São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

POESIA

Coisas e anjos em Rilke

AUGUSTO DE CAMPOS
especial para a Folha

Não me canso de admirar a perfeição e a precisão dos "Novos Poemas", que Rainer Maria Rilke fez publicar em dois volumes, em dezembro de 1907 e julho de 1908 -há 90 anos, portanto. "News that stays news". Novos poemas, que permanecem sempre novos. As minhas traduções da obra do poeta, reunidas no livro "Rilke: Poesia-Coisa" (Imago Editora, 1994), emergiram desses textos, célula-mater da maturidade do poeta, a espraiar-se pelas suas mais conhecidas realizações: os "Sonetos a Orfeu" e as "Elegias a Duíno". Sem dúvida notáveis, essas últimas obras favoreceram, paradoxalmente, com sua aura mística, sua cortina encantatória de fulgores metafísicos, uma recepção até certo ponto equivocada, obscurecendo a outra face do poeta -a do "faber" de olho preciso e ouvido impecável"- e a disciplina interna com que ele dominou o concreto para lançar-se às aventuras abstratas, meio-humanas, meio-demiúrgicas, de poeta visionário. Essas qualidades ficam evidentes, porém, quando nos aproximamos da sua obra a partir dos "Novos Poemas". Criados sob o influxo das artes plásticas -a pintura de Cézanne, as esculturas de Rodin-, tais textos (pouco menos de 200 peças ) constituem uma galeria de pequenas obras-primas em que pincel, cinzel e pena parecem confundir-se numa síntese perfeita, um jogo sinestésico de palavras e formas.
Foi dessa perspectiva que empreendi as minhas primeiras versões de Rilke, a maioria delas extraída dos "Novos Poemas". Ao publicá-las, enfatizei, num estudo introdutório, o caráter único desses textos em que, segundo Ursula Emde, ocorre "a conversão de Rilke ao objetivo e ao concreto", ou, no dizer de Oscar Walzer, uma "desegoização da lírica", um "lirismo novo, de onde o Eu é ausente, onde o "ich' (eu) é substituído por "er' (ele)." Como assinalei, então, sob o olho sensível e a pena justa do poeta, o inanimado se anima e o animado se humaniza, por uma sutil translação de categorias.
Encontro agora, no prefácio que Edward Snow escreveu para acompanhar as suas traduções para o inglês do primeiro volume dos "Novos Poemas", algumas observações muito pertinentes sobre a obra. Observa Snow que Rilke almejava uma poesia que respondesse ao que ele descrevera como "a arte de superfícies vivas" de Rodin - uma poesia que de algum modo conseguisse pertencer ao mundo das coisas antes que ao dos sentimentos. Aqui, segundo anota Snow, "a compressão do enunciado e a eliminação do eu autoral são levadas ao extremo na busca de um ideal objetivo. Somente alguns desses "Dinggedichte', ou "poemas-coisas', como vieram a ser chamados, são efetivamente sobre objetos, mas todos eles têm uma qualidade material e confrontam o leitor com uma presença escultural, autônoma. Até mesmo as suas condensações semânticas comunicam um sentido de volume e contorno. Estamos sempre conscientes delas como coisas feitas". Ainda que as próprias traduções de Edward Snow -que também verteu para o inglês o segundo volume dos "Novos Poemas"- não refletissem as complexidades formais do original, situando-se na área das versões mais ou menos literais, sem grande elaboração artesanal, ele se mostra consciente das virtualidades artísticas e até da implícita modernidade dos "poemas-coisas", chegando a desligar-se da inevitável referência ao modelo rodiniano e a aproximá-los do experimentalismo plástico de alguém tão moderno como Hans Arp, em cujas esculturas abstratas o geométrico e o orgânico se harmonizam e completam. Diz ele: "A sintaxe, especialmente, torna-se um material flexível, capaz de ser trabalhado em estruturas que nos lembram mais frequentemente as formas mobilizadoras de espaço de Arp do que as presenças massivas de Rodin". Assim é, de fato. Na terceira parte do poema "A Ilha", por exemplo, a palavra "allein" (só) ocupa, isolada no fim de uma estrofe -ícone do próprio tema-, o espaço de um decassílabo, distendendo e condensando o verso, que, depois de um espaço gráfico ainda mais isolante, retorna à sua extensão natural na primeira linha da estrofe seguinte. Embora Rilke utilize com muita parcimônia soluções como esta, excepcionais em sua obra, não há dúvida que as situações sintáticas refogem às estruturas previsíveis do discurso, mesmo poético, criando um estranhamento que de nenhum modo se cinge à mera representação figurativa.
Snow chama a atenção para a importância que, na sintaxe desses poemas, adquire a locução "como se" ("als", "als ob"), capaz de "manter a atenção do leitor fixada não tanto no mundo-objeto como na zona onde ele e a imaginação interagem". E aqui toca em mais um ponto relevante. Na verdade, esta e outras expressões equivalentes, tal a mais usual "como" ("wie"), constituem aqui um agenciador sintático poderoso, que propulsiona as associações mais insólitas de imagens ou as difrações prismáticas que deformam a articulação da metáfora, juntando fragmentos de imagens díspares em visões iluminadoras. Ainda que seja esse o mecanismo usual da metáfora clássica, Rilke distende e libera de tal forma a imagem justaposta como segundo termo da comparação que acaba por autonomizá-la. Seus "como" e "como se" passam a funcionar como os "and" e "so that" dos "Cantos" de Pound, recobrindo de montagens ou colagens inesperadas a estrutura da metáfora e desestabilizando o foco da visão.
A propósito, talvez se pudesse assinalar, com a mesma liberdade com que Snow invoca as esculturas de Arp, um impulso na direção do universo cubista, contemporâneo desses textos, aproximação não desarrazoada, se se pensa na origem comum da pintura de Cézanne. Há, em embrião, nos "Novos Poemas", algo das simultaneidades do cubismo analítico, a lembrar a reestruturação multiperspectívica de certos quadros em que o mesmo objeto se apresenta sob diversos aspectos em superposição ou justaposição de planos ou fragmentação poliédrica de volumes. Assim, no poema "São Sebastião", o poeta inverte expressivamente a postura do santo, que está de pé, mas como se estivesse jazendo; e, em mais uma inversão perceptiva, reverte a direção das flechas, que parecem, nesse rodopio sensorial em que ele as inscreve, saltar do próprio corpo do protagonista, "como se de seu corpo desferidas/ tremendo em suas pontas soltas de aço". Uma ambivalência que também se projeta ao nível afetivo do personagem, cujos olhos negam, como bagatela, a tristeza que sobrevém, "como se poupassem com desdém/ os destrutores de uma coisa bela". Como se ("comme si") -não esquecer- é também um dos sintagmas-temas do poema pré-cubista de Mallarmé, "Um Lance de Dados", locução solta no branco do papel, como um trampolim a precipitar quase-frases no aleatório das idéias que o poema incita ou sugere. Mesmo quando não impulsionado pela locução, o mecanismo da comparação, distendido ao máximo, opera extremas translações perceptivas, como em "Os Flamingos", onde os vislumbres do branco e do vermelho da plumagem das aves é aproximado da visão que se pode ter de uma mulher "num sono leve" e acionada em um tempo dilatado fisicamente por uma frase que percorre quatro linhas para só desatar a última instância da comparação -o "sono leve" da mulher, a sugerir a incompletude da visão- na primeira linha da estrofe seguinte, um salto abrupto dos sentidos.
A concepção da materialidade do poema se transfunde, naturalmente, nas técnicas de composição dos versos -versos, sem dúvida, mas que a prática dos seguidos enjambements e o uso acentuado das aliterações e assonâncias fragmentam e plasticizam, contribuindo para a intensificação da iconicidade. Um exemplo, entre muitos, é "Ilha das Sereias", em que praticamente um único período percorre, em viagem ininterrupta, os 20 versos do poema. Outro, a enfatizar os aspectos plásticos do texto, o soneto "Parque dos Papagaios", em que o poeta usa rimas idênticas nas quatro linhas de cada quadra, e apenas duas rimas paronomásticas nos dois últimos tercetos; essa pletora de sons repetitivos, sublinhada pelas assonâncias e espelhamentos internos ("Jaspis und Jade", "finden es fade", "klauben... tauben" etc.), iconiza a fala mimética dos psitacídeos e sublinha o tom grotesco da descrição das aves exóticas, caricaturas humanas, que "amariam mentir". Na tradução, busquei reproduzir alguns desses efeitos, especialmente nos dois últimos tercetos com rimas interassonantes ("itos", "etas", "itas"), ecos ("graves... aves"), aliterações e paronomásias ("peias dos pés presos... pretas"). Mais um exemplo, que requer um "tour de force" para ser reproduzido em outra língua: de "Übung am Klavier" (Exercícios ao Piano), a linha inicial: "Der Sommer summt. Des Nachmittag macht müde:", com cerradas aliterações e paronomásias aos pares, literalmente significando: "O verão zumbe. A tarde cansa:". No giro da tradução: "O calor cola. A tarde arde e arqueja:". Por fim, do poema "A Montanha", inspirado nas célebres gravuras do vulcão Fujyiama por Hokusai, estas linhas, em que as paronomásias são convocadas para iconicizar a idéia das transformações incapturáveis da imagem, uma saindo da outra: "tausendmal aus allen Tagen tauchend" e "von Gestalt gesteigert zu Gestalt", que correspondem na tradução aos versos: "Doando-se do ar de cada dia" e "em cada forma a forma transformada" (procedimentos que faço repercutir na linha "cada imagem imersa num instante").
Em uma segunda investida aos textos dos "Novos Poemas", para mim sempre irresistíveis e atuais, traduzi mais 30 peças (das quais aqui se mostram alguns exemplos). Nem todas se restringem a um objeto-tema definido -caso prototípico daquela "Fonte Romana", incluída em meu livro, ou de "Hortênsia Azul", "Os Flamingos", "Parque dos Papagaios", vertidos agora. Alguns desses poemas deixam-se permear pelos temas da solidão e da morte, esculturados, porém, em imagens concretas ou, às vezes, dissecados a partir de uma imagem-motivo mais ampla -caso de "A Ilha", ou "O Prisioneiro". Por eles perpassa o sopro metafísico daqueles "anjos terríveis" de que falará Rilke mais adiante, em suas "Elegias". Mas, mesmo os "anjos" -essas criaturas evanescentes do imaginário rilkeano, projeções antes do subconsciente do que da ideologia religiosa, desreferenciadas de ortodoxia-, contaminam-se aqui de materialidade; ora diretamente referidos à fisicalidade da criação humana -"L'Ange du Méridien" se reporta à famosa estátua conhecida como o Anjo do Relógio de Sol, da catedral de Chartres-, ora vistos como sólidas presenças ("O Anjo"). Não é tanto que Rilke prefira "a pantera ao anjo", como desejaria João Cabral, mas que os seus "anjos", demasiadamente humanos, se materializam, anjos-coisa, para presentificar a idéia da transiência e da morte, naquele processo de "interanimação de objeto e consciência" que, segundo Snow, constitui o tema central dos "Novos Poemas". Em suma: ele panteriza o anjo e angeliza a pantera. Não seria demais, aproximando Rilke e Hopkins, classificar também de "terríveis" a alguns desses poemas, pois neles encontramos, sem embargo de sua desafiante impassibilidade, o mesmo "pathos terrível" que caracteriza alguns dos sonetos blásfemos e pungentes do grande poeta inglês. Poesia do impreciso, terrivelmente precisa, que nos maravilha e nos agride na solidez coiseante ("Das Ding dingt", a coisa coiseia, ou as coisas coisam, não nos diz Heidegger?) das imagens em que compacta as angústias e as incertezas humanas.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.