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POESIA
Coisas e anjos em Rilke
AUGUSTO DE CAMPOS
especial para a Folha
Não me canso de admirar a perfeição e a precisão dos "Novos
Poemas", que Rainer Maria Rilke
fez publicar em dois volumes, em
dezembro de 1907 e julho de 1908
-há 90 anos, portanto. "News
that stays news". Novos poemas,
que permanecem sempre novos.
As minhas traduções da obra do
poeta, reunidas no livro "Rilke:
Poesia-Coisa" (Imago Editora,
1994), emergiram desses textos,
célula-mater da maturidade do
poeta, a espraiar-se pelas suas
mais conhecidas realizações: os
"Sonetos a Orfeu" e as "Elegias a
Duíno". Sem dúvida notáveis, essas últimas obras favoreceram,
paradoxalmente, com sua aura
mística, sua cortina encantatória
de fulgores metafísicos, uma recepção até certo ponto equivocada, obscurecendo a outra face do
poeta -a do "faber" de olho preciso e ouvido impecável"- e a
disciplina interna com que ele dominou o concreto para lançar-se
às aventuras abstratas, meio-humanas, meio-demiúrgicas, de
poeta visionário. Essas qualidades
ficam evidentes, porém, quando
nos aproximamos da sua obra a
partir dos "Novos Poemas".
Criados sob o influxo das artes
plásticas -a pintura de Cézanne,
as esculturas de Rodin-, tais textos (pouco menos de 200 peças )
constituem uma galeria de pequenas obras-primas em que pincel,
cinzel e pena parecem confundir-se numa síntese perfeita, um
jogo sinestésico de palavras e formas.
Foi dessa perspectiva que empreendi as minhas primeiras versões de Rilke, a maioria delas extraída dos "Novos Poemas". Ao
publicá-las, enfatizei, num estudo
introdutório, o caráter único desses textos em que, segundo Ursula
Emde, ocorre "a conversão de
Rilke ao objetivo e ao concreto",
ou, no dizer de Oscar Walzer, uma
"desegoização da lírica", um "lirismo novo, de onde o Eu é ausente, onde o "ich' (eu) é substituído
por "er' (ele)." Como assinalei,
então, sob o olho sensível e a pena
justa do poeta, o inanimado se
anima e o animado se humaniza,
por uma sutil translação de categorias.
Encontro agora, no prefácio que
Edward Snow escreveu para
acompanhar as suas traduções para o inglês do primeiro volume dos
"Novos Poemas", algumas observações muito pertinentes sobre
a obra. Observa Snow que Rilke almejava uma poesia que respondesse ao que ele descrevera como
"a arte de superfícies vivas" de
Rodin - uma poesia que de algum modo conseguisse pertencer
ao mundo das coisas antes que ao
dos sentimentos. Aqui, segundo
anota Snow, "a compressão do
enunciado e a eliminação do eu
autoral são levadas ao extremo na
busca de um ideal objetivo. Somente alguns desses "Dinggedichte', ou "poemas-coisas', como vieram a ser chamados, são
efetivamente sobre objetos, mas
todos eles têm uma qualidade material e confrontam o leitor com
uma presença escultural, autônoma. Até mesmo as suas condensações semânticas comunicam um
sentido de volume e contorno. Estamos sempre conscientes delas
como coisas feitas". Ainda que as
próprias traduções de Edward
Snow -que também verteu para
o inglês o segundo volume dos
"Novos Poemas"- não refletissem as complexidades formais do
original, situando-se na área das
versões mais ou menos literais,
sem grande elaboração artesanal,
ele se mostra consciente das virtualidades artísticas e até da implícita modernidade dos "poemas-coisas", chegando a desligar-se da inevitável referência ao
modelo rodiniano e a aproximá-los do experimentalismo plástico de alguém tão moderno como
Hans Arp, em cujas esculturas
abstratas o geométrico e o orgânico se harmonizam e completam.
Diz ele: "A sintaxe, especialmente, torna-se um material flexível,
capaz de ser trabalhado em estruturas que nos lembram mais frequentemente as formas mobilizadoras de espaço de Arp do que as
presenças massivas de Rodin".
Assim é, de fato. Na terceira parte
do poema "A Ilha", por exemplo,
a palavra "allein" (só) ocupa, isolada no fim de uma estrofe -ícone do próprio tema-, o espaço de
um decassílabo, distendendo e
condensando o verso, que, depois
de um espaço gráfico ainda mais
isolante, retorna à sua extensão
natural na primeira linha da estrofe seguinte. Embora Rilke utilize
com muita parcimônia soluções
como esta, excepcionais em sua
obra, não há dúvida que as situações sintáticas refogem às estruturas previsíveis do discurso, mesmo poético, criando um estranhamento que de nenhum modo se
cinge à mera representação figurativa.
Snow chama a atenção para a
importância que, na sintaxe desses
poemas, adquire a locução "como
se" ("als", "als ob"), capaz de
"manter a atenção do leitor fixada
não tanto no mundo-objeto como
na zona onde ele e a imaginação
interagem". E aqui toca em mais
um ponto relevante. Na verdade,
esta e outras expressões equivalentes, tal a mais usual "como"
("wie"), constituem aqui um
agenciador sintático poderoso,
que propulsiona as associações
mais insólitas de imagens ou as difrações prismáticas que deformam
a articulação da metáfora, juntando fragmentos de imagens díspares em visões iluminadoras. Ainda
que seja esse o mecanismo usual
da metáfora clássica, Rilke distende e libera de tal forma a imagem
justaposta como segundo termo
da comparação que acaba por autonomizá-la. Seus "como" e
"como se" passam a funcionar
como os "and" e "so that" dos
"Cantos" de Pound, recobrindo
de montagens ou colagens inesperadas a estrutura da metáfora e desestabilizando o foco da visão.
A propósito, talvez se pudesse assinalar, com a mesma liberdade com
que Snow invoca as esculturas de Arp,
um impulso na direção do universo
cubista, contemporâneo desses textos,
aproximação não desarrazoada, se se
pensa na origem comum da pintura de
Cézanne. Há, em embrião, nos "Novos Poemas", algo das simultaneidades do cubismo analítico, a lembrar a
reestruturação multiperspectívica de
certos quadros em que o mesmo objeto se apresenta sob diversos aspectos
em superposição ou justaposição de
planos ou fragmentação poliédrica de
volumes. Assim, no poema "São Sebastião", o poeta inverte expressivamente a postura do santo, que está de
pé, mas como se estivesse jazendo; e,
em mais uma inversão perceptiva, reverte a direção das flechas, que parecem, nesse rodopio sensorial em que
ele as inscreve, saltar do próprio corpo
do protagonista, "como se de seu corpo desferidas/ tremendo em suas pontas soltas de aço". Uma ambivalência
que também se projeta ao nível afetivo
do personagem, cujos olhos negam,
como bagatela, a tristeza que sobrevém, "como se poupassem com desdém/ os destrutores de uma coisa bela". Como se ("comme si") -não
esquecer- é também um dos sintagmas-temas do poema pré-cubista de
Mallarmé, "Um Lance de Dados", locução solta no branco do papel, como
um trampolim a precipitar quase-frases no aleatório das idéias que o poema incita ou sugere. Mesmo quando
não impulsionado pela locução, o mecanismo da comparação, distendido
ao máximo, opera extremas translações perceptivas, como em "Os Flamingos", onde os vislumbres do
branco e do vermelho da plumagem
das aves é aproximado da visão que se
pode ter de uma mulher "num sono
leve" e acionada em um tempo dilatado fisicamente por uma frase que percorre quatro linhas para só desatar a
última instância da comparação -o
"sono leve" da mulher, a sugerir a incompletude da visão- na primeira linha da estrofe seguinte, um salto
abrupto dos sentidos.
A concepção da materialidade do
poema se transfunde, naturalmente,
nas técnicas de composição dos versos
-versos, sem dúvida, mas que a prática dos seguidos enjambements e o
uso acentuado das aliterações e assonâncias fragmentam e plasticizam,
contribuindo para a intensificação da
iconicidade. Um exemplo, entre muitos, é "Ilha das Sereias", em que praticamente um único período percorre,
em viagem ininterrupta, os 20 versos
do poema. Outro, a enfatizar os aspectos plásticos do texto, o soneto "Parque dos Papagaios", em que o poeta
usa rimas idênticas nas quatro linhas
de cada quadra, e apenas duas rimas
paronomásticas nos dois últimos tercetos; essa pletora de sons repetitivos,
sublinhada pelas assonâncias e espelhamentos internos ("Jaspis und Jade", "finden es fade", "klauben...
tauben" etc.), iconiza a fala mimética
dos psitacídeos e sublinha o tom grotesco da descrição das aves exóticas,
caricaturas humanas, que "amariam
mentir". Na tradução, busquei reproduzir alguns desses efeitos, especialmente nos dois últimos tercetos com
rimas interassonantes ("itos",
"etas", "itas"), ecos ("graves...
aves"), aliterações e paronomásias
("peias dos pés presos... pretas").
Mais um exemplo, que requer um
"tour de force" para ser reproduzido
em outra língua: de "Übung am Klavier" (Exercícios ao Piano), a linha
inicial: "Der Sommer summt. Des
Nachmittag macht müde:", com cerradas aliterações e paronomásias aos
pares, literalmente significando: "O
verão zumbe. A tarde cansa:". No giro
da tradução: "O calor cola. A tarde arde e arqueja:". Por fim, do poema "A
Montanha", inspirado nas célebres
gravuras do vulcão Fujyiama por Hokusai, estas linhas, em que as paronomásias são convocadas para iconicizar
a idéia das transformações incapturáveis da imagem, uma saindo da outra:
"tausendmal aus allen Tagen tauchend" e "von Gestalt gesteigert zu
Gestalt", que correspondem na tradução aos versos: "Doando-se do ar
de cada dia" e "em cada forma a forma transformada" (procedimentos
que faço repercutir na linha "cada
imagem imersa num instante").
Em uma segunda investida aos textos dos "Novos Poemas", para mim
sempre irresistíveis e atuais, traduzi
mais 30 peças (das quais aqui se mostram alguns exemplos). Nem todas se
restringem a um objeto-tema definido
-caso prototípico daquela "Fonte
Romana", incluída em meu livro, ou
de "Hortênsia Azul", "Os Flamingos", "Parque dos Papagaios", vertidos agora. Alguns desses poemas deixam-se permear pelos temas da solidão e da morte, esculturados, porém,
em imagens concretas ou, às vezes,
dissecados a partir de uma imagem-motivo mais ampla -caso de
"A Ilha", ou "O Prisioneiro". Por
eles perpassa o sopro metafísico daqueles "anjos terríveis" de que falará
Rilke mais adiante, em suas "Elegias". Mas, mesmo os "anjos" -essas criaturas evanescentes do imaginário rilkeano, projeções antes do subconsciente do que da ideologia religiosa, desreferenciadas de ortodoxia-,
contaminam-se aqui de materialidade;
ora diretamente referidos à fisicalidade da criação humana -"L'Ange du
Méridien" se reporta à famosa estátua
conhecida como o Anjo do Relógio de
Sol, da catedral de Chartres-, ora vistos como sólidas presenças ("O Anjo"). Não é tanto que Rilke prefira "a
pantera ao anjo", como desejaria João
Cabral, mas que os seus "anjos", demasiadamente humanos, se materializam, anjos-coisa, para presentificar a
idéia da transiência e da morte, naquele processo de "interanimação de objeto e consciência" que, segundo
Snow, constitui o tema central dos
"Novos Poemas". Em suma: ele panteriza o anjo e angeliza a pantera. Não
seria demais, aproximando Rilke e
Hopkins, classificar também de "terríveis" a alguns desses poemas, pois
neles encontramos, sem embargo de
sua desafiante impassibilidade, o mesmo "pathos terrível" que caracteriza
alguns dos sonetos blásfemos e pungentes do grande poeta inglês. Poesia
do impreciso, terrivelmente precisa,
que nos maravilha e nos agride na solidez coiseante ("Das Ding dingt", a
coisa coiseia, ou as coisas coisam, não
nos diz Heidegger?) das imagens em
que compacta as angústias e as incertezas humanas.
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta,
autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.
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