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Ponto de fuga
Quem diria
Com "Abraços Partidos", Almodóvar enfrenta o melodrama, desta vez
a sério; diante do passado
do diretor,
o filme empalidece
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Almodóvar, transgressor,
provocador, petulante,
neopunk da "movida
madrileña", desde 1980 esfregava no focinho do mundo filmes como "Pepi, Luci e as Outras" e "Maus Hábitos".
Encarnou então a expressão
cultural mais conhecida da insolente nova riqueza de uma
Espanha que se fazia europeia:
eufórico, o país despertava de
muitas décadas cinzentas e depressivas.
Em seguida, Almodóvar conheceu uma passagem mais
frívola e desprendida com
"Ata-Me!", "De Salto Alto" ou
"Kika". Depois, enveredou por
obras viscerais e angustiadas,
das quais "Carne Trêmula" e
"Tudo Sobre Minha Mãe" seriam as mais altas.
A sexualidade maluca dos
primórdios persistia, mas
transformada em loucura grave. Mantinha, em doses diferentes, a ironia que expunha a
desordem dos desejos; e o drama, cujo kitsch era empregado
para desmontar qualquer rótulo ou categoria sexual.
Diante desse passado, seu último filme, "Abraços Partidos",
empalidece. Começa bem, com
um cego sedutor e uma linda
moça, que o ajudou a atravessar a rua: tem-se a impressão
de um Buñuel light.
A estratégia da câmera toma
pontos de vista inesperados,
capta magistralmente reflexos,
cria sequências seguras e elegantes. Mas ela é insuficiente
para assegurar o interesse do
espectador durante duas longas horas.
O filme se deixa ver com um
vago sentimento de tédio.
Lágrimas
Com "Abraços Partidos", Almodóvar enfrenta o melodrama, desta vez a sério, à maneira
de Goulding, Stahl, Sirk. Ou dos
grandes mexicanos.
Não é nunca um cineasta banal. Mas lhe falta a intensidade
passional exigida pelo gênero, a
mesma que permitia a Sirk fazer milagres com um ator tão
inexpressivo quanto Rock
Hudson.
Um sentimentalismo pequeno percorre "Abraços Partidos", anêmico e insuficiente.
Logo o espectador não se importa mais com segredos terríveis ou trágicos destinos.
Fantasmas
"Abraços Partidos" é também um filme sobre o cinema.
Nele desfilam uma infinidade de citações nas quais Almodóvar parece se perder. Ao contrário de um Brian de Palma ou
Tarantino, não nutrem a obra
de vigor.
No início, o espectador tenta
descobrir as referências. Logo,
o joguinho enjoa: Michael Powell, Rosselini, Lang, Antonioni, Preminger, tantos e tantos,
entre eles o próprio Almodóvar. Elas são mesmo constrangedoras para "Abraços Partidos", insistindo em expor,
diante do próprio diretor e
mais ainda diante dos outros,
sua estatura acanhada.
Reação
Há um ditado que diz: quando o diabo fica velho, vira sacristão. Junto com a crise criadora, Almodóvar, hoje com 60
anos, resvala para o conformismo moral. Isso já despontava
em "Má Educação", em que os
laços amorosos e homoeróticos
no colégio são mostrados de
modo unívoco e condenatório
(tão diverso de "Dúvida", de
John Patrick Shanley); dentro
do filme, o cineasta, alter ego do
diretor, sentencia um discurso
virtuoso.
Em "Abraços Partidos", o jovem homossexual é ridículo,
feio, cheio de espinhas e tratado com desprezo por outro cineasta consagrado; ao se tornar
adulto, mostra-se desequilibrado e incapaz.
Sua visão da velhice também
é preconceituosa. O amante
idoso da infeliz e atraente Lena
vem qualificado como monstruoso e abjeto. É violento, possessivo e infame para que melhor triunfe a beleza da paixão
sem jaça entre o casal formado
por Penélope Cruz e Lluís Homar. Um cúmulo para Almodóvar, que, no passado, explorou
de maneira pessoal e subversiva as variadas fronteiras da sexualidade.
jorgecoli@uol.com.br
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