São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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"Darcy Ribeiro" repassa a trajetória política e intelectual do autor de "O Povo Brasileiro"
A bela antropologia fracassada

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Darcy Ribeiro ganhou um livro à altura de seu talento literário e militância política, que o retratou pela unidade dentro do múltiplo: índio, antropologia, educação, literatura e política. Discípulo querido do mestre (e, detalhe, um mestre cobiçadíssimo por homens e mulheres), o antropólogo Mércio Pereira Gomes foi o filho que Darcy não teve. Ambos escreveram em co-autoria um artigo sobre etnia e civilização, assim como Darcy prefaciou em 1991 o livro de Mércio, "Os Índios e o Brasil" (Ed. Vozes). Nesse prefácio Darcy reconhece que a pesquisa de Mércio seguia caminho contrário ao que ele, como etnólogo, anunciava: a morte do índio, o sentimento trágico diante da agonia do aborígene. Mércio estava provando que o índio não era um passado da humanidade que ia se findar. O índio estava vivo. E mais: o índio estava crescendo. Eu me lembro de ter lido num de seus livros, Darcy meio queixoso perguntando pelo seu discípulo: onde é que anda o Mércio? Não sei o que se passou entre eles. Será que o discípulo, de resto o único, o esnobou? O que importa é que Mércio escreveu agora um livro porretíssimo sobre o velho Darça, mostrando que Anísio Teixeira percebeu o cerne aglutinador de sua multifacetada personalidade intelectual: inteligência autônoma e, portanto, avessa à subordinação mental típica do subdesenvolvimento. É esse o mapa da mina, que explica seu esforço em teorizar o Brasil dentro do processo civilizatório, assim como sua adesão ao marxismo em 1942 e, depois, a descoberta do nacionalismo com o sangue suicidário de Getúlio Vargas em 1954, a criação descolonizadora da Universidade de Brasília, o empenho em realizar as reformas janguistas de base e o pesadelo que se seguiu ao golpe de 64, o exílio e a paixão pela "pátria grande" latino-americana, o retorno ao Brasil com o PDT de Leonel Brizola na cabeça, a invenção pedagógica dos Cieps, a derrota na eleição para governador do Rio de Janeiro em 1986 por causa do Plano Cruzado e, por fim, a autópsia em vida causada pelo câncer.

"Must" da mídia
Como é que um brasileiro desse quilate morre frustrado com seus planos de ajudar o Brasil e o seu povo? Com a recaída, devido ao câncer, no final dos anos 90, a hiprocrisia que nunca votou nele e que sempre o sabotou começa a choramingar pela sua morte iminente. De repente, Darcy vira uma gracinha, um "must" da má consciência. Ganha mídia, é entrevistado na TV, graças à solidariedade do câncer.
Mércio Gomes traça o percurso do exílio político e intelectual de Darcy que, embora tivesse estudado em São Paulo, aluno de Baldus e colega de Florestan Fernades, ficou no ostracismo acadêmico, nem sequer era citado diante do estruturalismo de Lévi-Strauss, da "dependência" malandra de FHC e do marxismo protopetista de Florestan.
Posso testemunhar que era possível formar-se em ciências sociais na USP, nos anos 70, e no Museu Nacional do Rio de Janeiro sem nunca ter ouvido falar em Darcy Ribeiro, o qual pagou um preço altíssimo por ter se aproximado de João Goulart, de Salvador Allende e de Leonel Brizola.
No Rio de Janeiro e em São Paulo Darcy foi escanteado pelo funcionalismo norte-americano e pelo estruturalismo francês. O que me intriga nessa sabotagem de natureza colonial é que Darcy Ribeiro era amigo e admirador de Sergio Buarque de Holanda; no entanto isso não foi suficiente; esse medalhão não funcionou; somente depois da morte de Darcy é que a fornalha universitária irá produzir teses sobre ele.
Em vida, a sociologia ou a antropologia que trilharam caminho jubiloso são as que estão dando bandeira hoje no poder supremo da nação. Um vexame. É por isso que Mércio Gomes acertou ao colocar como epígrafe em seu livro essas palavras de Darcy Ribeiro: "Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas".
Moral da história: quem se deu bem não presta.



Darcy Ribeiro
126 págs., R$ 9,50 de Mércio Pereira Gomes. Ed. Ícone (r. das Palmeiras, 213, CEP 01226-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3666-3095).



Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.


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