São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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AUTORES
Como médico, Descartes deu extrema importância ao "pensamento do corpo"
As muitas vantagens de ser cartesiano

BRUNO LATOUR
especial para a Folha

O que é um cartesiano? Qualquer um que durma nove horas por dia, que aproveite os prazeres da existência, que use moderadamente o sexo e cuide bem da qualidade de suas refeições! Essa é a conclusão surpreendente a que chega o grande historiador da ciência Steven Shapin a partir da leitura das cartas de Descartes. Filósofo, Descartes é conhecido pela distinção entre alma e corpo, pela oposição radical entre a "substância pensante" e a "substância extensa". Mas, a partir do momento em que Descartes se torna médico, a partir do momento em que fala a seus amigos, ele empresta uma grande importância ao pensamento do corpo e parece esquecer o abismo que até então traçara em seus livros. Sabia-se que os cientistas tinham um corpo, mas não que este lhes fazia pensar ao contrário de suas filosofias (1).
Durante muito tempo, o corpo dos pensadores ficou de fora da filosofia das ciências. Interessavam as idéias dos cientistas e parecia tão ridículo emprestar-lhes um corpo quanto discutir a forma exata dos anjos do paraíso. As coisas começaram a mudar quando a antropologia começou a se interessar pelo trabalho prático, cotidiano, rotineiro dos pesquisadores. Percebeu-se então que eles engajavam, na prática do laboratório, bem mais que idéias.
As noções de "savoir-faire", de habilidade manual, de qualidade tátil começaram a ganhar espaço. Voltava-se a dar valor aos saberes implícitos, incorporados a esse "conhecimento tácito" -já sublinhado por Michael Polanyi-, o que torna impossível uma descrição da atividade científica somente em termos de idéias. A competência está toda ela incorporada e é por isso que um cientista, para compreender um colega, deve, como um artesão, deslocar-se fisicamente a fim de encontrar aqueles que procura emular. Isso também vale tanto para engenheiros como para físicos e, mesmo, matemáticos. Como já mostrou Andrew Warwick, para aprender uma nova forma de escrever equações, é preciso se deslocar pela Europa e compartilhar o mesmo quadro negro e o mesmo giz...
As coisas vão bem mais longe atualmente. Já não se trata somente de insistir nos "savoir-faire" dos pesquisadores. Interessam os efeitos que podem advir da elisão do corpo na própria definição dos objetos científicos. E foi notavelmente um filósofo norte-americano quem foi mais longe nesse sentido, ao escrever um livro com o provocador subtítulo: "The Ghost in Turing Machine: Taking God out of Mathematics and Putting the Body Back In" (2).
O título do livro, "Ad Infinitum", diz bastante da sutileza da proposta: a maior parte dos raciocínios abstratos é conduzida pela substituição, em um dado momento, de uma operação concreta por uma expressão "e assim por diante". Rotman se interessa justamente pelo que está suposto em termos de desligamento corporal no uso da expressão "ad infinitum" e nos três pontinhos. Pode-se, verdadeiramente, apreender o infinito? É uma questão tão velha quanto a filosofia e os números, mas que ele renova profundamente quando insiste no tipo de corpo necessário para levar a cabo uma operação de abstração.
Não se passa de um corpo ao pensamento, mas de um corpo a outro corpo, delegado de alguma forma pelo texto, corpo este que se supõe poder fazer rapidamente, em escala muito pequena e sem consumir energia, todo o trabalho de cálculo. Sem essa delegação a um intérprete, não é possível qualquer cálculo. Um programa de pesquisa que pareceria absurdo 20 anos atrás e que se torna hoje muito fecundo: os formalismos também têm sua materialidade, sua habilidade física, seu corpo, e já não é mais possível nos contentarmos com uma simples oposição entre pensamento abstrato e pensamento concreto. Para pensar abstratamente é também necessário um corpo.
Isso é justamente o que tentam compreender os historiadores recentemente reunidos por Steven Shapin, que fez, há alguns anos, uma "história social da verdade" (3). Ele estava interessado na forma como, no século 17, os primeiros cientistas haviam aprendido a se comportar para se tornarem capazes de observar os fenômenos de laboratório e se constituírem, entre si, em "testemunhas confiáveis". Ele havia notado o quanto os novos costumes científicos retomavam hábitos, etiquetas e modos de se comportar da nobreza. Mas ele ficou também surpreso com a importância, nas cartas, memórias e conselhos dos cientistas dos séculos 17 e 18, das anotações sobre o corpo. Daí o objeto do livro recentemente publicado (4).
Descartes, Newton e Boyle se interessam apaixonadamente pelos corpos capazes de pensar cientificamente, pelos hábitos alimentares, pelas maneiras de prolongar a vida -até o ponto das sopas que é necessário aprender a preparar. Descartes não hesita em anunciar ao padre Mersenne que se reconhece um filósofo pela saúde que ele deve poder alcançar para si. Além disso, quando Descartes morreu, seus inimigos argumentaram contra sua filosofia, como se lhes parecesse evidente que a qualidade dos argumentos andasse de par em par com a qualidade de sua fisiologia.
Esse novo interesse pelo corpo dos cientistas se reúne com a imensa massa de pesquisa conduzida pelas feministas, pelos antropólogos, sociólogos, associações de pacientes que se agrupam em torno da noção de "body" (corpo). O corpo se tornou o sítio de uma nova repartição de interesses universitários e disputas políticas. Não se fala mais de cidadãos, pessoas ou espírito. Fala-se de corpo, e mesmo de corpo político, brincando com o duplo sentido da expressão inglesa "body politic". Era normal que os próprios pesquisadores terminassem também por ter corpos. Contando com isso, tenho o maior prazer, depois de ter lido e ouvido Shapin, de responder a qualquer um que me pergunte se sou cartesiano: "Claro, pois, afinal, durmo nove horas toda noite...".

Notas:
1. Um delicioso romance verdadeiro sobre Descartes é o de Brigitte Hermann, "Histoire de Mon Esprit, ou le Roman de la Vie de René Descartes" (História de Meu Espírito, ou o Romance da Vida de René Descartes, Bartillat, Paris, 1996);
2. Bryan Rotman, "Ad Infinitum - O Fantasma na Máquina de Turing. Tirando Deus da Matemática e Nela Recolocando o Corpo", Stanford University Press, Stanford, 1993;
3. Steven Shapin, "A Social History of Truth, Civility and Science in 17th Century England" (Uma História Social da Verdade, Civilidade e Ciência na Inglaterra do Século 17, University of Chicago Press, 1994);
4. Christopher Lawrence e Steven Shapin (editores), "Science Incarnate: Embodiments of Natural Knowledge" (Ciência Encarnada: Incorporações do Conhecimento Natural, University of Chicago Press, 1998).


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34) e acaba de publicar "Paris - Ville Invisible" (Paris - Cidade Invisível, La Découverte), com Emille Hermant.
Tradução de Jesus de Paula Assis.



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