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Ponto de fuga
Um por todos
Uma coisa é reconsiderar o valor da biografia; outra é acreditar que alguns indivíduos devem ser estudados porque suas ações determi-
naram os caminhos da humanidade
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
No Mais! de domingo
passado, Boris Fausto
lembrou a importância
das biografias. Elas foram desconsideradas por estudiosos
convencidos de que a história é
fundada apenas em grandes
movimentos coletivos, com razões e agentes ultrapassando
de muito as individualidades.
Ora, o gênero biográfico permite que o historiador se infiltre na cultura de uma época,
nos comportamentos sociais
amplos, e os ilumine, por assim
dizer, de dentro.
Marcados pelas inflexões
que os formaram, profissionais
da história valorizaram as determinantes teóricas, que tendem, sobretudo nos incautos, a
levar as análises para uma forte
abstração. A biografia é um antídoto contra esses raciocínios
menos concretos, mais mecânicos e esquemáticos.
Como os universitários, de
modo geral, desdenharam a
biografia, certos jornalistas dedicaram-se a ela. Com espírito
rigoroso, com inteligência, com
o faro que a profissão refinou,
produziram obras de referência. É o caso de Fernando Morais. "Olga" e "Chatô - O Rei do
Brasil" são livros necessários
para compreender tantos aspectos do que ocorreu no Brasil
durante largos períodos do século 20.
Uma coisa, porém, é reconsiderar o valor da biografia, que
os historiadores verdadeiramente grandes sempre souberam, e pensá-la como digno
meio para o conhecimento.
Outra é acreditar que alguns
indivíduos devem ser estudados porque suas ações foram
determinantes para os caminhos da humanidade.
Adunco
Considerar que uma única
pessoa possa alterar o curso da
história é o velho mito do nariz
de Cleópatra. Nariguda, seria
menos sedutora; Marco Antônio e Júlio César não se apaixonariam. Os destinos de Roma,
do Egito e do Ocidente teriam
sido outros.
Que um nariz possa ser responsável por tanta coisa é implausível. A história séria não
pode dar valor a uma frivolidade assim. Mas o caso é que ela
reduz também todas as ações
pessoais à irrelevância do nariz.
Daí os ataques que sofreu Paul
Veyne, grande especialista em
Antiguidade, com seu livro
"Quando o Nosso Mundo se
Tornou Cristão" (Texto & Grafia, Lisboa, 2009).
Monoteísmo
Veyne tem velha formação
marxista. No entanto, intuiu
que o imperador Constantino
[século 4º] foi o único responsável pela cristianização do
Ocidente. Apenas ele, como indivíduo. Sua tese, demonstrada
de modo admirável, faz tremer
as convicções.
Historiadores cristãos ou
marxistas veem em Constantino um instrumento de algo
muito maior. Veyne, ao contrário, percebe nele uma causa.
Não contente, lança-se num
ensaio teórico provocador e
convincente: "A Ideologia Existe?". Na contracapa do livro,
suas teses são dissimuladas para não chocar o leitor. Também
no título, que disfarça o pivô individual.
Crisma
Escreve Veyne: "No total, a
cristianização do mundo antigo
foi uma revolução desencadeada por um indivíduo, Constantino, cujos motivos eram exclusivamente religiosos. Nada teve
de necessário, de inelutável ou
de irreversível. O cristianismo
começou a se impor a todos
porque Constantino, sinceramente convertido, favoreceu-o
e o sustentou; e porque essa religião estava eficazmente organizada numa igreja. Constantino converteu-se por razões ignotas e julgou que o cristianismo era digno de ser a religião
do trono porque sua superioridade religiosa era evidente aos
seus olhos; e que o cristianismo, embora minoritário, tinha
se tornado o grande problema
religioso do século.
Foi só por Constantino que a
história universal alterou-se de
maneira irreversível...".
jorgecoli@uol.com.br
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