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Proselitismo da fornicação
Em "A Possibilidade de uma Ilha", que sai no Brasil no fim do mês, Michel Houellebecq
faz a apologia
do sexo como única forma
de prazer
STEPHEN METCALF
Quase no início da
"República", de
Platão, Sócrates e
Glauco se encontram com Céfalo,
um idoso e respeitável ateniense, que lhes faz um discurso sobre a natureza dos homens velhos. Como os ardores da juventude os abandonaram, e
agora a família os visita principalmente com desdém, os velhos são queixosos -pondera
Céfalo-, mas a idade não é a
verdadeira culpada.
"Pois certamente a idade
avançada tem um grande sentido de calma e liberdade; quando as paixões arrefecem, então,
como diz Sófocles, nos libertamos do domínio não de um senhor louco, mas de muitos."
Céfalo conclui sabiamente:
"Aquele que tem natureza
tranqüila e feliz dificilmente
sentirá a pressão da idade, mas,
para o que tem disposição inversa, a juventude e a velhice
são igualmente um fardo".
Prazer supremo
Em seus brilhantes e controversos romances anteriores,
"Plataforma" [Record] e "As
Partículas Elementares" [Sulina], o escritor francês Michel
Houellebecq conduziu a sabedoria na direção mais inversa
possível à de Céfalo. Perto do
fim de seu novo romance alternadamente cativante e cansativo, "A Possibilidade de uma
Ilha", o narrador de Houellebecq -um comediante de
meia-idade que se transformou
em produtor de cinema, chamado Daniel- faz a confissão
definitiva.
"O prazer sexual não era somente superior, em refinamento e violência, a todos os outros
prazeres que a vida tinha a oferecer". Era "na verdade o único
prazer, o único objetivo da existência humana, e todos os outros, sejam associados à comida, ao tabaco, ao álcool ou às
drogas, eram apenas compensações irrisórias e desesperadas, minissuicídios que não ousavam dizer seu nome".
Nas páginas seguintes, Daniel desiste da vida de minissuicídios e comete o verdadeiro.
Um romance francês sem sua
cota de crueldade e erotismo é
como uma torrada sem manteiga e geléia.
Situação intolerável
Quem iria querer? No entanto uma rica tradição nacional
de libertinagem foi confrontada ultimamente com uma espécie de dilema. O libertino é alguém que busca o prazer; e, ao
buscar os prazeres que outros
homens desejam, mas, constritos pela convenção, são tímidos
demais para perseguir, o libertino é o único honesto entre
nós, uma exposição falante da
hipocrisia burguesa.
Mas, graças às bajulações do
marketing de massa, hoje todo
mundo é uma espécie de solitário que se automaximiza e vê
uma vida de realizações eróticas como um direito humano
básico. Para o verdadeiro libertino, a situação é intolerável.
Como impor seu ego solitário à
humanidade quando a humanidade admite, em cada anúncio
de perfume, que pensa exatamente como você?
Ao assumir o papel do salutar
renegado público, a primeira e
menos satisfatória solução de
Houellebecq foi demarcar novos e tolos extremos. Em entrevistas ele notoriamente demoliu o islã e em romances ele demole o feminismo enquanto
exalta as virtudes do turismo
sexual. "A Possibilidade de uma
Ilha" só vai alimentar o jogo de
adivinhar quanto Houellebecq
-o homem- tem em comum
com seus protagonistas autodegradantes.
Assim como seu criador, o talento de Daniel para disparar
com a boca escandalosamente
lhe conquista fama e fortuna e,
mais importante para Daniel,
mulheres crédulas. Estas por
sua vez só induzem mais sofrimento enervante.
Para o problema do libertino
na era da publicidade, a segunda e engenhosa solução de
Houellebecq foi exercitar a lógica da liberação sexual em seu
extremo absoluto. Houellebecq, que foi abandonado pelos
próprios pais em favor da vida
hippie, afirma detestar a pretensa liberação daquela década.
E aqui podemos começar a
ver Houellebecq como algo
mais que um provocador banal.
Para ele, o ideal da completa libertação leva a uma espécie de
totalitarismo do desejo privado. O tema foi apresentado com
brutal simplicidade em "As
Partículas Elementares".
Em "A Possibilidade de uma
Ilha", Daniel descreve sua ascensão à fama como um flagelo
público adorado que provoca as
classe médias francesas (e,
mais tarde, internacionais)
com seus monólogos de uma
honestidade escorchante.
Ele enriquece, tem um filho a
quem renega imediata e totalmente, depois se apaixona-se
duas vezes: primeiro por Isabelle, uma editora de revista cuja
honestidade se equipara à sua
própria; e depois por Esther,
uma jovem atriz sensual, 25
anos mais moça.
Clichê francês
É claro que Daniel é simplesmente o clichê francês, um homem que confunde sua própria
vaidade sexual com a condição
humana. Mas é um clichê enormemente interessante. Em
uma cena de excruciante realidade, Daniel passa entre uma
orgia de corpos jovens "como
uma espécie de monstro pré-histórico com minha tolice romântica, minhas ligações, minhas correntes". Ele tornou-se
o pior Pantaleão possível, o velhinho na festa.
Daniel não é o único narrador do romance; ele é designado como "Daniel1" e conforme
a história se desenrola percebemos que é o progenitor de uma
linhagem de daniéis clonados.
Um segundo narrador, chamado "Daniel24", retoma a história de "Daniel" e da história
humana (estas agora se entrecruzam de modo conveniente)
no futuro, em que Daniel24 e
seus companheiros "neo-humanos" vivem em um mundo
assolado por desastres ambientais e quase completamente
despido de interação humana.
A ambição de Houellebecq
foi misturar a libertinagem de
Choderlos de Laclos com a ficção científica de Philip K.Dick e
assim nos mostrar a apoteose
do ser como uma entidade totalmente anti-social.
Se "A Possibilidade de uma
Ilha" é muitas vezes brilhante e
notável, não é porque as confissões de Daniel soam universalmente verdadeiras, mas porque
são de fato brilhantemente verdadeiras para esse homem deliciosamente lúbrico. Ao extrapolar seu herói, Houellebecq
com freqüência se torna um
proselitista da fornicação, tão
chato quanto os que atirariam
suas Bíblias contra ele.
Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
A POSSIBILIDADE DE UMA ILHA
Autor: Michel Houellebecq
Tradução: André Telles
Editora: Record
Quanto: R$ 49,90 (480 págs.)
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