São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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Ponto de fuga

Um por todos


Uma coisa é reconsiderar o valor da biografia; outra é acreditar que alguns indivíduos devem ser estudados porque suas ações determi- naram os caminhos da humanidade


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No Mais! de domingo passado, Boris Fausto lembrou a importância das biografias. Elas foram desconsideradas por estudiosos convencidos de que a história é fundada apenas em grandes movimentos coletivos, com razões e agentes ultrapassando de muito as individualidades.
Ora, o gênero biográfico permite que o historiador se infiltre na cultura de uma época, nos comportamentos sociais amplos, e os ilumine, por assim dizer, de dentro.
Marcados pelas inflexões que os formaram, profissionais da história valorizaram as determinantes teóricas, que tendem, sobretudo nos incautos, a levar as análises para uma forte abstração. A biografia é um antídoto contra esses raciocínios menos concretos, mais mecânicos e esquemáticos.
Como os universitários, de modo geral, desdenharam a biografia, certos jornalistas dedicaram-se a ela. Com espírito rigoroso, com inteligência, com o faro que a profissão refinou, produziram obras de referência. É o caso de Fernando Morais. "Olga" e "Chatô - O Rei do Brasil" são livros necessários para compreender tantos aspectos do que ocorreu no Brasil durante largos períodos do século 20.
Uma coisa, porém, é reconsiderar o valor da biografia, que os historiadores verdadeiramente grandes sempre souberam, e pensá-la como digno meio para o conhecimento.
Outra é acreditar que alguns indivíduos devem ser estudados porque suas ações foram determinantes para os caminhos da humanidade.

Adunco
Considerar que uma única pessoa possa alterar o curso da história é o velho mito do nariz de Cleópatra. Nariguda, seria menos sedutora; Marco Antônio e Júlio César não se apaixonariam. Os destinos de Roma, do Egito e do Ocidente teriam sido outros.
Que um nariz possa ser responsável por tanta coisa é implausível. A história séria não pode dar valor a uma frivolidade assim. Mas o caso é que ela reduz também todas as ações pessoais à irrelevância do nariz.
Daí os ataques que sofreu Paul Veyne, grande especialista em Antiguidade, com seu livro "Quando o Nosso Mundo se Tornou Cristão" (Texto & Grafia, Lisboa, 2009).

Monoteísmo
Veyne tem velha formação marxista. No entanto, intuiu que o imperador Constantino [século 4º] foi o único responsável pela cristianização do Ocidente. Apenas ele, como indivíduo. Sua tese, demonstrada de modo admirável, faz tremer as convicções. Historiadores cristãos ou marxistas veem em Constantino um instrumento de algo muito maior. Veyne, ao contrário, percebe nele uma causa. Não contente, lança-se num ensaio teórico provocador e convincente: "A Ideologia Existe?". Na contracapa do livro, suas teses são dissimuladas para não chocar o leitor. Também no título, que disfarça o pivô individual.

Crisma
Escreve Veyne: "No total, a cristianização do mundo antigo foi uma revolução desencadeada por um indivíduo, Constantino, cujos motivos eram exclusivamente religiosos. Nada teve de necessário, de inelutável ou de irreversível. O cristianismo começou a se impor a todos porque Constantino, sinceramente convertido, favoreceu-o e o sustentou; e porque essa religião estava eficazmente organizada numa igreja. Constantino converteu-se por razões ignotas e julgou que o cristianismo era digno de ser a religião do trono porque sua superioridade religiosa era evidente aos seus olhos; e que o cristianismo, embora minoritário, tinha se tornado o grande problema religioso do século. Foi só por Constantino que a história universal alterou-se de maneira irreversível...".


jorgecoli@uol.com.br


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