São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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MILLÔR

Aproveita já, amigo! A vida não tem segunda safra

1 Modesto Pragmatismo

Em "A Modest Proposal" (acho que todos conhecem), Swift, apresentando-se como cidadão de extraordinário espírito público, prova que as difíceis condições econômicas da Irlanda podem ser aliviadas se os filhos dos pobres forem usados como alimentação dos ricos. Dando até receitas culinárias, Swift garante que sua sugestão seria muito bem recebida pelos ricos e pelos pobres, estes recebendo ajuda financeira, e se livrando do peso da prole indesejada. A idéia, na Inglaterra do século XVIII, não foi encarada com a devida seriedade. Mas sempre pode ser rediscutida.

2 A pátina do ouro

Fala aí, sério, não vamos nos tapear mutuamente, estabelecer cortinas ideológicas entre o que somos, queremos e dizemos. O que vale mais, dois peitinhos empinados ou o talento didático da professora cocoroca? A musculatura do bonitão exibicionista, ou a discrição romântica do intelectual feioso? O carrão do ano do filho do banqueiro ou a motoneta do entregador de pizza simpático e bem educado? Pega a opinião do teu avô e segue, velho. Burro carregado de ouro continua sendo cavalo de raça.

3 Pequenos privilégios

Pode ser, como diz o FhC (superlativo de PhD) que vida de rico seja chata. Mas na primeira classe a bunda vai melhor do que na econômica.

4

Baiano, quando se encontra numa encruzilhada da vida, faz um despacho.

5 Inversões

Grandes empresas de serviços e empreiteiras que trabalham para o governo, ninguém ignora, têm sempre que soltar um pour-boir, ou mata-bicho, para azeitar os canais competentes e facilitar as suas vendas. É caso típico de inversão do fluxo financeiro . Os vendedores é que dão cheques ao compradores. Lobby ao contrário?

6 Decifra-me e eu te degluto

Lobby ao contrário, pois é. E ninguém perguntou o que é que é isso. É, por acaso, semelhante a honesto ao contrário, homem ao contrário?

7 Instante fatal

Lendo artigo do jornalista esportivo francês Christophe Barbier, narrando o momento decisivo da cobrança de um pênalti, resolvi “traduzi-lo” e parodiá-lo.
Cantada em prosa e verso, e muitos “melhores momentos” de tevê, a angústia do goleiro no momento da cobrança de um pênalti não é segredo pra ninguém. Mas engolir um pênalti é o esperado. Se a bola atravessa a linha fatal ninguém culpa o goleiro desde que a torcida sinta que ele se esforçou. Seu esforço é sempre visível e muitas vezes aplaudível, mesmo quando não consegue evitar o tento. E se a bola vai pro espaço, ou bate numa das traves, sinal do além que distingue os grandes defensores, a galera aplaudirá sua sorte. E se, mais que isso, ele segura a bola, defende o pênalti, aí não há dúvida, ele é mesmo um Hércules, um Deus do esporte, um milagre.
Ao artilheiro persegue outro destino. Marcar um pênalti não é mais do que sua obrigação. No futebol marcar gol de pênalti é quase o mínimo exigido pela confederação pro atleta ser considerado um profissional. Falhar, ao contrário, significa que não merece o salário que ganha, o pão que come. Um avante que perde um gol feito é um fracasso, o que perde um pênalti é traidor do clube. Arrisca a vergonha, a punição de ofensas na rua, até agressões físicas. Daí a angústia do artilheiro na hora da cobrança do pênalti ser bem maior do que a do goleiro. A dúvida metafísica - à direita ou à esquerda? Com violência ou na malandragem? De bico ou de lado, que antigamente se chamava barroso? Examina com exatidão o jeito de colocação do goleiro ou usa seu melhor estilo e seja o que Deus quiser? Mas a alternativa inevitável está lá, enquanto ele ajeita mais uma vez a bola - chutar raspando bem abaixo da trave superior ou visar uma das balizas laterais? Mas raspar logo abaixo da trave superior significa a possibilidade muito mais ampla de raspar acima, e o limite de dentro não raro se torna o infinito de fora. E como, quase sempre, o goleiro se prepara pra saltar pra um dos lados, certos cobradores visam exatamente o meio do alvo. É assim que muitos goleiros, petrificados em sua posição pela indecisão e pelo medo, se tornam gloriosos simplesmente porque recebem uma bola em pleno peito. Variação do herói que defende a pátria oferecendo o peito à bala. E sobrevive.



Site do Millôr: www.uol.com.br/millor



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