|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 501 d.C.
A filosofia de Espinosa é uma ética do contentamento intelectual e da liberdade individual e política; essa ética é a verdadeira entrada da filosofia na modernidade, pois se oferece liberada do peso da transcendência
teológico-religiosa ameaçadora e da normatividade repressiva da moral
Paixão, ação e liberdade em Espinosa
por Marilena Chaui
No "Tratado Político", Espinosa
escreve: "O homem é livre na
exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo
as leis da natureza humana (...), a liberdade não se confunde com a contingência. E, porque a liberdade é uma virtude
ou perfeição, tudo quanto no homem
decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade. Assim, quando consideramos um homem como livre, não
podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir
um mal a um bem (...). Portanto aquele
que existe e age por uma necessidade de
sua própria natureza, age livremente (...).
A liberdade não tira a necessidade de
agir, mas a põe" (TP, II, 7 e 11).
Essas palavras indicam pelo menos
duas rupturas com a tradição moral: em
primeiro lugar, a liberdade não se confunde com um poder voluntário para escolher entre alternativas, ou para fazer
ou deixar de fazer alguma coisa; em segundo, se a impotência não pode ter a
potência da liberdade como causa, então
não podemos atribuir a esta o pecado
original ou a culpa originária do homem.
Como, portanto, há de ser uma ética
que não identifica liberdade e livre-arbítrio da vontade e que não tem como ponto de partida a natureza culpada ou viciosa dos seres humanos?
A filosofia de Espinosa (1632-1677) é
uma ética da alegria, da felicidade, do
contentamento intelectual e da liberdade
individual e política. Essa ética é a verdadeira entrada da filosofia na modernidade, pois se oferece liberada do peso de
duas tradições: a da transcendência teológico-religiosa ameaçadora, fundada na
idéia de culpa originária, e a da normatividade repressiva da moral, fundada na
heteronomia do agente submetido a fins
e valores externos não definidos por ele.
A primeira, coloca a ética sob a tutela da
teologia do pecado, imaginando a liberdade como livre-arbítrio e transgressão
aos mandamentos divinos. A segunda
submete a ética às idéias imaginativas de
bom e mau, isto é, a modelos externos da
conduta virtuosa (conforme ao bem) e
viciosa (conforme ao mal), identificando
a liberdade com o poder para escolher
entre valores postos como regras e normas para o agente moral. Ambas consideram o corpo a causa das paixões da alma e julgam as paixões vícios em que caímos por nossa culpa, contrariando as leis
da Natureza e a vontade de Deus.
Homem e natureza
A ética espinosana busca o livre exercício do corpo e da
alma. Sua viga mestra é a idéia de que o
homem é parte imanente da Natureza
que possui a peculiaridade de não ser
apenas parte e sim capaz de tomar parte
na atividade da própria Natureza.
O que é a Natureza? É a expressão imanente de uma atividade absolutamente
infinita ou a Substância, una e única, unidade infinitamente complexa constituída por infinitos atributos infinitos, isto é,
por infinitas ordens de realidade diferenciadas, unificadas pela potência infinita
de autoprodução e de produção de todas
as coisas.
Na medida em que a Substância é a
unidade imanente e ativa de seus infinitos atributos infinitos, isto é, de uma
complexidade causal ou produtora, sua
ação se realiza diferenciadamente, cada
uma de suas qualidades ou atributos
produzindo ordens de realidade ou efeitos próprios ou exprimindo de maneira
própria a ação comum do todo, pois os
atributos são potências infinitas de produção do real.
A atividade do atributo Extensão dá
origem aos corpos; a do atributo Pensamento, às idéias. Assim, a ação dos atributos produz regiões diferenciadas de
realidade, mas essas regiões exprimem
sempre o mesmo Ser. Em outras palavras, a unidade e a relação entre os entes
produzidos pelos atributos são internas à
própria Substância. O que um atributo
realiza numa esfera de realidade é realizado de maneira diferente noutra por
um outro atributo, e as atividades de ambos são ações da mesma Substância
complexa.
Os seres humanos, constituídos pela
união de um corpo e uma mente, não são
substâncias criadas, mas modos finitos
de Deus. Ou, como demonstra Espinosa,
são partes da natureza infinita de Deus.
O que é o corpo humano? Um modo finito do atributo Extensão, isto é, um indivíduo extremamente complexo constituído por uma diversidade e pluralidade
de corpúsculos duros, moles e fluidos relacionados entre si pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento
e repouso. É uma unidade estruturada:
não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos, portanto é
um indivíduo. Sobretudo é um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é
obtido por mudanças internas contínuas
e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações
centrípeto e centrífugo, de sorte que, por
essência, o corpo é relacional: é constituído por relações internas entre seus órgãos, por relações externas com outros
corpos e por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por
eles afetado sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos
internos e externos, pressupõe e põe a intercorporeidade como originária.
Tradição subvertida
Se Espinosa
subverte a tradição negando que o homem seja uma substância e um composto substancial, e afirmando que o corpo é
uma individualidade dinâmica e intercorpórea, maior ainda é a subversão
quanto à alma, pois não a define como
substância simples alojada ou aprisionada no corpo, mas como idéia do corpo e
idéia de si mesma. Expressão finita de
um força infinita, a mente humana é
uma idéia. De que é ela idéia? É idéia de
seu corpo e idéia dessa idéia, ou idéia de
si mesma como idéia de seu corpo.
Espinosa começa negando que corpo e
alma sejam substâncias finitas e demonstra que são modificações ou expressões singulares da atividade imanente de uma substância única e infinita.
Assim, a comunicação corpo e alma, de
um lado, e, de outro, a singularidade do
homem como unidade de um corpo e de
uma alma são imediatas. Em outras palavras, a união corpo e alma e a comunicação entre eles decorre direta e imediatamente do fato de serem expressões finitas determinadas de uma mesma e única
substância, cujos atributos se exprimem
diferenciadamente numa atividade comum a ambos.
Porque são efeitos simultâneos da atividade de dois atributos substanciais de
igual força ou potência e de igual realidade, corpo e alma não estão numa relação
hierárquica de comando, o corpo comandando a alma na paixão e no vício, a
alma assumindo o comando sobre o corpo na ação e na virtude.
Corpo e alma estão sob as mesmas leis
e sob os mesmos princípios, expressos
diferenciadamente. Rompe-se, portanto,
a longa tradição hierárquica que definira
a alma como superior ao corpo e devendo ter comando sobre ele.
A alma -mens, a mente, na linguagem
de Espinosa- é uma força pensante.
Pensar é conhecer alguma coisa afirmando ou negando sua idéia. Afirmar ou negar são atos singulares de afirmação ou
negação, de sorte que uma idéia ou um
pensamento é um ato de pensar ou atividade pensante que se realiza como imaginação, desejo e reflexão.
Ter e ser consciência
O que é pensar, em suas várias formas? Pensar é afirmar ou negar alguma coisa. É ter consciência de alguma coisa e ser consciência
de alguma coisa. Isso significa que a alma, como potência pensante, está natural e essencialmente voltada para os objetos que constituem os conteúdos ou as
significações de suas idéias ou imagens.
É de sua natureza estar internamente ligada a seu objeto porque não é senão atividade de pensá-lo. Se assim é, podemos
avaliar a subversão espinosana ao definir
e demonstrar que a alma é idéia do corpo e idéia da idéia do corpo, isto é, de si
mesma como consciência de seu corpo.
Espinosa demonstra que a ordem e conexão das idéias na alma é a mesma que
a ordem e conexão das causas no corpo,
pois sendo ambos modos ou efeitos imanentes dos atributos infinitos que constituem a unidade da Substância, as idéias e
as coisas possuem a mesma origem e seguem as mesmas leis, mas de maneira
qualitativamente diferenciada porque
referidas a esferas diferenciadas de realidade. Há, pois, correspondência entre os
acontecimentos corporais e os psíquicos,
manifestando a causalidade única da
Substância. Somos a unidade de um
complexo corporal (os milhares de corpos que constituem nosso corpo) e de
um complexo psíquico (as inumeráveis
idéias que constituem nossa mente ou
nossa alma). A ligação entre a alma e o
corpo não é algo que lhes acontece, mas é
o que ambos são quando são corpo e alma humanos.
De que a alma é idéia? Não é idéia de
uma máquina corporal que ela observaria de fora e sobre a qual ela formaria representações. Espinosa demonstra com
precisão: ela é idéia das afecções corporais. Em outras palavras, é consciência
dos movimentos, das mudanças, das
ações e reações de seu corpo na relação
com outros corpos, das mudanças no
equilíbrio interno de seu corpo sob a
ação das causas externas. A alma é consciência da vida de seu corpo e consciência de ser consciente disso. Deixa de existir, portanto, o problema metafísico da
união entre a alma e o corpo: é da essência da alma, por ser atividade pensante
(ou, em nossa linguagem contemporânea, atividade consciente), estar ligada
ao seu objeto de pensamento, o corpo.
Melhor, à vida do seu objeto. Como demonstra Espinosa, a alma só tem consciência de si por meio da consciência das
modificações, dos movimentos, da vida
ou das afecções de seu corpo.
No entanto, não nos precipitemos. Dizer que a alma é idéia das afecções de seu
corpo e que só é idéia de si por meio delas
não significa, de maneira alguma, que
por isso a alma seria e teria imediatamente um conhecimento verdadeiro de
seu corpo e de si. Pelo contrário. A alma
começa e vive num conhecimento confuso de seu corpo e de si. Tem idéias imaginativas e vive imaginariamente.
Como os demais pensadores do século
17, Espinosa emprega as palavras "imaginar" e "imaginação" com o sentido de
"perceber" e "percepção", isto é, imaginar não é inventar pela fantasia (como
hoje pensamos), mas perceber sensorialmente as coisas. Imaginar não é uma atividade da alma, mas do corpo. Afetando
outros corpos e sendo por eles afetado de
inúmeras maneiras, o corpo cria imagens de si a partir do modo como é afetado pelos demais corpos. Imaginar exprime a primeira forma da intercorporeidade, aquela na qual a imagem do corpo e
de sua vida é formada pela imagem que
os demais corpos oferecem do nosso e
pelas imagens que ele produz deles.
A imagem, por nascer do sistema das
afecções corporais, é instantânea e momentânea, volátil, fugaz e dispersa, não
oferecendo a duração contínua da vida
do próprio corpo, mas instantes fragmentados dela. Nascida de encontros
corporais, a imagem institui o campo da
experiência vivida como relação imediata e abstrata com o mundo. Imediata,
porque contato direto de nosso corpo
com os outros corpos. Abstrata, porque
fragmentada, parcial, mutilada, separada do conhecimento verdadeiro das causas do imaginar e das imagens.
Consciente do corpo por meio dessas
imagens, a mente produz idéias imaginativas com que representa seu corpo e
outros corpos, tendo por isso dele e deles
um conhecimento inadequado ou imaginativo, isto é, não o conhece tal como é
em si mesmo, nem tal como é sua vida
própria, mas o pensa segundo imagens
externas que ele recebe ou forma na relação intercorporal. A alma pensa o seu
corpo e a si mesma segundo a ação causal externa exercida sobre nosso corpo
pelos outros corpos e sobre eles pelo nosso. Por esse motivo, na experiência imediata, não possui uma idéia verdadeira
dos corpos exteriores, pois os conhece
segundo as imagens que seu corpo deles
forma a partir das imagens que eles formaram dele, de sorte que há espelhamento dele neles e deles nele e é isso o
objeto atual que constitui o ser da alma.
Marca da imagem
Ora, a marca da
imagem é a abstração, no sentido rigoroso do termo: a imagem é o que está separado de sua causa real e verdadeira e que,
por esse motivo, leva a alma a fabricar
causas imaginárias para o que se passa
em seu corpo, nos demais corpos e nela
mesma, enredando-se num tecido de explicações ilusórias sobre si, sobre o seu
corpo e sobre o mundo porque explicações parciais, nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas.
Isso não significa, porém, como sempre afirmou a tradição intelectualista,
que a alma esteja impedida do conhecimento verdadeiro de seu corpo, de si e
do mundo, porque estaria essencialmente ligada a seu corpo como se encarcerada numa prisão.
O bloqueio à verdade não nasce da ligação corpo-alma, e sim do fato de que a
alma deixa a iniciativa do conhecimento
ao corpo e este só é capaz de imaginar,
pois não é de sua natureza pensar. O
acesso ao verdadeiro abre-se para a alma
quando esta assume sua natureza própria, sua potência própria, isto é, o poder
para pensar, quando, então, toma a iniciativa do conhecimento.
Ora, é aqui que, mais uma vez, Espinosa inova de maneira radical. Como a alma passa da confusão entre o poder imaginante de seu corpo e seu próprio poder
pensante à iniciativa do conhecimento?
Como poderá ter uma força para pensar
equivalente à força de seu corpo para
imaginar?
Longe de afirmar, como faria a tradição intelectualista, que tal iniciativa depende de um afastamento da alma com
relação ao corpo, de um desligamento
voluntário que ela operaria, distanciando-se de seu corpo, Espinosa demonstrará que, pelo contrário, será aprofundando essa relação que a alma poderá tomar a iniciativa do conhecimento. Para
tanto, é preciso compreendermos a forma originária da ligação corpo-mente.
As afecções do corpo e as idéias das
afecções na alma não são representações
cognitivas desinteressadas. Se o fossem,
seriam apenas experiências dispersas e
sem sentido. São modificações da vida
do corpo e significações psíquicas dessa
vida corporal, fundadas no interesse vital
que, do lado do corpo, o faz mover-se
(afetar e ser afetado por outros corpos) e,
do lado da alma, a faz pensar. Qual é o interesse vital? O interesse do corpo e da alma é a existência e tudo quanto contribua para mantê-la.
Empregando um conceito muito caro
aos pensadores seiscentistas, Espinosa se
refere ao desejo de vida do corpo e da alma com o termo conatus, que significa
"esforço para se conservar na existência". Os humanos, como os demais seres,
são dotados de conatus, com a peculiaridade de que somente os humanos são
conscientes de possuir o esforço de perseveração na existência. Sendo uma força interna para existir e conservar-se na
existência, o conatus é uma força interna
positiva ou afirmativa, intrinsecamente
indestrutível, pois nenhum ser busca a
autodestruição. O conatus possui, assim,
uma duração ilimitada até que causas exteriores mais fortes e mais poderosas o
destruam. Definindo corpo e alma pelo
conatus, Espinosa os define como potências de existir e agir internamente indestrutíveis, portanto como vida. Assim,
na definição da essência humana, não
entra a morte. Esta é o que vem do exterior, jamais do interior.
Apetite e desejo
No corpo, o conatus se chama apetite, na alma, desejo. Eis
por que Espinosa afirma que a essência
do homem é desejo, consciência do que,
no corpo, se chama apetite. Assim, dizer
que somos apetite corporal e desejo psíquico é dizer que as afecções do corpo
são afetos da alma. Em outras palavras,
as afecções do corpo são imagens que, na
alma, se realizam como idéias afetivas ou
sentimentos. Assim, a relação originária
da alma com o corpo e de ambos com o
mundo é a relação afetiva. Nossas idéias
(sejam verdadeiras ou inadequadas) são
afetos.
Afecções e afetos, exprimindo nosso
conatus, obedecem à lei natural que rege
o esforço de preservação na existência.
Isso significa, antes de mais nada: somos
passivos (ou estamos na paixão), enquanto somos apenas causa parcial do
que se passa em nós, e somos ativos (ou
estamos na ação), quando somos a causa
total do que se passa em nós. Somos causa inadequada de nossos afetos quando
são causados em nós pelo poder de causas externas; somos causa adequada de
nossos afetos quando são causados em
nós por nossa própria potência interna.
Ser causa inadequada é ser passivo e passional. Ser causa adequada é ser ativo e livre.
Com a definição da paixão e da ação
pelo conatus como causa eficiente inadequada ou adequada, Espinosa afasta a
suposição tradicional de que somos movidos (seja na paixão, seja na ação) por
causas finais externas e que seríamos livres quando nosso apetite e nosso desejo
fossem levados por nossa vontade a escolher os fins bons e virtuosos. Somos
causas eficientes, apenas. Não causas finais, a não ser como explicações imaginárias de nossos desejos, paixões e ações.
Donde outra inovação espinosana: bom
e mau não são valores em si, nem correspondem a qualidades que existiriam nas
próprias coisas, nem são modelos externos das virtudes e dos vícios. Bom é tudo
quanto aumente a força de nosso conatus; mau, tudo quanto a diminua. Eis por
que Espinosa afirma que algo não é desejado por nós por ser bom, mas é bom
porque o desejamos. Os propósitos e intenções que realizamos, passiva ou ativamente, não são fins externos escolhidos por nossa vontade, mas exprimem a
causalidade eficiente de nosso apetite e
de nosso desejo, isto é, de nosso conatus.
A lei natural da autoconservação, no
caso dos humanos, não determina apenas a conservação da existência como
perseverança no mesmo estado (como
ocorre com os demais seres da Natureza), mas a determina como perseverança
no ser e, por esse motivo, determina a variação de intensidade do conatus. Nosso
ser é definido pela intensidade maior ou
menor da força para existir -no caso do
corpo, da força maior ou menor para
afetar outros corpos e ser afetado por
eles; no caso da alma, da força maior ou
menor para pensar. A variação da intensidade da potência para existir depende
da qualidade de nossos apetites e desejos
e, portanto, da maneira como nos relacionamos com as forças externas, sempre muito mais numerosas e mais poderosas do que a nossa. A força do desejo
aumenta ou diminui conforme a natureza do desejado, e a intensidade do desejo
aumenta ou diminui conforme este seja
ou não conseguido, havendo ou não satisfação.
Alegria e tristeza
O desejo realizado aumenta nossa força para existir e
pensar. Chama-se alegria, definida por
Espinosa como o sentimento que temos
de que nossa capacidade existir aumenta, chamando-se amor quando atribuímos esse aumento a uma causa externa
(o objeto do desejo). O desejo frustrado
diminui nossa força para existir e pensar.
Chama-se tristeza, definida por Espinosa como o sentimento que temos de que
nossa capacidade para existir diminui,
chamando-se ódio, se considerarmos essa diminuição existencial um efeito proveniente de uma causa externa (o objeto
do desejo). Todos os demais apetites e
afetos são derivados ou variantes dos três
originários: desejo, alegria e tristeza.
Na vida imaginária, as afecções corporais e os afetos são paixões. Estas, diz Espinosa, não são vícios nem pecados nem
desordem nem doença, mas efeitos necessários do fato de sermos uma parte finita da Natureza, circundados por um
número ilimitado de outras que, mais
poderosas e mais numerosas do que nós,
exercem poder sobre nós. Além disso,
como vimos, a relação originária do corpo com o mundo é a imagem e a da alma
com o corpo e o mundo, a idéia imaginativa. A passividade natural possui, assim,
três causas: a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua satisfação, a força das causas externas maior
do que a nossa e a vida imaginária, que
nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no consumo
e apropriação das imagens das coisas,
dos outros e de nós mesmos.
Por isso, na paixão, diz Espinosa, somos causa inadequada de nossos apetites e de nossos desejos, isto é, somos apenas parcialmente causa do que sentimos,
fazemos e desejamos, pois a causa mais
forte e poderosa é a imagem das coisas,
dos outros e de nós mesmos, portanto a
exterioridade é mais forte e mais poderosa do que a interioridade causal corporal
e psíquica.
A tradição e o século 17 definem a paixão e a ação como termos reversíveis e
recíprocos: a ação está referida ao termo
de que algo parte; a paixão, ao termo em
que algo incide. Eis por que fala-se na
paixão da alma como ação do corpo sobre ela e na passividade corporal como
ação da vontade e da razão sobre ele. A
um corpo ativo corresponderia uma alma passiva. A uma alma ativa, um corpo
passivo. Espinosa rompe radicalmente
com essa concepção da vida passional.
Sendo a alma idéia de seu corpo e idéia
de si a partir da idéia de seu corpo, sendo
ela desejo como expressão consciente do
apetite, será passiva juntamente com seu
corpo, e ativa, juntamente com ele. Pela
primeira vez, em toda a história da filosofia, corpo e alma são ativos ou passivos
juntos e por inteiro, em igualdade de
condições e sem relação hierárquica entre eles. Nem o corpo comanda a alma
nem a alma comanda o corpo. A alma
vale e pode o que vale e pode seu corpo.
O corpo vale e pode o que vale e pode sua
alma.
Se reunirmos essa ligação profunda
entre corpo e alma à crítica espinosana
da teoria da vontade como livre-arbítrio
(que escolheria entre possíveis contrários) encarregada de dirigir a razão para
o domínio total sobre as paixões, compreenderemos a outra originalidade de
Espinosa quando demonstra que uma
idéia verdadeira ou a razão jamais vencem uma paixão simplesmente por serem uma idéia verdadeira ou razão. Somente uma paixão vence outra paixão, se
for mais forte e contrária a ela.
Estão desfeitos tanto o voluntarismo
quanto o intelectualismo que pretenderam, durante séculos, outorgar à vontade
e à razão um poder que não possuem e
que, justamente para encobrir a impotência de ambas, inventaram a moral ascética e a moral dos fins e valores como
paradigmas externos a serem obedecidos pelos humanos. O moralismo, impondo finalidades externas ao apetite e
ao desejo humanos, impondo modelos
de virtudes e vícios, é a forma imaginária
de suprir o fracasso de um outro imaginário: o da vontade onipotente e da razão onisciente capazes de exercer o pleno
império da alma sobre o corpo. Desfaz-se, assim, uma das imagens do homem
que, durante séculos, servira de modelo
para a invenção da imagem antropomórfica de Deus: uma divindade dotada
de vontade onipotente e razão onisciente
agindo em vista de fins externos, definidos como bons e justos em si mesmos.
A naturalidade da paixão, e o fato de
que bom e mau dependam inteiramente
da qualidade de nosso próprio desejo
não significam, porém, que seus efeitos
sejam necessariamente positivos. Pelo
contrário. Espinosa demonstrará que a
paixão aumenta imaginariamente a intensidade do conatus e a diminui realmente. Esse aumento imaginário da força para existir e sua diminuição real é a
servidão humana.
Servidão e paixões
A servidão não
resulta dos afetos, mas das paixões. Resulta da força de algumas delas sobre outras. Passividade significa ser determinado a existir, desejar, pensar a partir das
imagens exteriores que operam como
causas de nossos apetites e desejos. A
servidão é o momento em que a força interna do conatus, tendo-se tornado excessivamente enfraquecida sob a ação
das forças externas, submete-se a elas
imaginando submetê-las. Ilusão de força
na fraqueza interior extrema, a servidão
é deixar-se habitar pela exterioridade,
deixar-se governar por ela e, mais do que
isso, Espinosa a define literalmente como alienação (o indivíduo passivo-passional é servo de causas exteriores, está
sob o poder de um outro que, em latim,
se diz "alienus"). Alienados, não só não
reconhecemos o poderio externo que
nos domina, mas o desejamos e nos
identificamos com ele. A marca da servidão é levar o apetite-desejo à forma limite: a carência insaciável que busca interminavelmente a satisfação fora de si,
num outro que só existe imaginariamente.
Entre seus vários efeitos, a servidão
produz dois de consequências gigantescas: do lado do indivíduo, coloca-o em
contradição consigo mesmo, levando-o
a confundir exterior e interior, perdendo
a referência de seu conatus e, justamente
por isso, provocando sua própria destruição, como no caso do ciúme, da auto-abjeção e do suicídio; do lado da vida intersubjetiva, torna cada um contrário a
todos os outros, em luta contra todos os
outros, temendo e odiando todos os outros, cada qual imaginando satisfazer seu
desejo com a destruição do outro, percebido como obstáculo aos apetites e desejos de cada um e de todos os outros. Ao
suicídio individual corresponde, no plano intersubjetivo, a luta mortal das consciências e, no plano político, a guerra civil como luta entre facções.
Ora, se somos passivos por Natureza,
se somos passivos de corpo e alma, se a
alma tem conhecimento inadequado dos
apetites de seu corpo e de seus desejos, se
não há uma vontade racional capaz de
dominar as paixões, como a ética há de
ser possível?
A ética supõe e exige seres autônomos,
mas somos naturalmente heterônomos;
a ética supõe e exige seres racionais, mas
somos naturalmente afetos e desejos.
Como sair do imaginário sem sair dos
afetos? Como sair da passividade sem separar corpo e alma? Em suma, como passar da paixão à ação? Ou, na linguagem
espinosana, como nos tornarmos causa
adequada, isto é, causa total dos efeitos
daquilo que se passa em nós?
Espinosa demonstra que "não se pode
conceber nenhuma virtude anterior a esta, isto é, ao esforço para se conservar a si
mesmo". E que "o esforço para se conservar (o conatus) é o primeiro e único
fundamento da virtude". A chave da ética encontra-se nessa posição do conatus
como fundamento primeiro e único da
virtude, palavra que é empregada por Espinosa não no sentido moral de valor e
modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna (em latim, virtus vem da mesma raiz de vis, força).
A virtude do corpo é poder afetar de
inúmeras maneiras simultâneas outros
corpos e ser por eles afetado de inúmeras
maneiras simultâneas, pois o corpo é um
indivíduo que se define tanto pelas relações internas de equilíbrio de seus órgãos quanto pelas relações de harmonia
com os demais corpos, sendo por eles
alimentado, revitalizado e fazendo o
mesmo para eles. A virtude da alma, seu
conatus próprio, é pensar e sua força interior dependerá, portanto, de sua capacidade para interpretar as imagens de
seu corpo e dos corpos exteriores, passando delas às idéias propriamente ditas
e das quais é a única causa possível. Em
suma, passar da condição de causa inadequada à de causa adequada exige passarmos das idéias inadequadas às adequadas, de sorte que, para nossa alma,
conhecer é agir e agir é conhecer.
Em outros termos, um desejo só se encontra em nossa alma ao mesmo tempo
em que a idéia da coisa desejada. Na paixão, a coisa desejada surge na imagem
de um fim externo; na ação, como idéia
posta internamente por nosso próprio
ato de desejar e, portanto, como algo de
que nos reconhecemos como causa, interpretando o que se passa em nós e adquirindo a idéia adequada de nós mesmos e do desejado. E é no interior do
próprio desejo que esse desenvolvimento intelectual acontece.
A virtude é, por um lado, um movimento e um processo de interiorização
da causalidade -ser causa interna ou
adequada dos apetites, dos desejos e das
idéias- e, por outro, a instauração de
nova relação com a exterioridade, quando esta deixa de ser sentida como ameaçadora ou como supressão de carências
imaginárias. Mas isso significa que a possibilidade da ética se encontra, portanto,
na possibilidade de fortalecer o conatus
para que se torne causa adequada dos
apetites e imagens do corpo e dos desejos
e idéias da alma, e a originalidade de Espinosa está em considerar que essa possibilidade e esse processo são dados pelos próprios afetos e não sem eles ou contra eles.
A alegria e todos os afetos dela derivados, mesmo quando passiva, é o sentimento do aumento da força para existir.
Por isso, lemos na proposição 18 da "Parte 4" da "Ética": "O desejo que nasce da
alegria é mais forte do que o desejo que
nasce da tristeza". Ora, uma paixão não é
vencida por uma idéia verdadeira, mas
por uma outra paixão contrária e mais
forte. Espinosa nos mostra que a alegria e
o desejo nascido da alegria (e, portanto, o
desejo nascido de todos os afetos de alegria, como o amor, a amizade, a generosidade, o contentamento, a misericórdia,
a benevolência, a gratidão, a glória) são
as paixões mais fortes.
A vida ética começa, assim, no interior
das paixões, pelo fortalecimento das
mais fortes e enfraquecimento das mais
fracas, isto é, de todas as formas da tristeza e dos desejos nascidos da tristeza
(ódio, medo, ambição, orgulho, humildade, modéstia, ciúme, avareza, vingança, remorso, arrependimento, inveja).
Uma tristeza intensa é uma paixão fraca;
uma alegria intensa, uma paixão forte,
pois fraco e forte se referem à qualidade
do conatus ou da potência de ser e agir,
enquanto a intensidade se refere ao grau
dessa potência. Passar dos desejos tristes
aos alegres é passar da fraqueza à força.
Ora, na última parte da "Ética", Espinosa demonstra que o processo de passagem da paixão à ação é um processo de
reflexão, isto é, um processo no qual a
mente humana se torna apta a encadear
por si mesma as idéias das afecções corporais e apta a compreender que a causa
dessas afecções é o próprio corpo na relação com outros e que a causa das idéias
é a própria mente. Por isso Espinosa demonstra que "um afeto que é paixão deixa de ser paixão quando dele formamos
uma idéia clara e distinta". O afeto não
deixa de ser afeto e sim deixa de ser uma
paixão para se tornar um afeto ativo ou
uma ação do corpo e da alma.
O processo liberador se realiza no interior da vida afetiva, iniciando-se no campo das paixões e terminando no campo
das ações. À medida que as paixões tristes vão sendo afastadas e as alegres vão
sendo aproximadas, a força do conatus
aumenta, de sorte que a alegria e o desejo
dela nascido tendem, pouco a pouco, a
diminuir nossa passividade e preparar-nos para a atividade.
O primeiro instante da atividade é sentido como um afeto decisivo: quando,
para nossa alma, pensar e conhecer for
sentido como o mais forte dos afetos, o
mais forte desejo e a mais forte alegria,
um salto qualitativo tem lugar, pois descobrimos a essência de nossa alma e sua
virtude no instante mesmo em que a paixão de pensar nos lança para a ação de
pensar. É o momento em que descobrimos a diferença entre a potência imaginante-memoriosa do corpo e potência
pensante da alma e, simultaneamente,
quando sabemos que os pensamentos se
encadeiam na alma exatamente como as
imagens se encadeiam no corpo, mas
que uma idéia difere de uma imagem
porque é o conhecimento verdadeiro das
causas das imagens e das idéias, conhecimento verdadeiro da essência do corpo e
da alma, conhecimento verdadeiro da
relação entre ambos e deles com o todo
da Natureza.
Que é, pois, a ética? O movimento de
reflexão, isto é, o movimento de interiorização no qual a alma interpreta seus
afetos e as afecções de seu corpo, destruindo as causas externas imaginárias e
descobrindo-se e a seu corpo como causas reais dos apetites e desejos. A possibilidade da ação reflexiva da alma encontra-se, portanto, na estrutura da própria
afetividade: é o desejo de alegria que a
impulsiona rumo ao conhecimento e à
ação. Pensamos e agimos não contra os
afetos, mas graças a eles.
O múltiplo simultâneo
A essência
da alma, escreve Espinosa, é o conhecimento e, quanto mais conhece, mais realiza sua essência ou sua virtude. Por isso
mesmo, quanto mais apto for seu corpo
para o múltiplo simultâneo, mais ativa
será a alma que, finalmente, poderá
compreender-se como idéia da idéia de
seu corpo, isto é, como poder reflexivo
que alcança pelo pensamento o sentido
de si mesma, de seu corpo, do mundo e
da Natureza inteira.
Por isso a liberdade não é o poder da
vontade para extirpar os afetos, nem para escolher entre alternativas contrárias,
mas a aptidão do corpo e da mente para
o plural simultâneo.
É isto a liberdade: reconhecer-se como
causa eficiente interna dos apetites e
imagens, dos desejos e idéias, afastando
a miragem ilusória de uma vontade que
escolhe entre fins possíveis ou segundo
causas finais externas. Somos livres
quando somos causa adequada do que se
passa em nós e fora de nós e quando, fortes de corpo e alma, somos capazes da
multiplicidade simultânea, isto é, de um
corpo capaz de ser afetado e afetar outros
corpos de inúmeras maneiras simultâneas e de uma alma capaz de pensar inúmeras idéias e sentir inúmeros afetos simultâneos. É isso a felicidade suprema,
pois reconhecemos agora que somos
uma atividade plena e, como tais, não somos meras partes do todo da Natureza,
mas tomamos parte ou participamos de
sua atividade infinita.
Marilena Chaui é professora do departamento de
filosofia da USP, autora, entre outros, de "Cultura
e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real"
(Companhia das Letras). Ela escreve regularmente
na seção "Brasil 501 d.C.", da Folha.
Texto Anterior: Fred Pearce: A falsa África Próximo Texto: + autores - Jacques Rancière: O cinema e a carne da história Índice
|