São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2006

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Proselitismo da fornicação

Em "A Possibilidade de uma Ilha", que sai no Brasil no fim do mês, Michel Houellebecq faz a apologia do sexo como única forma de prazer

STEPHEN METCALF

Quase no início da "República", de Platão, Sócrates e Glauco se encontram com Céfalo, um idoso e respeitável ateniense, que lhes faz um discurso sobre a natureza dos homens velhos. Como os ardores da juventude os abandonaram, e agora a família os visita principalmente com desdém, os velhos são queixosos -pondera Céfalo-, mas a idade não é a verdadeira culpada. "Pois certamente a idade avançada tem um grande sentido de calma e liberdade; quando as paixões arrefecem, então, como diz Sófocles, nos libertamos do domínio não de um senhor louco, mas de muitos." Céfalo conclui sabiamente: "Aquele que tem natureza tranqüila e feliz dificilmente sentirá a pressão da idade, mas, para o que tem disposição inversa, a juventude e a velhice são igualmente um fardo".

Prazer supremo
Em seus brilhantes e controversos romances anteriores, "Plataforma" [Record] e "As Partículas Elementares" [Sulina], o escritor francês Michel Houellebecq conduziu a sabedoria na direção mais inversa possível à de Céfalo. Perto do fim de seu novo romance alternadamente cativante e cansativo, "A Possibilidade de uma Ilha", o narrador de Houellebecq -um comediante de meia-idade que se transformou em produtor de cinema, chamado Daniel- faz a confissão definitiva. "O prazer sexual não era somente superior, em refinamento e violência, a todos os outros prazeres que a vida tinha a oferecer". Era "na verdade o único prazer, o único objetivo da existência humana, e todos os outros, sejam associados à comida, ao tabaco, ao álcool ou às drogas, eram apenas compensações irrisórias e desesperadas, minissuicídios que não ousavam dizer seu nome". Nas páginas seguintes, Daniel desiste da vida de minissuicídios e comete o verdadeiro. Um romance francês sem sua cota de crueldade e erotismo é como uma torrada sem manteiga e geléia.

Situação intolerável
Quem iria querer? No entanto uma rica tradição nacional de libertinagem foi confrontada ultimamente com uma espécie de dilema. O libertino é alguém que busca o prazer; e, ao buscar os prazeres que outros homens desejam, mas, constritos pela convenção, são tímidos demais para perseguir, o libertino é o único honesto entre nós, uma exposição falante da hipocrisia burguesa. Mas, graças às bajulações do marketing de massa, hoje todo mundo é uma espécie de solitário que se automaximiza e vê uma vida de realizações eróticas como um direito humano básico. Para o verdadeiro libertino, a situação é intolerável. Como impor seu ego solitário à humanidade quando a humanidade admite, em cada anúncio de perfume, que pensa exatamente como você? Ao assumir o papel do salutar renegado público, a primeira e menos satisfatória solução de Houellebecq foi demarcar novos e tolos extremos. Em entrevistas ele notoriamente demoliu o islã e em romances ele demole o feminismo enquanto exalta as virtudes do turismo sexual. "A Possibilidade de uma Ilha" só vai alimentar o jogo de adivinhar quanto Houellebecq -o homem- tem em comum com seus protagonistas autodegradantes. Assim como seu criador, o talento de Daniel para disparar com a boca escandalosamente lhe conquista fama e fortuna e, mais importante para Daniel, mulheres crédulas. Estas por sua vez só induzem mais sofrimento enervante. Para o problema do libertino na era da publicidade, a segunda e engenhosa solução de Houellebecq foi exercitar a lógica da liberação sexual em seu extremo absoluto. Houellebecq, que foi abandonado pelos próprios pais em favor da vida hippie, afirma detestar a pretensa liberação daquela década. E aqui podemos começar a ver Houellebecq como algo mais que um provocador banal. Para ele, o ideal da completa libertação leva a uma espécie de totalitarismo do desejo privado. O tema foi apresentado com brutal simplicidade em "As Partículas Elementares". Em "A Possibilidade de uma Ilha", Daniel descreve sua ascensão à fama como um flagelo público adorado que provoca as classe médias francesas (e, mais tarde, internacionais) com seus monólogos de uma honestidade escorchante. Ele enriquece, tem um filho a quem renega imediata e totalmente, depois se apaixona-se duas vezes: primeiro por Isabelle, uma editora de revista cuja honestidade se equipara à sua própria; e depois por Esther, uma jovem atriz sensual, 25 anos mais moça.

Clichê francês
É claro que Daniel é simplesmente o clichê francês, um homem que confunde sua própria vaidade sexual com a condição humana. Mas é um clichê enormemente interessante. Em uma cena de excruciante realidade, Daniel passa entre uma orgia de corpos jovens "como uma espécie de monstro pré-histórico com minha tolice romântica, minhas ligações, minhas correntes". Ele tornou-se o pior Pantaleão possível, o velhinho na festa. Daniel não é o único narrador do romance; ele é designado como "Daniel1" e conforme a história se desenrola percebemos que é o progenitor de uma linhagem de daniéis clonados. Um segundo narrador, chamado "Daniel24", retoma a história de "Daniel" e da história humana (estas agora se entrecruzam de modo conveniente) no futuro, em que Daniel24 e seus companheiros "neo-humanos" vivem em um mundo assolado por desastres ambientais e quase completamente despido de interação humana. A ambição de Houellebecq foi misturar a libertinagem de Choderlos de Laclos com a ficção científica de Philip K.Dick e assim nos mostrar a apoteose do ser como uma entidade totalmente anti-social. Se "A Possibilidade de uma Ilha" é muitas vezes brilhante e notável, não é porque as confissões de Daniel soam universalmente verdadeiras, mas porque são de fato brilhantemente verdadeiras para esse homem deliciosamente lúbrico. Ao extrapolar seu herói, Houellebecq com freqüência se torna um proselitista da fornicação, tão chato quanto os que atirariam suas Bíblias contra ele.


Este texto foi publicado no "New York Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA
Autor: Michel Houellebecq
Tradução: André Telles
Editora: Record
Quanto: R$ 49,90 (480 págs.)


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