São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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Leia abaixo narrativas inéditas do artista, parte de uma coletânea em preparação

Homem-bomba

Sou o homem-bomba voluntário, sem paraíso prometido, para explodir de vez esta soma de vozes, hierarquizada em intervalos (oitavas, quartas, terças), com o único eco, bum, da minha solidão -vocês ouvem seu ruído espantoso? o deslocamento de ar? os carros incendiados, os pedaços de carne humana, o sangue no asfalto, nas paredes? Outra solidão se vingará.

Bonecos trocados

Inflei os bonecos de notícia, mas a voz era da boneca do tempo. Então, com uma agulha, furei os dois bonecos de notícia, que saíram flutuando pelo quarto. Rapidamente, inflei o boneco de esportes, mas a voz era dos bonecos de notícia. Cansado daquilo, inflei o boneco que comentava política e ouvi a noite toda a sua voz calma e irônica detalhando os últimos acontecimentos na Câmara dos Deputados. No dia seguinte, liguei para o técnico, que veio consertar meus bonecos. Ao ver os dois bonecos de notícia furados no chão, um sobre o outro, olhou espantado para mim. "Por que fez isso?", perguntou. "Por raiva, a voz estava trocada, eles só anunciavam frentes frias". Então, com uma voz sutil, me perguntou, "Você conhece a minha moça do tempo?", e por um dinheirinho extra me forneceu uma boneca que, ao invés da previsão do tempo, só diz impropérios.

Leão de circo

Comportamentos humanos (bolas empinadas no nariz) em animais são muito piores do que comportamentos animais (comer sem usar as mãos, peidar em público) em humanos. Neste segundo caso, a repugnância é imediata, mas algo pré-cultural e profundo se impõe; no outro caso, é como se pintássemos uma árvore de verde. Não há tristeza maior do que a de leões comendo ração ou aves cegas cantando. Um cachalote assassino dando cambalhotas, espalhando água no público? O leão majestoso interrompendo seu reinado e abrindo a bocarra para não morder a cabeça de seu torturador? Com quantas horas de tortura conseguimos isso? Quantos meses de métodos educacionais exaustivos, com pobres sardinhas por recompensa, para trocar a natureza insondável por esses truques? Como teremos reduzido assim nossa própria natureza a um truque para depois ensiná-lo aos animais? Pois o amestrador não é a foca da foca, o mico do mico? Não é ele o verdadeiro leão desdentado? A impotência do leão não é a sua? Quem imita quem?


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