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AUTORES
Como médico, Descartes deu extrema importância ao "pensamento do corpo"
As muitas vantagens de ser cartesiano
BRUNO LATOUR
especial para a Folha
O que é um cartesiano? Qualquer
um que durma nove horas por dia,
que aproveite os prazeres da existência, que use moderadamente o
sexo e cuide bem da qualidade de
suas refeições! Essa é a conclusão
surpreendente a que chega o grande historiador da ciência Steven
Shapin a partir da leitura das cartas de Descartes. Filósofo, Descartes é conhecido pela distinção entre alma e corpo, pela oposição radical entre a "substância pensante" e a "substância extensa".
Mas, a partir do momento em que
Descartes se torna médico, a partir
do momento em que fala a seus
amigos, ele empresta uma grande
importância ao pensamento do
corpo e parece esquecer o abismo
que até então traçara em seus livros. Sabia-se que os cientistas tinham um corpo, mas não que este
lhes fazia pensar ao contrário de
suas filosofias (1).
Durante muito tempo, o corpo
dos pensadores ficou de fora da filosofia das ciências. Interessavam
as idéias dos cientistas e parecia
tão ridículo emprestar-lhes um
corpo quanto discutir a forma
exata dos anjos do paraíso. As coisas começaram a mudar quando a
antropologia começou a se interessar pelo trabalho prático, cotidiano, rotineiro dos pesquisadores. Percebeu-se então que eles engajavam, na prática do laboratório, bem mais que idéias.
As noções de "savoir-faire", de
habilidade manual, de qualidade
tátil começaram a ganhar espaço.
Voltava-se a dar valor aos saberes
implícitos, incorporados a esse
"conhecimento tácito" -já sublinhado por Michael Polanyi-,
o que torna impossível uma descrição da atividade científica somente em termos de idéias. A
competência está toda ela incorporada e é por isso que um cientista, para compreender um colega,
deve, como um artesão, deslocar-se fisicamente a fim de encontrar aqueles que procura emular.
Isso também vale tanto para engenheiros como para físicos e, mesmo, matemáticos. Como já mostrou Andrew Warwick, para
aprender uma nova forma de escrever equações, é preciso se deslocar pela Europa e compartilhar o
mesmo quadro negro e o mesmo
giz...
As coisas vão bem mais longe
atualmente. Já não se trata somente de insistir nos "savoir-faire"
dos pesquisadores. Interessam os
efeitos que podem advir da elisão
do corpo na própria definição dos
objetos científicos. E foi notavelmente um filósofo norte-americano quem foi mais longe nesse sentido, ao escrever um livro com o
provocador subtítulo: "The Ghost
in Turing Machine: Taking God
out of Mathematics and Putting
the Body Back In" (2).
O título do livro, "Ad Infinitum", diz bastante da sutileza da
proposta: a maior parte dos raciocínios abstratos é conduzida pela
substituição, em um dado momento, de uma operação concreta
por uma expressão "e assim por
diante". Rotman se interessa justamente pelo que está suposto em
termos de desligamento corporal
no uso da expressão "ad infinitum" e nos três pontinhos. Pode-se, verdadeiramente, apreender o infinito? É uma questão tão
velha quanto a filosofia e os números, mas que ele renova profundamente quando insiste no tipo de
corpo necessário para levar a cabo
uma operação de abstração.
Não se passa de um corpo ao
pensamento, mas de um corpo a
outro corpo, delegado de alguma
forma pelo texto, corpo este que se
supõe poder fazer rapidamente,
em escala muito pequena e sem
consumir energia, todo o trabalho
de cálculo. Sem essa delegação a
um intérprete, não é possível qualquer cálculo. Um programa de
pesquisa que pareceria absurdo 20
anos atrás e que se torna hoje muito fecundo: os formalismos também têm sua materialidade, sua
habilidade física, seu corpo, e já
não é mais possível nos contentarmos com uma simples oposição
entre pensamento abstrato e pensamento concreto. Para pensar
abstratamente é também necessário um corpo.
Isso é justamente o que tentam
compreender os historiadores recentemente reunidos por Steven
Shapin, que fez, há alguns anos,
uma "história social da verdade"
(3). Ele estava interessado na forma como, no século 17, os primeiros cientistas haviam aprendido a
se comportar para se tornarem capazes de observar os fenômenos
de laboratório e se constituírem,
entre si, em "testemunhas confiáveis". Ele havia notado o quanto
os novos costumes científicos retomavam hábitos, etiquetas e modos de se comportar da nobreza.
Mas ele ficou também surpreso
com a importância, nas cartas,
memórias e conselhos dos cientistas dos séculos 17 e 18, das anotações sobre o corpo. Daí o objeto do
livro recentemente publicado (4).
Descartes, Newton e Boyle se interessam apaixonadamente pelos
corpos capazes de pensar cientificamente, pelos hábitos alimentares, pelas maneiras de prolongar a
vida -até o ponto das sopas que é
necessário aprender a preparar.
Descartes não hesita em anunciar
ao padre Mersenne que se reconhece um filósofo pela saúde que
ele deve poder alcançar para si.
Além disso, quando Descartes
morreu, seus inimigos argumentaram contra sua filosofia, como
se lhes parecesse evidente que a
qualidade dos argumentos andasse de par em par com a qualidade
de sua fisiologia.
Esse novo interesse pelo corpo
dos cientistas se reúne com a
imensa massa de pesquisa conduzida pelas feministas, pelos antropólogos, sociólogos, associações
de pacientes que se agrupam em
torno da noção de "body" (corpo). O corpo se tornou o sítio de
uma nova repartição de interesses
universitários e disputas políticas.
Não se fala mais de cidadãos, pessoas ou espírito. Fala-se de corpo,
e mesmo de corpo político, brincando com o duplo sentido da expressão inglesa "body politic".
Era normal que os próprios pesquisadores terminassem também
por ter corpos. Contando com isso, tenho o maior prazer, depois
de ter lido e ouvido Shapin, de responder a qualquer um que me
pergunte se sou cartesiano: "Claro, pois, afinal, durmo nove horas
toda noite...".
Notas:
1. Um delicioso romance verdadeiro sobre Descartes é o de Brigitte Hermann,
"Histoire de Mon Esprit, ou le Roman de la
Vie de René Descartes" (História de Meu
Espírito, ou o Romance da Vida de René
Descartes, Bartillat, Paris, 1996);
2. Bryan Rotman, "Ad Infinitum - O
Fantasma na Máquina de Turing. Tirando Deus da Matemática e Nela Recolocando o Corpo", Stanford University Press, Stanford, 1993;
3. Steven Shapin, "A Social History
of Truth, Civility and Science in
17th Century England" (Uma História Social da Verdade, Civilidade
e Ciência na Inglaterra do Século
17, University of Chicago Press,
1994);
4. Christopher Lawrence e Steven
Shapin (editores), "Science Incarnate:
Embodiments of Natural Knowledge"
(Ciência Encarnada: Incorporações do
Conhecimento Natural, University of
Chicago Press, 1998).
Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da
ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida
de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34) e acaba de publicar
"Paris - Ville Invisible" (Paris - Cidade Invisível,
La Découverte), com Emille Hermant.
Tradução de Jesus de Paula Assis.
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