, ou figuração (ou imagem), de um estado de coisas, em virtude de uma correspondência similar entre as suas partes e o mundo. O modo como as partes de uma proposição se combinam -a estrutura da proposição- indica uma combinação possível dos elementos da realidade, de um estado de coisas possível". Possível, desde que se confronte a simulação com o acidente real e daí se conclua quanto à similitude. No entanto, do exposto por Monk, nada há na simulação e na sua estrutura que permita concluir que é uma simulação verdadeira do acidente real. Penso que é com este problema que Nicolau de Cusa e seu sistema geométrico se defrontam.
9.2. A proposição de Wittgenstein que é fácil de relacionar com a teologia negativa é a última do "Tractatus Logico-Philosophicus": "O que não se pode falar, deve-se calar" (7), sendo que o que não se pode falar, tampouco se pode pensar: "Não podemos pensar o que não podemos pensar, por isso também não podemos dizer o que não podemos pensar" (5.61). A última proposição relaciona-se, no pensamento de Wittgenstein, com a ética, mas o seu cheiro de teologia negativa é demais para ser ignorado, tanto mais que as aberturas místicas do "Tractatus" são inegáveis.
Nessa obra híbrida que, no dizer de Ray Monk, combina "teoria lógica e misticismo religioso", há um além do mundo e este além parece ser, por definição, indizível, é o que aparece em proposições como: "Como é o mundo é perfeitamente indiferente para o que está além. Deus não se manifesta no mundo" (6.432), ou: "Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico" (6.522). O caráter indizível do que está além do mundo não exclui que, de alguma forma, ele possa ser ..........., do modo seguinte, (conforme o comentário de um poema feito por Wittgenstein e citado por Ray Monk): "É assim que as coisas são: se não tentamos exprimir o que é inexprimível, então nada se perde. Mas o inexprimível estará -inexprimivelmente- contido naquilo que foi expresso".
Tendo a acreditar, sempre seguindo Ray Monk, que o indizível não surge por si só inexprimivelmente no expresso, mas sua possibilidade de surgimento resultará de uma luta da linguagem consigo mesma, conforme a expressão de Wittgenstein numa palestra: "Minha inclinação, e creio que a de todos os homens que tentaram escrever ou falar sobre ética ou religião, era lançar-se contra os limites da linguagem. Esse lançar-se contra as grades da nossa jaula é algo perfeita e absolutamente sem esperança (...) ética, é uma tentativa de dizer algo que não pode ser dito, de se arrojar contra os limites da linguagem". Talvez tais afirmações pronunciadas a respeito da ética possam ser aplicadas à religião: "Posso imaginar uma religião em que não haja proposições doutrinais e em que, portanto, não haja fala. Obviamente, a essência da religião não pode ter nada a ver com o fato de ter fala". Sem falar da teologia negativa, Wittgenstein fala da teologia negativa.
A teologia negativa é o calcanhar-de-aquiles de um século que escolheu a linguística como musa, e o "Tractatus Logico-Philosophicus" está no centro do torvelinho.
10. Fima "estava sentado num café à beira-mar, observando dois pescadores jogando gamão. Na verdade, não estava de fato observando os pescadores, e sim um pastor alemão sentado, atento, numa cadeira entre ambos. As orelhas do cão apontavam seriamente para a frente, como se estivesse escutando atento à próxima jogada, e ficava seguindo os dedos dos jogadores, e o rolar dos dados e o movimento das pedras; seus olhos deram a Fima a impressão de estarem repletos de concentração e fascínio. Fima jamais vira, antes ou depois, um esforço tão profundo para entender o ininteligível, como se, na sua ansiedade de decifrar o jogo, o cão tivesse conseguido um certo grau de desincorporação. Com certeza, é assim que devemos olhar para o que está além de nós. Apreender o máximo que pudermos, ou ao menos apreender a nossa incapacidade de apreender" -Amóz Oz, "Fima" (15).

Notas:
1. O conjunto de textos conhecidos como "corpus dionysiacum" aparece em 533. Até hoje a sua autoria é misteriosa.
2. "Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l'Aréopagyte". Tradução, comentários e notas de Maurice de Gandillac. Paris, Aubier, 1995 (1943) ("Bibliothèque Philosophique"). Estas, como todas as traduções que faço a partir de traduções francesas, são literais.
3. Nicolas de Cusa. "De la Docte Ignorance". Paris, Felix Alcan, 1930. Tradução de L. Moulinier, introdução de Abel Rey.
4. Angelus Silesius. "Le Pélerin Chérubinique". Paris, Albin Michel, 1994 ("Spiritualités Vivantes"). Tradução de Camille Jordens.
5. Johannes Tauler. "Cantate de la Nudité". Em "Hermès, Recherche sur l'Expérience Spirituelle". Paris, Deux Océans, 1981. Número especial: "Le Vide, une Expérience Spirituelle en Occident et en Orient". Deixo o texto em francês devido à sua extrema dificuldade de tradução. O termo traduzido por "rien" é possivelmente, em alemão, "das Nichts", que se opõe a "das Nichtige", que em francês se traduz por "néant". Se "das Nichtige" pode ser compreendido como uma anulação, um aniquilamento, "das Nichts" é uma espécie de tábua rasa que "abre o espaço do ser". Parece-me que a língua portuguesa não consegue fazer essa diferenciação.
6. Leonardo Boff, "Mestre Eckhart - A Mística da Disponibilidade e da Libertação". Em: "Mestre Eckhart - O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos". Petrópolis, Vozes, 1991.
7.De Gandillac usa as duas expressões: "supermundano" e "supramundano".
8. Nicolau de Cusa, "A Visão de Deus". Lisboa, Calouste Gubelkian, 1988.
9. Clément Rosset, "Lógica do Pior". RJ, Espaço e Tempo, 1989.
10. Clément Rosset, "L'Objet Singulier". Paris, Minuit, 1979.
11. Jacques Derrida, "Salvo o Nome". Campinas, Papirus, 1995.
12. Ludwig Wittgenstein, "Tractatus Logico-Philosophicus". SP, Companhia Editora Nacional/Edusp, 1968 (tradução de J.A. Giannotti).
13. Ludwig Wittgenstein, "Tractatus Logico-Philosophicus". Paris, Gallimard, 1961 (tradução de Pierre Klossowski).
14. Ray Monk, "Wittgenstein, o Dever do Gênio", SP, Companhia das Letras, 1995.
15. Amóz Oz, "Fima". SP, Companhia das Letras, 1996.



Jean-Claude Bernadet é escritor, crítico de cinema e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. É autor, entre outros, de "Aquele Rapaz" (Brasiliense).


(*) O senhor na carruagem não era bonito, mas também não era particularmente feio; ele não era nem muito gordo nem muito magro; não se podia dizer que fosse velho, mas também não era jovem.



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